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Das "cirurgias espirituais" a Oprah, Dilma ou Lula até aos abusos. João de Deus, o "médium" acusado por mais de 200 mulheres

São mais de 200 as mulheres que acusam João de Deus, entre elas a própria filha. O mais famoso "médium" brasileiro, que tratou Oprah, Paul Simon, Dilma e Lula, faz "cirurgias espirituais" há 40 anos.

Exercício ilegal da medicina, sedução de uma menor de idade, atentado ao pudor, contrabando de minério e até assassinato. O “médium” brasileiro João de Deus, famoso por ter dado “consultas” a personalidades como Oprah Winfrey, Michel Temer, Dilma Rousseff ou Lula da Silva, já tinha sido acusado — e sempre ilibado — de quase todo o tipo de crimes. Mas agora não escapou à Justiça. Foi-lhe decretada prisão preventiva na sequência de denúncias de abusos sexuais por mais de 200 mulheres. Ainda andou foragido, mas este domingo entregou-se à polícia.

Filha de João de Deus também sofreu abusos

Este mês, o Ministério Público criou uma equipa especial para investigar alegações de abusos sexuais contra o “médium”. O caso começou com os relatos de uma vítima que disse ter sido violada pelo menos dez vezes por João de Deus quando tinha 11 anos de idade. Depois disso, sucederam-se as denúncias e neste momento já são mais de 200 as mulheres que relataram episódios de abuso sexual cometidos pelo líder espiritual, que continua a negar todas as acusações.

Vestidos com roupa branca dezenas de pacientes fazem fila para serem curados pelo "médium" João de Deus (PEDRO LADEIRA/AFP/Getty Images)

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Uma das mulheres que se esta semana o acusaram foi a própria filha do “médium”, Dalva Teixeira, de 49 anos, que disse à revista Veja que sofreu abusos sexuais entre os 10 e os 14 anos.

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“Ele me levou para o quarto dele, tirou minha roupa toda e eu achei aquilo estranho. Aí eu perguntei: o que você está fazendo? E ele disse: o pai vai fazer um trabalho espiritual com você com Dom Inácio de Loyola, aí ele pegou, ficou pelado, se despiu todo e começou a passar o pénis dele no meu corpo todo. Aí ele pegou e foi. Aí eu falei: ‘ai, está me machucando’, e ele em cima de mim. E eu: ‘está me sufocando’. Aí eu peguei e saí correndo”, recordou Dalva Teixeira na entrevista, citada pelo jornal O Tempo.

Os abusos terão durado até Dalva ter 14 anos, altura em que engravidou de um homem que trabalhava para João de Deus. Quando o “médium” descobriu, agrediu-a repetidas vezes com uma vara de ferro e pisou-a na barriga, enquanto dizia: “Vou-te matar, você está grávida”. Os abusos de que foi vítima marcaram a vida daquela mulher, que acabou por se refugiar no álcool e nas drogas. Em 2016, foi internada numa clínica de reabilitação

Decretada prisão preventiva de médium brasileiro João de Deus acusado de abusos sexuais

O método era quase sempre o mesmo: escolha aleatória e toques íntimos

Os relatos repetem-se. Várias mulheres garantem que foram chamadas por João de Deus após as sessões. Em privado com ele, eram despidas e sujeitas a abusos que podiam ir até à violação. O primeiro relato mais detalhado foi feito pela holandesa Zahira Leeneke num programa de televisão brasileiro.

“Ele agarrou na minha mão direita e colocou-a nas calças dele. E eu fiquei… Porque é que isso está a acontecer? Porque é que tenho que tocar no pénis dele para ser curada? Ele tem um sofá grande no banheiro. Ele levou-me até lá. (…) Ele abriu as calças e colocou a minha mão no pénis dele. (…) Fiquei em choque”, disse Leeneke.

Na sexta-feira, a justiça brasileira decretou prisão preventiva para o “médium” brasileiro durante o período em que decorre a investigação.

Os testemunhos, a maioria divulgados pelo ‘Globo’, são em quase tudo semelhantes. A maioria das mulheres teria entre 30 e 40 anos, e eram escolhidas aleatoriamente no meio da multidão. João de Deus pedia que se encontrassem com ele numa salinha após o fim da sessão. Depois de serem colocadas no fim da fila de espera para o atendimento pessoal, entravam no escritório que dava acesso à sala de cirurgias e ficavam a sós com o médium. A porta era trancada, as luzes apagadas, e seriam tocadas nos seios ou obrigadas a tocar-lhe no pénis, como se isso fizesse parte do tratamento de “limpeza espiritual”.

Entre os relatos que se foram sucedendo em catadupa, estão os de várias menores. Uma jovem de 11 anos contou ao programa “Fantástico” que foi violada quando tinha 11 anos. “Ele pediu para eu colocar a mão para trás e eu senti uma coisa estranha e comecei a chorar e disse: ‘O que é isso?’. Ele falou: ‘É o que vai te curar’. Aí, ele veio na minha frente e fez o que fez comigo. Tudo o que você pode imaginar”, disse a mulher hoje com 41 anos no programa da Record. As ameaças eram tanto físicas quanto psicológicas. “Fica de costas, fecha os olhos e não abra em hipótese alguma. Se você abrir, vai ficar cega, porque a luz é muito forte”, contou ainda ela. “Eu falava o tempo todo: ‘Quero a minha mãe. Tá doendo’. E ele mandava eu ficar quieta: ‘Fica quieta, senão eu mato a sua família’”, lembrou a chorar.

 “Ele pediu para eu colocar a mão para trás e eu senti uma coisa estranha e comecei a chorar e disse: ‘O que é isso?’. Ele falou: ‘É o que vai te curar’. Aí, ele veio na minha frente e fez o que fez comigo. Tudo o que você pode imaginar”, disse a mulher hoje com 41 anos no programa da Record.

Os crimes durariam desde a década de 80. Outra testemunha diz ter sido abusada aos 15 anos quando os pais foram pedir ajuda porque estava depressiva e não saia da cama. Na primeira consulta, ele terá pedido para ficar sozinho com a adolescente. “Ele mesmo pegava a mão dele e fazia eu manipular o seu pênis. De repente, pegou na minha cabeça e a abaixou para que eu fizesse sexo oral nele”.

Uma mulher de 36 anos deu um testemunho completo ao programa “Conversa com Bial”, da TV Globo. “Ele passava a mão por todo meu corpo, inclusive nos meus seios e na minha genitália, passava muito a mão nas minhas pernas e dizia: “Você vai ver como vai melhorar. Eu preciso te curar. Eu pensava que era parte do tratamento, mas quando ele me colocou no corredor, eu achei que fosse morrer, porque ele se esfregava em mim. Foi muito sujo, muito traumático. Ele me levou para esse corredor estreito, que dava num banheiro, e começou a me apalpar, se esfregar em mim. Me pressionou contra a parede, eu estava de costas para ele, e me dizia: “Está vendo que não está acontecendo nada comigo? Meu corpo não está reagindo contigo, isso faz parte de uma limpeza espiritual. Eu preciso limpar você”.
Foi uma meia hora de pesadelo. Eu não conseguia reagir, porque tinha muito medo”.

A vida do filho do alfaiate que teve uma visão

Hoje com 76 anos, João Teixeira de Faria tem onze filhos — cada um de uma mulher diferente — e milhares de seguidores em todo o mundo. Incluindo Portugal. Por isso, apresenta-se na versão inglesa “John of God” em várias ocasiões. Foi apadrinhado pelo “médium” Chico Xavier, nome cimeiro do Espiritismo, e fundou, em 1976, o hospital espiritual Dom Inácio de Loyola. É ali o centro dos seus serviços, a que recorrem dezenas de celebridades brasileiras e mundiais em busca de conforto espiritual e de curas milagrosas para doenças físicas. E é ali que João de Deus realiza aquilo a que chama “cirurgias espirituais”.

Aos 76 anos, João Teixeira de Faria tem onze filhos — cada um de uma mulher diferente — e milhares de seguidores em todo o mundo.

Na página que tem na Internet, João de Deus mostra as tais cirurgias espirituais (as imagens podem chocar os leitores mais sensíveis), que passam na maioria das vezes por atos não invasivos, orações e toques com o objetivo de curar dores e doenças localizadas. Noutros casos, porém, as cirurgias ganham um sentido bastante literal e envolvem efetivamente cortes e introdução de objetos na zona do corpo do paciente na qual se encontra a dor em causa. Mas, garante o “médium”, estas cirurgias invasivas só acontecem quando o próprio paciente quer, até porque a “cirurgia espiritual” não invasiva tem exatamente o mesmo efeito.

Numa, uma tesoura é inserida no nariz até chegar perto da testa. Também há outras em que é usado um bisturi na região das costas e abaixo do peito e raspagem da córnea com uma faca normal, tudo sem anestesia, conta uma reportagem da Veja.

O católico-espírita que não sabe ler nem escrever

Nascido numa família católica tradicional, na pequena cidade de Cachoeira da Fumaça, João de Deus incorpora hoje vários elementos e símbolos da Igreja Católica nos seus rituais, incluindo crucifixos e imagens de santos, e apesar de ser espírita diz-se também um católico devoto. Aliás, o nome da casa que fundou para os rituais é precisamente dedicado a Santo Inácio de Loyola, padre católico que fundou a Companhia de Jesus e que foi canonizado pela Igreja. Dos seus 11 filhos, alguns são evangélicos, mas o “médium” assegura que na família todas as crenças religiosas são respeitadas.

Apesar de levar a cabo rituais espíritas, abundam os elementos católicos na casa Dom Inácio de Loyola, onde acontecem os atendimentos espirituais (PEDRO LADEIRA/AFP/Getty Images)

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Filho de um alfaiate e de uma dona de casa, João de Deus garante que despertou aos 9 anos para a espiritualidade. Foi com essa idade que diz ter tido a primeira premonição, a de que  um temporal  iria devastar dezenas de casas numa cidade da região, o que acabou por acontecer. Depois disso, estudaria apenas até ao segundo ano e diz que ainda hoje não sabe ler nem escrever. Na adolescência procurou um centro espírita e foi orientado para usar seu poder para curar pessoas. Antes de fundar o hospital espiritual, andou por todo o Brasil a fazer as suas cirurgias espirituais. Como aprendeu com o pai o ofício de alfaiate, trabalhou para o Exército, e graças ao apoio dos militares pode viajar pelo Brasil como médium sem ser incomodado. Ganhou fama, mas rapidamente se viu envolvido em escândalos.

Logo na década de 90, as cirurgias espirituais — que, aliás, nunca deixou de fazer até aos dias de hoje — valeram-lhe denúncias pela prática ilegal de medicina. Nunca chegou a ser acusado ou condenado na justiça e continuou as suas práticas. Depois, viria a ser acusado de sedução de uma menor, mas acabou absolvido por falta de provas. Na mesma altura, foi alvo de denúncias de atentado ao pudor, contrabando de minério e até de assassinato. Novamente, não foi condenado em nenhum caso.

Médium brasileiro acusado de ter abusado sexualmente de mais de 200 mulheres

Cinco mil pessoas por semana, uma loja com água benta e uma farmácia

Ao mesmo tempo, a casa Dom Inácio de Loyola, na Abadiânia (“terra bendita, onde Deus me colocou para cumprir minha missão”, como descreve), foi-se tornando num dos principais centros espirituais do país. Procurado por milhares de pessoas — cinco mil por semana, de acordo com a imprensa brasileira, 260 mil por ano —, a maioria viaja de avião até aos aeroportos de Brasília e Goiânia e depois segue de táxi até Abadiânia, num percurso de pouco mais de uma hora. Os mais ricos podem usar jatos particulares e aterrar no aeroporto de Anápolis, que fica vinte minutos de carro do centro espiritual. Foram criadas 62 pousadas exclusivamente para receber estes ‘doentes’, todas elas dando a sensação de que estão num hospital, com comida regrada e nada de  bebidas alcoólicas. Ficar nesses hotéis faz parte do tratamento, que inclui um repouso de 24 horas após a tal cirurgia espiritual.

Procurado por milhares de pessoas — cinco mil por semana, de acordo com a imprensa brasileira, 260 mil por ano —, a maioria viaja de avião até aos aeroportos de Brasília e Goiânia e depois segue de táxi até Abadiânia, num percurso de pouco mais de uma hora. Foram criadas 62 pousadas exclusivamente para receber estes 'doentes', todas elas dando a sensação de que estão num hospital.

Apesar de quem recorre a João de Deus dizer ter problemas de saúde, ele diz que não cura ninguém. “Quem cura é Deus, que, em sua infinita bondade, permite as Entidades (bons espíritos) que me assistem proporcionar cura e consolo aos meus irmãos, ao passo que sou apenas um instrumento em suas divinas mãos”, garante. Curas que vão desde cancro a esclerose,  até àcegueira e depressão.

São estas “entidades” que determinam como funciona a casa. “As Entidades pedem para que as pessoas usem roupas brancas, mas ninguém deixa de ser atendido caso esteja usando roupas de outra cor”, lê-se nas normas que regem os atendimentos. Mais: “Também não há distribuição de senhas, pois o atendimento ocorre através de filas, que são formadas quando determinado pela Entidade”.

As pessoas que vão ao seu encontro, depois de horas nas filas, esperam para ser atendidas na Sala da Entidade (onde cabem até 300) de olhos fechados porque só João de Deus e os seus auxiliares podem ter is olhos abertos. A justificação é que só assim conseguem energizar o ambiente antes do tratamento. Mas o médium também dá conselhos gratuitos aos moradores da terra, desde que carro comprar a que negócio fazer ou até com quem e quando casar.

O “médium” dos famosos, de Oprah e Naomi a Dilma e Lula

A fama mundial chegou em 1991, quando a atriz americana Shirley MacLaine se tratou com ele de um cancro. Seguiu-se o cantor Paul Simon. Mas foi quando  a apresentadora norte-americana Oprah Winfrey, uma das mais célebres personalidades internacionais a procurarem ajuda de João de Deus, que todo o mundo o passou a conhecer. “Achei que ia desmaiar”, disse Oprah, quando saiu da sessão em 2012, com o homem de 1,80 m, que usa dentes de porcelana, um cordão de ouro ao pescoço e um anel com uma esmeralda.

A apresentadora passou um dia inteiro na casa Dom Inácio de Loyola em gravações para o seu programa de televisão e garantiu aos jornalistas que a experiência teve um impacto muito forte em si. Depois de as acusações de abusos sexuais terem vindo a público, a norte-americana retirou do YouTube o episódio em que retratava a visita ao “médium”.

Mas no Brasil são inúmeras as personalidades que recorrem com frequência aos serviços de ajuda espiritual de João de Deus. Celebridades como Juliana Paes, Luciana Gimenez, Xuxa, Giovanna Antonelli, Cissa Guimarães ou Fábio Assunção já visitaram pelo menos uma vez o “médium” para receber ajuda. Até a modelo britânica Naomi Campbell já esteve no complexo de João de Deus em Abadiânia. Há quem, pelo contrário, o mande buscar para visitas particulares a sua casa.

Não faltarão também portugueses, apesar de não se conhecerem nomes concretos, como comentou o embaixador Seixas da Costa

João de Deus contudo pede aos seus pacientes que mantenham os tratamentos com os seus médicos e as terapias convencionais. Foi o que fez com Lula da Silva ou Dilma Roussef, os ex-presidentes do Brasil, que também o procuraram. Dilma, que sofreu de cancro do sistema linfático em 2008, foi uma das pessoas que usou um dos seus produtos mais procurados, e que está á venda na loja gerida por um dos filhos: a água fluidificada por João de Deus, ou seja, que já recebeu a sua energia, à venda por 3 reais o litro (cerca de 68 cêntimos). No complexo há também uma farmácia, que fabrica e vende comprimidos de passiflora, feitos da planta do maracujá. Cada embalagem de 180 cápsulas custa 50 reais (pouco mais de 11 euros).

A riqueza que vai de um jacto privado à paixão por carros

O protagonismo vale dinheiro. E João de Deus foi enriquecendo com o tempo. Apesar de não cobrar pelos seus tratamentos, recebe doações. Às vezes bem chorudas. Em Abadiânia, tem 28 casas em seu nome, diz a mesma reportagem da Veja. Às casas soma propriedades, fazendas de mineração de ouro e de criação de gado e cereais. Tem um jacto particular, segurança privada, mas a sua verdadeira paixão são os carros.

Apesar de ser um curandeiro e médium, João de Deus ainda não encontrou tratamento para os seus próprios males. Hipertenso, tem seis stents em artérias do coração e toma tranquilizantes, porque não admite nada fora de lugar e discute amiúde com os seus funcionários.

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