O dia tem 24 horas, mas nas 24 horas de Ana Gomes cabe muita coisa. A candidata a Belém, que tem hesitado sobre se a campanha eleitoral deve prosseguir devido ao agravar da pandemia, e que ontem pôs o pé no travão devido ao suposto contacto com Marcelo, que estaria Covid-positivo (o que não se verificou), voltou hoje à estrada e pôs o pé no acelerador. Literalmente. Chegou a Santarém às 10h a conduzir o seu próprio carro, e saiu de lá da mesma forma, com dois elementos da sua curta equipa nos lugares do pendura. Passou em Lisboa, Marcelo passou por ela sem o saber, e amanhã cedo arranca para Cinfães. Nas 24 horas de Ana Gomes, hoje, couberam todos os temas: descentralização, touradas, alterações climáticas, saúde, polícia, extrema-direita e jovens.

Munida de caderno e caneta, a candidata começou o dia sentada à mesa com o autarca de Almeirim e presidente da Comunidade Intermunicipal (CIM) da Lezíria do Tejo, Pedro Ribeiro, com o presidente da Assembleia Municipal da comunidade (e também presidente nacional do Inatel), Francisco Madelino, e com o ex-autarca de Santarém e ex-secretário de Estado das Florestas de José Sócrates, Rui Barreiro, e perguntou. Perguntou, perguntou, perguntou. Da “chacina” na herdade da Torre Bela, na Azambuja, à descentralização, passando pela autonomia das autarquias na gestão dos fundos europeus e pelas “sinergias” da CIM com a área metropolitana de Lisboa, Ana Gomes quis também saber como é que a região ribatejana se está a adaptar à crise pandémica (“não perdemos assim tantos postos de trabalho como nas áreas urbanas porque o setor primário e agro-industrial é maioritário”, respondeu-lhe o autarca) e ao combate às alterações climáticas.

É que, a par do Alentejo, o Ribatejo é a região do país que mais está a sofrer o impacto das alterações climáticas, sendo mais quente no pico do verão do que a própria vila alentejana da Amareleja. Transição energética, importância das barragens para o armazenamento de água para a agricultura, transição digital, economia verde, mobilidade entre concelhos — foi a todas. E até foi ao tema mais sensível que poderia ter levado para cima daquela mesa: a tauromaquia. Pedro Ribeiro, presidente da câmara de Almeirim, não lhe deu saída: “Os 11 presidentes da câmara da região são a favor” disse laconicamente, antes da candidata ter terminado a questão. E a questão era sobre se estava a haver “algum pensamento” no sentido de conferir alguma “inovação” aos espetáculos tauromáquicos, sem beliscar os direitos dos animais. Agenda do PAN? Ana Gomes diz que não, que são essas as suas “convicções”. À mesa da reunião, Francisco Madelino haveria de procurar chegar a um equilíbrio entre a candidata e o autarca anfitrião: não há feira em Santarém sem largadas de touros mas “não há tortura do bicho”.

Dali, sem consenso à vista, mas com cordialidade (e é de notar que estava entre socialistas), Ana Gomes pegou no carro e arrancou para o comando distrital da PSP de Santarém, para reunir com a direção. Foi depois dessa visita que mostrou, em declarações aos jornalistas, como é que se ultrapassa André Ventura pela direita: a esquerda não pode desvalorizar as forças de segurança e deixar esse tema nas mãos da extrema-direita, porque depois dá asneira. E por asneira referia-se às infiltrações de movimentos de extrema-direita nas forças de segurança que se começa a ver um pouco por todo o lado, não só em Portugal como lá fora, sendo exemplo disso a recente invasão do Capitólio nos EUA. André Ventura pisaria aquelas mesmas ruas de Santarém umas horas mais tarde — estava feita a marcação.

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Era já perto da 13h quando chegou ao hospital distrital de Santarém, o terceiro ponto da sua agitada agenda matinal. Deveria ter chegado às 12h, pelo que a equipa de profissionais de saúde que estava destacada para a receber, em plena pandemia, já lá estava há um bom tempo à espera. Mas nas 24 horas de Ana Gomes cabe tudo, e faltava o tema da saúde — um dos mais importantes e transversal a todas as candidaturas. Check.

Santarém ficou para trás e Ana Gomes voltou a Lisboa. Era tempo de inaugurar um painel em tamanho gigante no muro entre a Ferreira Borges e as Amoreiras. O passeio era estreito para tanto aparato, que resvalava não raras vezes para a beira da estrada. Os carros passavam mais ou menos indiferentes à candidata, que ia dizendo que optou por não gastar dinheiro em outdoors e gostou desta proposta que o designer da sua candidatura fez: um mural de street art com um design moderno, apelativo para os jovens (um público alvo de quem Ana Gomes não tira os olhos nem por um minuto).

Os carros passavam e passavam. Alguns apitavam, outros criticavam o ajuntamento. Outros ainda gritavam pela janela o nome de outros candidatos à mesma corrida (“Ventura a Presidente”, ouviu-se uma vez). E eis senão quando um carro passa com, nada mais nada menos do que o Presidente da República ao volante. Ana Gomes não viu, Marcelo também não parou (apenas olhou fugazmente para o conjunto de pessoas num local pouco próprio), mas olhares mais atentos registaram (mentalmente) o momento. Nem para a fotografia deu. Quem também passou, por coincidência, foi Rui Tavares, fundador do Livre e apoiante de Ana Gomes, que tinha ido buscar o filho à escola e, vendo a candidata em tão estranho local, acionou os quatro-piscas para deixar um ‘olá’. Neste caso, um ‘até amanhã’. É que Rui Tavares vai estar amanhã com Manuel Alegre numa conferência online de apoio à diplomata.

Afinal, há coincidências. Marcelo passou ao lado de Ana Gomes (mas não parou)

Marcelo Rebelo de Sousa está sempre presente, aqui ou ali, no discurso de Ana Gomes, mas esta quarta-feira, segundo dia com o pé na estrada, o alvo indireto foi André Ventura. Começou com a reunião de Ana Gomes com a direção do comando distrital da PSP de Santarém, que serviu para alertar para o problema da valorização das carreiras das forças de segurança, que não é apenas um tema da “extrema-direita securitária”. “Deve” ser também um tema da esquerda, porque forças de segurança motivadas é essencial para forças de segurança a melhor cumprirem a sua missão. Caso contrário, começa a haver movimentos de extrema-direita “infiltrados” nas polícias, o que não é bom. Estava feito o alerta, horas antes de André Ventura se deslocar precisamente a Santarém.

Cereja no topo do bolo: se André Ventura apelidou em tempos Ana Gomes de ser a “candidata cigana”, Ana Gomes mostrou que não rejeita o rótulo quando se cruzou na passadeira com uma senhora de etnia cigana que a reconheceu. Se um diz que se candidata a Presidente mas não para ser o Presidente de todos os portugueses, a ex-eurodeputada socialista quis mostrar que, quanto a si, será mesmo Presidente de todos os portugueses caso seja eleita. E enquanto isto, um carro com bandeiras e holofotes de apoio a André Ventura passava em pano de fundo…