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Declaração de amor de um trintão a Sharon Stone

Sharon Stone volta aos ecrãs esta madrugada com “Mosaic”, na TV Séries. À beira dos 60, é claro que não é o sex symbol que foi; é o ícone que ainda não louvámos suficientemente.

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Sim, Sharon Stone está de volta, numa série de seis episódios realizada por Steven Soderbergh, com estreia agendada para a madrugada desta terça-feira no TV Séries, à 01h (e uma maratona marcada para dia 28, tudo de seguida, às 16h15). Mas comecemos pelo nome em que toda a gente pensa: Catherine Tramell, a famosa escritora de policiais, de branco nada virginal, a ser interrogada pela polícia de São Francisco quanto ao brutal assassinato de Johnny Boz, antiga estrela rock e namorado dela. Acende um cigarro ainda que seja proibido fumar, assume que ter escrito um livro que antecipa todos os acontecimentos lhe dá o melhor dos álibis, toureia os inquisidores – até que se dirige directamente a um (Michael Douglas): “Alguma vez fodeu com cocaína, Nick?” (Talvez não se lembre, mas é disto que eles estão a falar.) E cruza e descruza as pernas, revelando a falta de roupa interior. “It’s nice”, conclui, quase angelical, mesmo que já ninguém esteja a ouvir.

[A cena do interrogatório em “Instinto Fatal”:]

A cena resumiu “Instinto Fatal” e fez dele um dos mais procurados, discutidos e imitados filmes do fim do século XX. Definiu uma época e uma carreira. Curiosamente, colou-se tanto à ideia que fizemos de Sharon Stone que nem nos lembramos de que tem um realizador – Paul Verhoeven – e um argumentista, estranhamente (ou não) um homem: o húngaro Joe Eszterhas, que se converteu então numa espécie de autoridade na matéria assinando, em catadupa, “Violação de Privacidade” (também com Stone), “Jade” ou “Showgirls”, depois de, no início da década anterior, ter escrito “Flashdance”, a meias com Thomas Hedley Jr. Mas Sharon Stone, que um dia se referiria à relevância de “Instinto Fatal” como “Ao menos, prova que sou loura natural”, foi – é – muito mais do que um cruzar de pernas.

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A redefinição da “femme fatale”

Qualquer pessoa nos trinta e tais, quarenta e alguns, o reconhecerá sem dificuldade: Sharon Stone é um dos maiores sex symbols das nossas vidas e desempenhou um papel insubstituível na educação sexual da adolescência nos anos 90. Naqueles anos de grunge e clubes de vídeo, MTV e emancipação pessoal, Stone foi o que Brigitte Bardot ou Bo Derek haviam sido para gerações anteriores (ainda que apenas 15 surpreendentes meses de idade a separem desta última). Foi a Madonna do cinema, já que os esforços da própria Madonna em assumir-se também como actriz se saldaram por um balanço, digamos, não especialmente retumbante.

Muito daquilo que nela parece provavelmente construção é, no fim de contas, natural. A começar pelo nome, que tem todo o ar de ter sido desenhado à medida para ser um sonante e facilmente memorável nome artístico e que é, afinal, o seu nome de baptismo. SharonYvonneStone.

Stone redefiniu os contornos da femme fatale, retirando-a definitivamente do lado da presa para a transformar no predador, despindo-a de qualquer vulnerabilidade e colocando-a inteiramente na posição de controlo, já não apenas enquanto objecto desejado, mas sujeito desejante, inteligente, brilhante, manipulador, dúbio, misterioso, sinuoso, impossível de agarrar. Foi fácil? Bastou-lhe o físico? Nem pensar. A primeira das coisas que não temos dito o suficiente acerca de Sharon Stone e que são da mais elementar justiça é esta: é uma actriz que trabalhou duramente primeiro que tivesse qualquer espécie de reconhecimento.

A rainha do clube de vídeo

É um pormenor curioso em Sharon Stone: muito daquilo que nela parece provavelmente construção é, no fim de contas, natural. A começar pelo nome, que tem todo o ar de ter sido desenhado à medida para ser um sonante e facilmente memorável nome artístico e que é, afinal, o seu nome de baptismo. Sharon Yvonne Stone nasceu no seio de uma modesta família da Pensilvânia e, antes de completar um ano de idade, já sabia falar e andar. Mais crescida, um teste revelou um Q.I. superior a 150 e tiveram de a mandar para uma turma de sobredotados – convenhamos: não exactamente o que costumamos esperar da nossa bomba sexual média.

Os estudos ficaram para trás quando começou a ganhar concursos de misses; tornou-se modelo e foi tentar a sorte como actriz. E tentou, e tentou, e tentou. Só lhe davam lugares de figurante, sem direito sequer a ser creditada na ficha técnica, mas, ao menos, podia gabar-se de ter aparecido na câmara de alguns dos mais celebrados cineastas do mundo: estreia-se no “Recordações”, de Woody Allen, em 1980, passa por “Les Uns et les Autres”, de Claude Lelouch, em 81, e, no mesmo ano, consegue as primeiras deixas com “A Bênção do Anjo Negro”, de Wes Craven.

[o trailer de “Mosaic”:]

Pela década de 80 afora, fez dezenas de filmes sem glória, que encheram as prateleiras dos clubes de vídeo das províncias desse mundo, muito antes de sabermos que nos estávamos a cruzar com uma das mulheres que, um dia, mais nos mexeria com a pulsação. Entre uma série de títulos de que não reza a história, avultam os dois volumes de “As Minas de Salomão”, a que assistimos numas tardes de sábado quando ressacávamos à falta de “Indiana Jones” e em que Sharon era a loura que dava graça a Richard Chamberlain.

Pelo caminho, perdia castings. Muitos castings. Tentou o papel de Willie Scott, justamente em “Indiana Jones e o Templo Perdido”, mas perdeu para Kate Capshaw (viabilizando assim, sem saber, a sequência de acontecimentos que levaria, anos mais tarde, ao casamento de Capshaw com Steven Spielberg). Tentou o de Alex Forrest, em “Atracção Fatal”, que afinal haveria de ser a pré-história de “Instinto Fatal”, e perdeu para Glenn Close. Tentou e perdeu para Kim Basinger a Vicki Vale do primeiro “Batman” de Tim Burton, em 89, e para a supracitada Madonna o de Breathless Mahoney no “Dick Tracy” de Warren Beatty. Mas a década estava a mudar e, com ela, também a sorte.

E Sharon Stone tornou-se Sharon Stone

De actriz anónima, entre milhares de outras aspirantes, a super-estrela global, foi um salto quântico. Como a própria diria, andava no meio há tantos anos, conhecia tanta gente, que, de repente, foi estranho habituar-se a ter tantas pessoas que antes nem lhe dirigiam o olhar a procurá-la nas festas e a falar-lhe como se fosse a criatura mais rara e fascinante à face da Terra. O excelente “Desafio Total”, de Paul Verhoeven, a partir de uma história de Philip K. Dick, deu o mote; dois anos depois, pelo mesmo Verhoeven, “Instinto Fatal” mudou a posição a todas as pedras do tabuleiro.

[Sharon Stone em “Desafio Total”:]

À vista de hoje, em que se fala de uma coisa e, no minuto seguinte, já a googlámos e estamos a ver no You Tube, poderá parecer estranho, mas, nesses remotos anos 90, a polémica provocada por “Instinto Fatal” alimentou-nos o imaginário muito, muito antes que pudéssemos realmente ver do que se estava a falar. Não era só esperar a estreia nos cinemas portugueses; um filme para maiores de 18 anos não iria estrear em sala fora de Lisboa ou do Porto. E se estreasse, quem nos deixaria ir? Foi preciso esperar que chegasse ao tal videoclube onde Sharon já reinara anos a fio sem o conhecimento da nossa indigente ignorância, e depois alugá-lo às escondidas, ou esperar que a cópia da cópia VHS feita pelo pai de alguém viesse finalmente ter-nos às mãos, quando chegasse a nossa vez entre a longa lista de espera de interessados.

À personagem com quem contracenava, não sabíamos, a cada momento, se esperava um orgasmo ou a morte, e a nós, espectadores, o olhar por cima do ombro parecia dizer que seríamos os próximos. Ou era isso que queríamos que dissesse. Essa contracena com o público, e não apenas com os restantes actores, isso é que fazia a diferença em Sharon Stone.

Sharon Stone tornou-se então o facho aceso na noite triste e macambúzia do “Creep” e das camisas de flanela, dos posters e das borbulhas. Mas era realmente mais do que o cruzar de pernas: era aquele olhar por cima do ombro de Michael Douglas, o olhar que repetiria nos filmes seguintes, por cima do ombro dos outros michaeldouglas, direitinho a nós, a pedir o nosso desejo e a nossa cumplicidade. A ameaça e a sedução ao mesmo tempo. Uma mistura de tesão e perigo. Ela tinha a culpa, mas não conseguíamos perceber bem do quê. À personagem com quem contracenava, não sabíamos, a cada momento, se esperava um orgasmo ou a morte, e a nós, espectadores, o olhar por cima do ombro parecia dizer que seríamos os próximos. Ou era isso que queríamos que dissesse. Essa contracena com o público, e não apenas com os restantes actores, isso é que fazia a diferença em Sharon Stone.

O fim de século e o fade out

De um minuto para o outro, Stone tornara-se a actriz mais requisitada de Hollywood. Não é que aparecesse um filme novo com ela todos os anos; era aparecer um filme novo com ela a cada seis meses. “Violação de Privacidade”, “O Último Grande Herói”, “Encruzilhada”, “O Especialista”, “Rápida e Mortal”, “Diabólica”, “A Última Dança”, “A Esfera”, “Os Poderosos”, “Glória”, “A Musa”, entre outros, só até ao final da década. Em muitos, foi uma imitação dela mesma, redefinindo uma época e deixando o thriller erótico, outrora um subgénero obscuro, à beirinha do mainstream; noutros, a heroína de acção ao lado de Schwarzeneggers, Stallones e Russel Crowes, porque outra das suas características notáveis era ser percepcionada – por mais estranho que isto soe – como uma miúda que os tinha no sítio. A meio, pairava a consagração como actriz, actriz mesmo, séria, dramática, muito mais do que “apenas” loura fatal: “Casino”, de Martin Scorsese, onde o papel de Ginger McKenna, a perturbada esposa troféu de Robert De Niro, lhe valeu o Globo de Ouro e a nomeação para o Óscar de melhor actriz.

[Sharon Stone em “Casino”:]

As escolhas de carreira nem sempre foram as melhores – nem nos “sins” que deu nem nos “nãos”. Tornou-se uma preferida dos Razzies e outras distinções para os “piores” do ano: pior filme disto, pior filme daquilo, mas também pior cabelo, pior casal, pior sotaque, pior por tudo e por nada, talvez a maior evidência de quão célebre se tornara. Ao mesmo tempo, tornava-se rotineiro ouvir isto: o filme vale por ela; ela a única coisa que vale a pena no filme – às vezes até: vale a pena só para ver como ela está vestida. Ou despida.

No novo século, entraria em lento “fade out”. Debilitada por uma hemorragia cerebral em 2001, foi aparecendo menos e mais modestamente. Entre aparições fugazes e insucesso de bilheteira, passou por um bom “Broken Flowers”, de Jim Jarmusch, e por “Bobby”, de Emílio Estevez. Em 2006, voltou a “Instinto Fatal” para protagonizar um segundo volume que, como de costume, valia por ela. Os amantes do futebol lembrar-se-ão também de uma aparição meteórica de Stan Collymore na sequência de abertura do filme e os fanáticos de “The Walking Dead” terão anotado ali, retrospectivamente, uma das primeiras aparições relevantes de David Morrissey – mais tarde, o Governador na terra dos zombies. Para todos os outros, houve apenas Sharon Stone, com a coragem de mostrar no grande ecrã a nudez de uma mulher de quarentas e muitos anos e a conservar intactas as propriedades mefistofélicas daquele olhar atirado na nossa direcção sobre o ombro das vítimas.

O ícone

Sharon Stone completará 60 anos no próximo 10 de Março. A Playboy votou-a nº 24 na lista das 100 estrelas mais sexy do século XX; a Empire como uma das 100 estrelas mais sexy da história do cinema e uma das 100 maiores estrelas do cinema de sempre – em geral; a People como uma das 50 pessoas mais bonitas e uma das 25 mais intrigantes. Ainda em 2006, a Zoo escolheu-a como uma das 50 babes mais “hot” de todos os tempos e, em 2011, a Men’s Health como uma das “hottest” – lá está – mulheres de sempre.

À parte isso, é há décadas a activista empenhada que já angariou milhões de dólares para causas como a luta contra a tuberculose, a malária e a sida, a ajuda aos sem-abrigo, às crianças pobres, a paz para Israel e a Palestina e a construção de escolas em África. Tem-nos ainda dado ao longo dos anos, do seu célebre Q.I., um sem-número de pérolas:

“Ter uma vagina e uma atitude, nesta cidade [Los Angeles], é uma combinação letal”;

“Talvez as mulheres possam fingir orgasmos, mas os homens conseguem fingir relações inteiras”;

“Três coisas que uma estrela deve ter? Uma morada desconhecida, amigos anteriores à fama e alguém que goste delas o suficiente para lhes dizer quando se estão a transformar nuns merdas.”

Numa altura em que tanto se fala do machismo de Hollywood, de não ter medo de falar e de reclamar para as mulheres o poder a que têm direito, Sharon parece alguém para quem devemos olhar.

9 fotos

Na madrugada desta segunda-feira para terça, volta aos ecrãs, desta vez os pequenos, com “Mosaic”, na HBO. Trata-se de uma missérie de seis episódios de meia hora que vai ser exibida em sequência, até ao final da semana. Criada por Steven Soderbergh, aventura-se nos terrenos pantanosos da interactividade à procura de um futuro para a indústria da ficção, com uma existência também sob a forma de app, lançada há dois meses e onde o público podia participar e fazer escolhas relativamente ao deslindar do mistério em causa. Afinal, uma vez despido disso, é um whodunnit? clássico, onde se investiga quem matou Olivia Lake, aliás, Sharon Stone, uma vez mais na pele de uma escritora (?), agora de livros infantis. A Time e o Guardian dizem que vale por ela. Já estamos habituados.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal)

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