Segundo e último dia do debate do Orçamento — e primeiro dia da fase que se segue, de crise política. Os 108 deputados do PS foram insuficientes para salvar a proposta. E se o primeiro dia já tinha ficado marcado pela definição de argumentos para as eleições antecipadas que o Presidente da República já antecipou, o segundo apenas trouxe críticas mais densas e algum PS mais solto para a prática de algo que esteve na gaveta nos últimos seis anos: malhar na direita (a expressão tem origem no ministro Augusto Santos Silva, que a aplicava à direita quando era Governo em 2009).
No final de todas as contas que foram sendo feitas nos últimos dias, ficaram apenas 108 votos a favor (de todos os deputados do PS) do Orçamento do Governo, 117 votos contra (de PSD, PCP, BE, PEV, IL e Chega) e cinco abstenções (do PAN e das duas deputadas não-inscritas). Não chegou para salvar o Orçamento e Costa saiu a prometer, com o friso dos ministros atrás de si, que vai continuar a governar aguardando a decisão do Presidente da República de avançar para eleições. Mas aqui fica o resumo do que foi sendo dito no dia do fim da maioria de esquerda.
PS canalizou frustração para um dos parceiros (e poupou o PCP)
Na sua derradeira intervenção, que esteve a rabiscar enquanto os partidos faziam as intervenções finais no debate, António Costa poupou o PCP de críticas diretas. O alvo preferencial do PS quando o tema é a culpabilização continua ser o Bloco, ainda que o PCP tenha sido a novidade deste ano, com o seu voto contra o Orçamento do Estado (até agora só tinha votado contra um Suplementar no meio da pandemia).
Ainda assim, na intervenção que fez no final do debate e mesmo à beira do já antecipado chumbo, o primeiro-ministro só falou diretamente do Bloco, chegando mesmo a dizer que “nenhum partido foi mais longe do que o BE nesta ideia de discutir no Orçamento o que não é matéria de Orçamento”. E apontou às famosas nove propostas do Bloco para concluir “que oito nada têm a ver com Orçamento”.
No grupo parlamentar socialista, as despesas da casa ficaram para a líder Ana Catarina Mendes, que se atirou, como ainda não tinha acontecido no debate do Orçamento, ao BE, tendo como alvo mais direto Pedro Filipe Soares. O líder parlamentar bloquista acabara de discursar e a socialista levantou-se para o acusar de “defraudar as expectativas dos portugueses com inverdades”. Garantiu ainda: “Houve muito diálogo na anterior legislatura, promovido pelo Governo, e os primeiros que quebraram essa vontade de diálogo foram os senhores.” Mais: assumiu o que ninguém tinha ainda dito, apesar de já constar em muitas entrelinhas das intervenções socialistas, ao afirmar que o que o BE tentou “não foi um acordo mas uma encenação”. Sobre o PCP, nada do que foi dito foi alguma vez tão direto ou concreto neste último dia de debate.
Outra forma de pedir maioria absoluta ainda no palco onde a relativa se esboroou
Se durante o dia Costa soltou na arena política alguns dos seus ministros (Marta Temido ou Siza Vieira), no final de tudo foi ele que assumiu a tribuna para pisar já o terreno político que se abre à frente do Parlamento. Com eleições antecipadas no horizonte, o primeiro-ministro foi claro quanto ao objetivo, como nunca tinha sido. Não pediu a maioria absoluta, mas esteve lá próximo. Disse que está confiante em converter este momento “numa maioria reforçada, estável e duradoura” — se os resultados lhe permitirem governar sozinho, tê-la-ia de certeza; resta saber se, para cumprir essa fórmula, lhe bastaria uma maioria em conjugação com o PAN.
Costa virou-se ainda para a direita para a apoucar: “A direita fechou para obras e ainda não é alternativa. Limita-se à mesma ladainha”. Respondeu, de alguma maneira, à expectativa traçada durante o debate por Catarina Martins. A líder do Bloco de Esquerda responsabilizou o PS de Costa pelo fim da “geringonça” e diz que essa solução de esquerda “foi morta pela obsessão da maioria absoluta”.
O culpado único apontado pela direita
Já para a direita não há qualquer dúvida sobre o responsável pela crise política. É António Costa, alvo de todas as críticas. Rui Rio, por exemplo, acusou-o de tudo, desde “comprar votos do PCP e do BE” a estar “acantonado à esquerda, agarrado ao poder cedendo o que pode e não pode”.
Não que a restante esquerda fosse esquecida, mas a direita condensou o grosso das críticas em Costa, com Cecília Meireles a dizer-lhe diretamente: “Esta maioria caiu exclusivamente pelas suas mãos e não merece segunda oportunidade.” Para o CDS, a sentença estava dada.
A defesa da Inês Sousa Real, a nova aliada
Não era uma intervenção de nenhuma deputada do PS, mas não será arriscado dizer que foi, pelo menos, tão aplaudida pela bancada socialista como se fosse. A líder do PAN, Inês Sousa Real, subiu ao púlpito indignada e durante alguns minutos disparou tiros contra a esquerda e em defesa deste Orçamento — pelo menos, em defesa da hipótese de o deixar passar à especialidade. Foram linhas e linhas de um discurso cheio de pontos de interrogação e de exclamação dedicados à esquerda, aos partidos que, nas palavras de uma irritada Inês Sousa Real, fizeram “folclore parlamentar” e “estratégias politiqueiras”, deixaram “um país em suspenso”, “atrasaram a aplicação dos fundos do PRR”, arranjaram “justificações forjadas” para rejeitar o OE, escolheram o “sectarismo político” e as “clientelas partidárias” — e por aí fora.
Os ataques eram disparados à esquerda, mas, se o PAN costuma dizer que não se coloca de nenhum dos lados do espetro político, Sousa Real acabou por deixar claro onde prefere situar-se: a “alternativa” à aprovação do Orçamento, disse, será “voltar às políticas de Passos e de Portas” — recorreu mesmo à ideia de que Passos “mandou a nossa geração emigrar e não ser piegas” — ou às políticas da Iniciativa Liberal, que também rejeitou.
Mais: virando-se para o Chega — com André Ventura a sugerir com gestos e apartes, durante toda a intervenção, que se “juntasse” à bancada do PS — acusou a esquerda de “estender a passadeira vermelha à ascensão do populismo anti-democrático”.
Na terça-feira, o PAN até chegara a admitir votar favoravelmente o Orçamento para o deixar chegar à fase de especialidade — mas, por esta hora, já era matematicamente impossível que isso acontecesse, mesmo com a ajuda do partido. No entanto, a abstenção levou a um agradecimento de Costa, que chegou mesmo a citar Sousa Real no seu discurso final. Ficou no ar a ideia de que o PAN poderá ser uma solução para uma maioria com o PS no futuro, mas aos jornalistas Sousa Real recusou, para já, fazer “conjeturas”. A sintonia foi, no entanto, evidente: os argumentos da “responsável” do PAN coincidiram, em boa parte, com os que o próprio Governo usou para defender este Orçamento.
Como a esquerda sacode culpas
O jogo do passa-culpas continua e agora, com eleições à vista — a menos que Marcelo Rebelo de Sousa mude de opinião — convém aos partidos começarem a dar explicações, sabendo que o eleitorado os estará a ouvir e que daí tirará as suas ilações sobre uma crise política que é, em boa parte, inesperada.
No hemiciclo, sucederam-se — um pouco por todas as bancadas — explicações para o que falhou na solução política à esquerda. O Bloco foi o partido que quis ir mais longe nessa autópsia: se os bloquistas há muito tempo ensaiam a ideia de que “tudo mudou” em 2019, desde que António Costa não quis negociar um novo acordo político escrito e deixou de haver geringonça de papel passado, desta vez completaram o raciocínio. De manhã, Pedro Filipe Soares explicava detalhadamente como a esquerda tinha passado de se reunir semanalmente em grupos de trabalho variados a debater exclusivamente no Orçamento do Estado — o que explicará o que levou ao debate orçamental as leis laborais, que acabariam por ser um dos nós impossíveis de desatar na negociação. À tarde, Catarina Martins rematava: o que “matou a geringonça”, segundo as palavras da líder bloquista, foi a obsessão de Costa por uma “maioria absoluta”, que terá levado o primeiro-ministro a “romper todas as pontes”. Assim, desde 2019 que já se veria, ao fundo, uma crise a chegar: sem acordos escritos e compromissos assumidos, a confiança entre os parceiros esvaía-se.
O PCP também usou o argumento da confiança, frisando as promessas que ficaram, em Orçamentos passados, por cumprir para justificar o facto de não deixar passar este — mesmo contendo, como o próprio João Oliveira admitia, medidas propostas pelos comunistas, como um aumento de pensões “nunca” visto e o arranque da gratuitidade universal das creches. Mas os comunistas têm uma visão diferente: quando PS e BE falam na última legislatura, o PCP faz questão de frisar que nunca fez parte de uma maioria parlamentar nem apoiou o Governo; quando se referem à geringonça, o PCP fala apenas da “nova fase da vida política nacional”. Por isso, por aqui não houve grandes diagnósticos sobre a solução política, antes reclamações sobre os incumprimentos do PS. E uma vontade de rejeitar, até ao último momento, tocar sequer na expressão “eleições antecipadas”: o PCP tem insistido que não as provocou, que são uma opção de Marcelo e desta vez João Oliveira fez questão em falar nas “disputas eleitorais de 2023” — escassos minutos antes de chumbar este Orçamento.
O papão do Passos e da direita
Se a esquerda passou largos minutos de debate a apontar o dedo às bancadas vizinhas, há uma parte do discurso que não pôde abandonar: por muito conflito que haja entre as esquerdas, é preciso assegurar que o combate é feito contra a direita. As referências ao papão do Governo de Pedro Passos Coelho foram inúmeras. Desde logo, aproveitou-as o PS para acusar infinitas vezes a esquerda de “votar ao lado da direita” e até, segundo Ana Catarina Mendes, de aprovar assim os cortes de salários ou de pensões dos tempos da troika. O ministro de Estado e da Economia, Siza Vieira, fez questão de puxar pela ideia de que Passos teria convidado os jovens (“os nossos compatriotas”) a emigrar; até Sousa Real pegou no mesmo argumento. Costa, claro, fez o mesmo: “Se já se tinham esquecido do que era mesmo um OE de direita, ainda bem que Rui Rio foi tão claro aqui a explicar o que seria”. E desafiou: “A escolha política da esquerda é muito simples: quer estar com o Governo do PS ou somar-se à direita contra o Governo do PS?”. Os parceiros de esquerda quiseram descolar-se dessa sugestão — Catarina Martins chegou a dizer que a ideia de que este OE é “o mais à esquerda de sempre” é tão oca que “até a direita a repete” — mas o mais provável é mesmo que tenham muito trabalho a combatê-la mais vezes durante a provável campanha eleitoral que se segue.