Nem a chamada de atenção de uma vizinha impediu Joaquim (nome fictício) de virar costas ao fogo que acabara de atear. Tinha sido contratado pelo proprietário daquele terreno, anexo a uma moradia, para limpar o mato que ali tinha crescido. Joaquim, de 71 anos, cortou os arbustos, mas estava sem vontade de remover e transportar os que ficaram espalhados. Recorreu, por isso, ao fogo. Era pleno agosto, em S. Félix da Marinha, uma freguesia de Vila Nova de Gaia. Com um isqueiro, Joaquim ateou as chamas em quatro pontos e abandonou o local. Sem ninguém para vigiar o que ardia, o incêndio alastrou-se rapidamente e acabou por consumir uma área com quase um hectare. Várias casas ficaram em perigo e a Polícia Judiciária (PJ) admite que o fogo só não assumiu outras proporções devido à intervenção rápida dos Bombeiros de Vila Nova de Gaia e da Aguda.
Joaquim está na lista de detidos pela PJ, este ano, por suspeitas de fogo posto. Casos como o dele são frequentes: “Temos muitas situações em que a utilização que as pessoas fazem do quotidiano da floresta não é a mais indicada. Depois, algumas situações mais graves acabam por ir parar à PJ, porque tiveram consequências muito graves” explica a psicóloga Cristina Soeiro, responsável pelo Gabinete de Psicologia e Seleção na Escola de PJ, que estudou o perfil dos incendiários, detidos desde 1997.
O número de detenções em incêndios florestais, em 2018, vai, à data de publicação deste artigo, em 33. Treze ficaram em prisão preventiva. São números bem menores do que os de 2017. Há exatamente um ano, esse número estava prestes a chegar às nove dezenas. “Não há grandes alterações em relação ao ano passado. Há menos detidos, mas os detidos que temos encaixam no padrão que temos”, adianta Cristina Soeiro ao Observador.
Esse padrão descreve os incendiários portugueses como “indivíduos que vivem na floresta e que, quando assumem o que fizeram, consideram o seu comportamento pouco grave, porque ‘não mataram ninguém’, como costumam dizer. Acham que a floresta volta a crescer depois e que não é grave. Nalguns casos, os fogos resultam de fogueiras feitas a horas indevidas, noutros são situações mais graves, de doença mental. Mas não existem pirómanos em Portugal. Aliás, mesmo em termos internacionais é muito raro”, explicava a psicóloga ao Observador, em 2016, na altura da divulgação dos resultados do estudo feito aos perfis dos 500 incendiários que constavam da base de dados da PJ.
Se o perfil se mantém, o que fez com que o número de detenções diminuísse? É certo que o verão atípico, mais fresco e chuvoso, fez com que o número de incêndios fosse menor e, com ele, o número de incendiários detidos, mas o incêndio de Pedrógão Grande e os de outubro, que se seguiram, podem ter tido aqui um papel fundamental: assustaram os que, muitas vezes, eram responsáveis por grandes fogos por negligência. Fonte da PJ explica ao Observador que as duas tragédias introduziram “um fator determinante na perceção do perigo“. As pessoas perceberam o que uma inocente queimada pode representar e pensam duas vezes antes de atear fogo para se livrarem de sobrantes do mato ou lixo, por exemplo. Casos como o de Joaquim podem, assim, vir a diminuir cada vez mais.
“Não é só o mato que arde, são as vidas humanas”. Como Pedrógão poderá ter mudado hábitos
Os carros completamente derretidos pelas chamas, naquela que ficou conhecida como a “Estrada da Morte”. Os corpos tapados com lençóis brancos entre os eucaliptos ardidos. A nuvem de fumo gigante erguida sobre o Pinhal de Leiria. As casas completamente destruídas que deixaram famílias inteiras sem nada. As imagens do incêndio de Pedrógão e do “pior dia do ano de incêndios”, em outubro, mudaram a relação de muitos com o fogo. Agora, depois do que aconteceu, “quando as pessoas riscam um fosforo, têm a perceção clara de que dali pode resultar uma tragédia. Uma coisa é ver a floresta a arder, outra coisa é verem pessoas morrer, os nossos familiares. As pessoas perceberam que não é só o mato que arde, são as vidas humanas”, salientou fonte da PJ ao Observador.
Não terá sido apenas o choque emocional da tragédia. A mesma fonte da PJ acredita que os incêndios de 2017 tiveram “uma influência enorme no comportamento de muita gente porque introduziram um fator muito importante na consciencialização da comunidade para o perigo dos incêndios”. “As pessoas perceberam a catástrofe que se pode gerar“, acredita a psicóloga Cristina Soeiro, alertando: “As pessoas que vivem em contexto rural têm uma maior ligação à terra e ao uso do fogo como uma ferramenta do quotidiano. O facto de se ter falado das consequências e da responsabilidade também pode feito com que algumas pessoas que sentem que têm mais confiança no assunto, agora tenham outro tipo de pensamento”.
Ainda é cedo para determinar, com certeza, se esta sensibilização se traduziu, de facto, num menor número de queimadas que saíram do controlo e, por consequência, nesse menor número de incendiários para deter. Talvez “só daqui a três ou quatro anos é que se poderá a ter uma ideia se isso foi decisivo ou não“, diz fonte da PJ, ainda que a psicóloga Cristina Soeiro vá ter este fator em conta na análise que faz todos os anos dos incendiários detidos. “Quer queiramos, quer não, o facto de haver maior divulgação de medidas, da responsabilidade que as pessoas têm, também pode ter alguma influência, principalmente naquelas situações mais graves de negligência que podem originar depois um cenário mais grave”, explicou ao Observador.
“Muitas vezes, pensamos que os adultos já não aprendem. Não é verdade”
“Só quando começámos a ter consequências graves na vida das pessoas — e não só na parte florestal, porque a morte das árvores é uma consequência grave — é que de facto houve aqui uma outra perceção, mesmo a nível dos movimentos sociais e políticas”. A psicóloga Cristina Soeiro lamenta que assim seja e que “no inverno não se fale do assunto”. Mas já que assim é, a especialista alerta que a “mudança de comportamento pela negativa”, como a aplicação de multas, “não é suficiente”.
“Há todo um trabalho a fazer para cativar os cidadãos no sentido positivo da sua responsabilidade e como é que eles o podem fazer. Muitas vezes pensamos que os adultos já não aprendem. Não é verdade”, explicou Cristina Soeiro ao Observador, acrescentando que é preciso perceber “que condições é que as autarquias dão para as pessoas poderem ter comportamentos adequados em relação ao uso da floresta e ao uso do fogo”.
Porque, para a psicóloga, “este problema não se prende com a prisão”. Dos 33 detidos, até ao momento, 13 encontram-se em prisão preventiva. Cristina Soeiro reconheceu que, sendo a prisão “uma forma de intervenção de contenção”, é muitas vezes utilizada “em períodos como o verão” porque, não fazê-lo, “pode ser um fator de risco”. “É uma espécie de intervenção de SOS de contenção do comportamento criminal”, resume.
Ainda assim, a psicóloga considera que “o que se faz a seguir” é “uma questão mais importante”. Tem de haver um “trabalho conjugado” e “integrado”. “A intervenção do fenómeno do fogo posto implica a vertente da saúde mental — deve passar para prisão se for necessário, com a monitorização do indivíduo a nível da problemática que leva ao incêndio –, mas tem de haver uma intervenção para mostrar às pessoas das comunidades rurais as boas práticas no uso da floresta”, disse.
O objetivo é sempre o mesmo: evitar que as queimadas, sempre vistas como tão “inocentes”, mas que estão, tantas vezes, na origem dos fogos, não acabem em tragédias como as de 2017.