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Dave Chappelle e Bill Burr: podemos rir-nos destes humoristas conservadores?

Dave Chappelle e Bill Burr têm novos especiais de stand up na Netflix e vão do #MeToo a Michael Jackson. Como seria de esperar, muita gente ficou incomodada. Com razão ou nem por isso?

Ora então adeus e até sempre, foi um prazer ter andado 17 ou 18 anos a escrever em público, peço-vos apenas que digam ao meu filho que o amo muito e que não cometa o mesmo disparate que o pai cometeu: tentar dialogar nas zonas cinzentas quando a humanidade só berra, entrincheirada nos extremos.

[pausa]

O dramatismo (propositadamente excessivo e farsola) da frase anterior serve para vos preparar para o que se vai seguir: uma discussão acerca do regresso de dois humoristas conservadores, daqueles que gozam com movimentos como o #MeToo – textos com este leitmotiv têm, no atual estado (febril) das coisas, acabado com os leitores divididos em dois grupos, uns acusando os outros de machismo e os outros retorquindo que os primeiros são snowflakes, sem que nenhuma das partes ouça a outra.

Uso o verbo “preparar”, no segundo parágrafo, no mesmo sentido que os humoristas usam quando falam em “preparar a audiência”. Não raro, antes de dizerem uma piada controversa, os humoristas preparam o caminho – dizendo, por exemplo, um par de piadas razoavelmente controversas antes, uma forma de tornar a audiência cúmplice do que está a acontecer: se vocês riram do que foi dito até aqui então não podem agora fazer de conta que o que está a ser dito não é nada convosco.

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[o trailer de “Sticks and Stones”, de Dave Chappelle:]

Naquele primeiro parágrafo exerço um niquinho de vitimização – como se ao prever antecipadamente que as pessoas podem vir a ofender-se atirasse para cima de vós, leitores, o fardo de poderem estar a cometer uma injustiça se decidirem condenar-me pelas minhas ideias. Ao mesmo tempo, e como as redes sociais o provam todos os dias, a hipótese de alguém ser mal interpretado e dizimado em público é real – e naquele parágrafo eu posso estar apenas a reconhecer isso e a assumir que tenho receio de que isso me aconteça.

Se estão a sentir-se confusos, ainda bem – é essa a ideia, porque é isso que sente uma boa parte das pessoas, todos os dias, quando olha para as redes sociais e assiste às diárias discussões em que meio mundo afirma que certa pessoa é racista ou misógina ou homofóbica, enquanto o outro meio mundo acusa os acusadores de quererem silenciar o resto da humanidade: confusão.

E assim cá estamos nós em 2019, confusos e sem saber (por exemplo) se um humorista pode (em 2019) ser reacionário ou conservador – ou, só para complexificar, sem saber se um humorista que diz uma piada que a minha vizinha considera reacionária ou conservadora é (na sua vida civil) realmente reacionário ou conservador.

No último mês e meio surgiram dois especiais com potencial para chatear muita gente: “Sticks and Stones”, de Dave Chappelle, e “Paper Tiger”, de Bill Burr, ambos na Netflix. Neles os comediantes abordam fundamentalmente temas du jour, como o #MeToo ou os eventuais atos de pedofilia de Michael Jackson. Como seria de esperar, muita gente chateou-se – mais com Chappelle do que com Burr.

Chris Rock é um génio, em parte porque os seus stand-ups são narrativas, histórias criadas para chegar a um ponto, mostrar contradições; Chappelle é outra loiça, menos fina – o tipo de comediante que se comporta em palco como um wrestler, levando tudo o que encontra pela frente.

Dave Chappelle é considerado um dos grandes comediantes das últimas décadas e é simultaneamente considerado um dos grandes comediantes negros das últimas décadas, no sentido em que a sua arte aborda a cor da sua pele. Se me permitem uma opinião pessoal, no que toca a piadas rácicas prefiro Chris Rock, que um disse que quando um branco enriquece fica rico para a vida inteira, mas quando um negro enriquece começa aí a contagem decrescente até ele voltar às ruas. É uma piada genial porque não só encerra a tragédia da comunidade negra, a violência da injustiça que se abate sobre ela, como também evita a condescendência.

Chris Rock é um génio, em parte porque os seus stand-ups são narrativas, histórias criadas para chegar a um ponto, mostrar contradições; Chappelle é outra loiça, menos fina – o tipo de comediante que se comporta em palco como um wrestler, levando tudo o que encontra pela frente.

A dado momento, Chappelle diz que não acredita que Michael Jackson tenha sido pedófilo porque Macaulay Caulkin (que também dormiu na cama do rei da pop) afirmou nunca ter sido abusado por Jackson – e Chappelle não acredita que um pedófilo não abusasse de um rapaz tão bonito como Caulkin.

Chappelle está a realçar quão absurdo tudo isto é, visto de fora (porque é que um pedófilo iria abusar de dois rapazes normais quando podia abusar de um lindíssimo rapaz que já era uma estrela?), mas é difícil não achar a piada problemática – acima de tudo desnecessária, por uma simples razão: a linguagem corporal de Chappelle em momento algum indica que ele esteja a fazer outra coisa senão dar a sua opinião.

Não se trata apenas de a piada não funcionar – trata-se de a piada ter abdicado de ser piada para se aproximar da opinião pessoal, daquelas que se dá no café com os amigos. Na vaga de piadas que se sucede Chappelle diz que acredita que R Kelly abusou realmente de raparigas menores mas por essa altura a minha capacidade de rir já petrificou na piada sobre a inocência de Michael Jackson.

Bill Burr também tem um bocadinho de profane truth-teller, o tipo de figura criado por comediantes como George Carlin e que tanto marca o stand-up americano: alguém que, zangado com a hipocrisia do mundo, diz tudo o que pensa sem ponderar nas consequências. Contudo, não vai tão longe quanto Chappelle – ou, por outra, sabe onde vai e sabe como nos guiar.

Os primeiros 15 minutos de “Paper Tiger” são o pesadelo de qualquer feminista, pelo menos para quem levar à letra as palavras de Burr: começa por dizer que é bom estar fora dos EUA porque nos EUA neste momento não importa o que se diga, alguém vai sempre perguntar “O que é que queres dizer com isso?”, ou “Estás a chamar-me gorda?”, e a partir daqui leva à frente todas as manifestações atuais do politicamente correto.

Um par de exemplos: Burr goza com o caso do ator Bryan Cranston, que fez o papel de um tetraplégico e levou porrada por isso: “Porque é que uma pessoa sem deficiências está a fazer o papel de uma pessoa tetraplégica?”, diz, imitando alguém politicamente correto; já irritado berra: “PORQUE SE CHAMA REPRESENTAR, IDIOTAS DE MERDA”, e depois completa: “Se for um tetraplégico a fazer de tetraplégico, isso não é representar, é estar ali a dizer coisas que outra pessoa escreveu”.

Quando era miúdo, Burr distribuía jornais e foi acólito, é preciso mais que isso para ele se irritar a sério; o que o incomodou foi o facto de ela pensar que o podia intimidar. E nisto ele toca num assunto complexo: as subtis agressões de que os homens são alvo em crianças e das quais nunca falam – e que também estão na origem de bastos comportamentos anti-sociais.

O alvo de Burr vai mudando do politicamente correto para o feminismo, sendo que ele chega ao cúmulo de gozar com a Michelle Obama, dizendo que quando Obama saiu da presidência parecia ter 73 anos mas Michelle estava mais nova do que quando o marido foi eleito); a dada altura faz uma sinopse do movimento MeToo, de como começou por ser sobre violações para chegar a “Foi um mau date, acabem com a carreira dele”, ao ponto de as mulheres exigirem que tudo o que digam agora tenha de ser a verdade absoluta.

Mas de repente o tom muda: “Tudo se tornou verdades absolutas, nos EUA”, diz Burr, e quando esperamos mais reclamações contra o feminismo ele em Colin Kapernick, o jogador de futebol americano que, para protestar contra a violência contra os negros, decidiu ajoelhar-se no momento em que se toca o hino americano – e nunca mais o deixaram jogar. Burr diz que isto era uma forma de começar um diálogo mas ninguém ouviu Kapernick:

“O meu irmão está a lutar no Iraque, seu merdas”, diz Burr, imitando um homem zangado aleatório. O que ele está a fazer, com esta simples piada, é a mostrar que não nos ouvimos uns aos outros: Kapernick quer discutir a violência policial, mas o homem zangado aleatório que combateu no Iraque só reage ao facto de o jogador não se ajoelhar. Burr prossegue, guiando a conversa para o humor:

“Assim que uma piada sai da minha boca ela já não é acerca do que eu disse – passa pelos vossos ouvidos e emaranha-se na vossa infância”.

[o trailer de “Paper Tiger”, de Bill Burr:]

Lentamente o especial vai deixando de ser uma irritação com as consequências do #MeToo e vai chegando a outro ponto, mais fundo: a nossa incapacidade de comunicar e as razões da incomunicabilidade. O ponto de viragem é o momento em que Burr conta que uma mulher, uma comediante, lhe deu uma palmada nos tintins. Mantendo a fachada inicial, Burr prepara o que se segue da forma mais machista possível:

“Sabem o que é hilariante no abuso sexual? É que as mulheres agem como se só acontecesse a elas. Ninguém quer saber do que acontece a um homem”.

De seguida, Burr conta que depois da agressão passou três dias de cabeça perdida, mas não por a comediante o ter tocado nos tintins: quando era miúdo, Burr distribuía jornais e foi acólito, é preciso mais que isso para ele se irritar a sério; o que o incomodou foi o facto de ela pensar que o podia intimidar. E nisto ele toca num assunto complexo: as subtis agressões de que os homens são alvo em crianças e das quais nunca falam – e que também estão na origem de bastos comportamentos anti-sociais.

A partir daqui, “Paper Tiger” torna-se no que o nome indica: uma exploração da fachada masculina, das feridas que os homens transportam pela idade adulta fora. Burr conta como, em miúdo, ele e o irmão estavam a guerrear de tal forma um com o outro no banco de trás que o pai ameaçou dar-lhes bonecas como prendas de natal se eles não se calassem: “Parecem meninas a rir. Se não se calam, compro-vos bonecas pelo Natal”. E passadas umas semanas comprou mesmo.

"Paper Tiger" não seria possível sem o #MeToo: é um homem à procura de entender o seu lugar no mundo, mostrando, pelo caminho, as contradições dos seres humanos, como pessoas boas cometem maus atos, como qualquer pessoa pode ter no seu percurso um pai, uma carreira de distribuição de jornais que não o deixou ser a pessoa que podia ter sido e que é preciso passar muito tempo para nos apercebemos disso.

Burr conta-nos como a filha já começa a perceber que o pai não é normal. Diz que a raiva que sente tem de parar nele, não pode passar para a miúda, já basta o quanto ele chateia a mulher. Confessa-nos que discutem sobre tudo, até sobre o que ver na TV; recentemente, decidiram ver documentários e tentaram ver um sobre o Elvis.

De modo que começam de imediato a discutir sobre o facto de Elvis ter roubado os passos de dança aos negros. A esposa de Burr é negra; o casal discute sobre apropriação cultural. Ele reproduz o discurso dela:

Ela: Não é sobre uma dança. É apropriar-se da cultura, ficar com o dinheiro, ser chamado rei e nunca reconhecer de onde veio o que lhe deu tudo o que tem.
Ele: OK, 4 ou 5 bons argumentos. Contudo, eu fico ofendido quando andas de skate? Ela ri-se e como eu sou comediante não paro. Eu fico chateado contigo quando viajas de avião e demoras apenas 3 horas em vez de demorares dias.
Ela: Essa foi fodida.
Ele: Foi.
Ela: Sabes porque foi fodida?
Ele: Porque se historicamente os negros tivessem o dinheiro e a liberdade que os brancos tiveram também descobriam como fazer aviões.
Ela: Exato.

E até ao fim será assim: a desconstrução impiedosa de tudo o que os críticos do #MeToo defendem, mas acima de tudo a assumpção de que o género masculino foi educado à patada, a enfiar para dentro as emoções, a dar consecutivas vezes a resposta emocional errada, sem ser sequer capaz de olhar para dentro, para o passado.

O que ameaçava ser um longo rant anti-feminista devém, no fim, no mais feminista dos especiais de comédia com um twist interessante: nem por uma vez Burr usa jargão feminista, limita-se a mostrar os erros masculinos.

Os especiais de Chapelle e Burr partem ambos do mesmo ponto (isto do #MeToo e da cultura da desconfiança é uma chatice) e chegam a sítios muito diferentes: Chapelle parece apenas querer dizer coisas que chateiem os advogados do politicamente correto, Burr entrega-se à indagação sobre a origem da incomunicabilidade humana e encontra, na sua educação, exemplos mais do que suficientes para acreditar que há algo de errado na forma como se educam os rapazes.

Há várias ilações a tirar, daqui – antes de mais que não devemos apreciar arte de forma literal: quem isolar cada uma das piadas de Burr não encontrará o sentido último com que “Paper Tiger” foi criado; por outro lado, o talento de Burr não reside no facto de o especial ser pedagógico na sua abordagem às origens dos defeitos normalmente atribuídos aos homens; não há um final feliz, por assim dizer – ele (o “ele” que sobe ao palco, e que devemos distinguir do Burr civil) não se torna numa pessoa magnífica no final do especial. Mas aquilo que vimos foi um homem à procura de compreender a razão da sua zanga, e se o faz é por amor à mulher e à filha, para elas não sofrerem mais por causa dos seus defeitos.

“Paper Tiger” não seria possível sem o #MeToo: é um homem à procura de entender o seu lugar no mundo, mostrando, pelo caminho, as contradições dos seres humanos, como pessoas boas cometem maus atos, como qualquer pessoa pode ter no seu percurso um pai, uma carreira de distribuição de jornais que não o deixou ser a pessoa que podia ter sido e que é preciso passar muito tempo para nos apercebemos disso.

Dois especiais de comédia de homens zangados a dizer coisas horríveis chegam a lugares muito diferentes: o mundo é complicado e não há regras nem leis que tornem isto mais simples.

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