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Deixou cair espetáculos, mas recusa-se a morrer. O regresso ao Citemor, um lugar de criação 

Depois de vários anos atribulados, só faltava uma pandemia. O festival, que esteve para não acontecer, cumpre a 24 de julho a 8 de agosto, em Montemor-o-Velho, a 42ª edição, com programa mais curto.

Ainda num outro país, na década de 60, o professor Paulo Quintela trazia os seus alunos do TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra) ao Castelo de Montemor-o-Velho para interpretar os autos de Gil Vicente. Vêm daí — e também de origens ainda mais antigas — as raízes daquilo que hoje conhecemos como Citemor e que terá a sua 42ª edição entre os próximos dias 24 de Julho e 8 de Agosto entre Montemor-o-Velho, Coimbra e Figueira da Foz.

Mais tarde, logo após a Revolução dos Cravos, a CITEC (Centro de Iniciação ao Teatro Esther de Carvalho) formaliza a então Semana de Teatro do Castelo de Montemor-o-Velho que viria a mudar para o nome atual em 1982. O primeiro festival liderado pela equipa de Armando Valente — que hoje divide a direção do Citemor com Vasco Neves — acontece dez anos volvidos. Eram jovens entre o final do ensino secundário e o início da Universidade e acérrimos espectadores do evento. Também por esse carinho, por sentirem que, de alguma maneira, este lhes pertencia, decidiram agarrar o projeto: “Isto mudou o curso das nossas vidas de uma forma que não podíamos supor. Quando arrancamos com a reestruturação, nessa primeira edição de 1992, era um projeto muito ambicioso. Achávamos que havia, na época, um potencial elevado, mas já não nos revíamos na programação que vinha a ser feita. Era uma programação muito pós-25 de Abril, era muito a Art’Imagem (do Porto), a ACERT (de Tondela) ou até A Barraca, criações pouco contemporâneas, digamos assim. E nós logo em 1992 abrimos o festival à dança, por exemplo. Queríamos fazer à nossa maneira”, conta Armando Valente.

Logo aí o jogou mudou. A atenção merecida pelos públicos — sobretudo por uma forte comunidade artística que se estabeleceu como espectador regular do festival —, o destaque dado pela Comunicação Social, tudo isso aconteceu logo em 1992. A programação ganhou irreverência, a dança ganhou aqui um lugar que jamais viria a perder, e apareceram também as produções próprias, as co-produções e as longas residências artísticas de criação que são ainda hoje uma marca do festival. Gradualmente, a coisa foi crescendo e foi-se cimentando, com uma rede de apoio de consultores — até porque a idade e ingenuidade não os permitia saber como fazer tudo.

Num tempo pré-internet chegaram a comprar um telefax, que foi um investimento enorme e acertado, garante Armando. “Acumulámos défice nas primeiras edições, o que não foi muito fácil de gerir. Mas também como forma de remediar isso fomos estabelecendo toda uma série de parcerias e acentuando mais recursos para a criação, para a co-produção e para projetos que normalmente começavam com uma residência de criação. Às vezes estreavam aqui, mas outras nem por isso, tinham estreias noutros sítios, esse glamour da estreia nunca nos deslumbrou. Sentimo-nos sempre mais úteis e confortáveis a fazer um trabalho mais invisível que acontece muitas vezes sem um ato público. Entender Montemor como um lugar dedicado à criação foi sempre o nosso intuito”.

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"Primeiro Mandamento" (Útero) © Helena Gonçalves

Helena Gonçalves

Um dos diretores do festival ainda se recorda de um empilhador a estender uma bobine de 1,5km pelo campo. Era isso ou gruas que montavam geradores em espaços onde não havia energia. O Citemor sempre cativou os criadores pelos espaços inusitados onde lhes permitia trabalhar. A escala de intervenção era enorme e visível para quem habitava ou frequentemente visitava o Vale do Mondego. Mas não foi só a internet que apareceu, foram todas as mudanças sociais que aconteceram ali e em todo o país: “Tínhamos uma outra escala de intervenção. O festival acaba por ser, durante as últimas décadas, uma testemunha privilegiada das transformações sofridas neste território, sobretudo por estar sempre a ocupar espaços muito interessantes e não convencionais. Por outro lado, nunca conseguimos fixar essa rede de espaços, uma vez que estes estavam constantemente a mudar de proprietário e de uso, e, portanto, os protocolos que conseguíamos para cada um era sempre relativamente limitada, ou a três ou a cinco anos. Diga-se que temos noção que a nossa capacidade de logística era enorme e que hoje já não temos”, confessa.

O Citemor queria “ter uma influência mais estruturante para a organização deste lugar que é Montemor-o-Velho”, mas embora possa ser um impulsionador, um bilhete de visita, nunca conseguiu transfigurar uma cidade de pequena dimensão, que já nem no verão é propriamente muito procurada. No fundo: “O festival acabou por se desenvolver de uma forma mais esclarecida e célere do que a cidade”, explica.

Os anos dourados decorreram dos 90 até à primeira metade dos anos 2000. Aí registaram-se concertos dos Test Department e dos Von Magnet — ambos na edição de arranque, logo em 1992 —, peças de Lúcia Sigalho, Francisco Camacho, Paulo Castro, O Bando (que em 1992 apresentou Borda d’Água num palco em pleno Mondego), o Teatro da Garagem, a Cornucópia, As Boas Raparigas, a Comuna, Rodrigo García, La Ribot. Mais tarde e até aos dias de hoje: John Romão, Miguel Bonneville, Mala Voadora, Teatro do Vestido, Angélica Liddell, Raquel André, Rui Catalão, Tiago Cadete, Patrícia Portela, Lígia Soares, Paula Diogo, João Fiadeiro. E a lista continuaria, como prova de um festival essencial que promoveu, por exemplo, a estreia nacional do hoje essencial encenador e dramaturgo hispano-argentino Rodrigo García (que desenvolveu a sua mais famosa peça A História de Ronald, o Palhaço da McDonald’s nestas paisagens) e que é, sem dúvida, um dos espaços simbólicos mais importantes das artes performativas em Portugal.

Durante bastante tempo, quando todo em país — não como agora, mas ainda assim com os persistentes valores que são os apoios às artes em Portugal — as estruturas artísticas sentiam a falta de investimento público, o Citemor continua a crescer, “claramente contra a corrente”, admite Armando Valente antes de acrescentar: “No final dessa década, durante o mandato de António Guterres, há um momento de apoio às artes muito particular em Portugal, em que se viveu um momento de confiança e expectativas, onde existiu uma valorização do papel dos criadores na sociedade. O investimento nessa altura também foi maior”. E Montemor continuou a ser um lugar de criação.

Na segunda metade dos 2000, o desinvestimento público foi enorme. “Ainda conseguimos contrariá-lo durante alguns anos, com investimento exteriores, mas depois já não foi possível. A grande dificuldade foi quando perdemos o apoio do poder central, que coincidiu com o Governo de Passos Coelho e da Troika, e com as alterações todas que foram feitas aos concursos. Nós tínhamos tido apoio desde que estávamos à frente do festival e ainda agora é difícil falar disso”, afirma. Sem apoio da DGArtes — de 2013 a 2016 — o Citemor nunca deixou de existir. E ainda assim não deixou de trazer gente tão influente internacionalmente como a encenadora — e poetisa e dramaturga e atriz — espanhola Angélica Liddell. E o ano passado, por exemplo, trouxe PS/WAM, uma das últimas criações de Rodrigo García.

Diga-se também, que, pelo meio, o apoio da DGArtes voltou: “Estamos habituados a trabalhar em cenários muito complexos. Nesses quatro anos sem financiamento do Estado, o festival não deixou nunca de se realizar. Com a mudança de Governo voltámos a ter candidaturas, como até aí tínhamos tido, elogiadas pelo júri, ainda que não tenhamos conseguido regressar ao financiamento de outros anos”, diz Armando Valente. Agora que as coisas tornavam ao seu rumo — embora saibamos que residências artísticas de criação de cinco semanas e com equipas de grande dimensão como acontecia nos tempos de maior fulgor já dificilmente voltarão a ter lugar — surge uma pandemia que volta a relembrar a instabilidade que o Citemor e as artes vivem em Portugal.

"Biblioteca" © Bruno Simão

O festival esteve para não acontecer, deixou cair pedaços da sua programação (mais precisamente quatro espetáculos que eram quase todos projetos que já tinham estreado ou tinham outras datas para o efeito), mas está vivo e continuará a resistir. “No início não sabíamos, mas achámos que era preciso esperar. O quadro pandémico aparece numa altura em que temos a programação já fechada, avaliada sob o ponto de vista financeiro, de produção, técnico. Todo esse desenho caiu. Durante algum tempo, estivemos serenamente a aguardar e ainda considerámos não fazer. Ou seja, clarificámos perante a DGArtes que não teríamos condições para recalendarizar o festival. As salas que tínhamos na Figueira da Foz não estariam disponíveis, em Coimbra ainda tínhamos o TAGV [Teatro Académico Gil Vicente], e ainda outros espaços ao ar livre que cairiam. Não havia condições para fazer o festival no outono, é um festival de verão, não fazia sentido que fosse de outra maneira. E mais ainda: a impossibilidade de reunir as equipas artísticas e do festival que noutra altura que não esta”.

Como sempre, a preocupação do Citemor foi os artistas. “Desde a primeira hora a nossa missão não foi como é que vamos poder fazer o festival, foi mais no sentido de perceber o que podíamos fazer. O diálogo sereno, quer com a DGArtes, quer com os artistas, foi constante”, explica o diretor. Prosseguiram focalizando o seu dinheiro para as residências, sendo certo que as equipas são mínimas e a seleção dos projetos já foi feita nesse sentido, ou seja, se já antes da crise provocada pelo novo coronavírus era preciso pensar na escala do Citemor, mais agora se justifica.

A edição arranca na próxima sexta-feira com Atlântico (de Tiago Cadete), no Teatro da Cerca de São Bernardo (em Coimbra) e no dia seguinte, no Castelo de Montemor-o-Velho chega uma apresentação informal de uma nova criação da Útero, de Miguel Moreira e Romeu Runa: Primeiro Mandamento — Romeu e Julieta, direção de Miguel Moreira que pretende aqui dar nova vida às partituras que o lendário compositor russo Serguei Prokofiev fez para ballet. A 31 de julho, no Castelo de Montemor-o-Velho realiza-se a #45 edição das Conversas Fictícias, que junta o escritor Gonçalo M. Tavares e o realizador e artista visual catalão Ignasi Duarte. Um dia depois, no mesmo local, dá-se a estreia de Se Alquila. Montemor, uma criação de Óscar Carnago e Juan Navarro. Dia 7 de agosto, ainda entre muralhas, o coreógrafo e bailarino Miguel Pereira junta-se ao coreógrafo espanhol Guillem Mont de Palol para apresentarem Falsos Amigos. E no dia seguinte, no Núcleo Museológico do Sal, na Figueira da Foz, a Orquestina de Pigmeos — estrutura de criação experimental que junta o músico Nino Gallego e o artista visual Chus Domínguez — dá-nos Mondego. Já Biblioteca é uma instalação de Horácio Frutuoso prevista para a Casa das Artes Bissaya Barreto, em Coimbra, e que, entretanto, passou para o Castelo de Montemor-o-Velho. Prova de que por estes dias não controlamos nada de forma plena.

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