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Não é fácil chegar a uma lista de melhores discos da década, até porque nem é fácil decidir quando é que o raio da década começa e acaba. Por mim, fazia este exercício para o ano, mas já estou no lado errado dos quarentas e não tenho idade para me chatear: querem que seja este ano? Siga.

A questão seguinte é: quantos discos se elegem? Dez? Vinte? Cinquenta? Cem? Comecei por juntar os meus discos de cada ano mais alguns discos que constam de outras listas e me haviam escapado na altura e acabei com centenas, o que me provocou uma forte dor de cabeça (pese embora esta talvez se devesse a uma valente ressaca que insiste em não passar de vez).

Resumindo: esta é uma lista pessoal, mas que pretende refletir as inflexões da década, razão pela qual procurei não incluir mais do que um disco de nenhum artista, de modo a ter a maior diversidade possível.

Os 10s foram a década em que o hip-hop destronou por completo o rock, terreno que foi tomado por mulheres jovens que usam as guitarras para se fazerem ouvir. Ouvimos mais negros e ouvimos mais mulheres, o que talvez seja um sinal de que a nossa empatia aumentou, ou então (e é o mais provável) de que negros e mulheres lutaram mais pelos seus direitos, expondo-nos a discursos a que não estávamos tão habituados.

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Todas as listas de discos estão erradas, porque cada pessoa teria uma lista diferente – as suas únicas qualidades são mostrarem-nos discos que não conhecíamos e porem-nos a conversar sobre o porquê de gostarmos disto e não gostarmos daquilo. Se esta lista servir para isso, já terá cumprido a sua função.

2010

Kanye West: My Beautiful Dark Twisted Fantasy

Há muitos anos, antes de ser conhecido por defender presidentes proto-facistas, pelo seu casamento com uma produtora de conteúdos eróticos de mau gosto ou, basicamente, por ser um acidente com demasiada necessidade de atenção, o músico Kanye West era capaz de arrancar às suas entranhas os mais estranhos e sedutores objetos – é o caso de My Beautiful Dark Twisted Fantasy, que visto à distância corresponde a uma era muito específica, quando o hip-hop deixou de ser suficiente e se tornou pop e pôde ser grandiloquente. O mundo mudou: as canções hoje são mais curtas, mais retalhadas, menos ambiciosas – o mundo sucumubiu à velocidade e Kanye West sucumbiu ao cérebro disfuncional de Kanye West. Mas, por um breve instante, ele foi um mago da manipulação do sample e da rima certa na batida certa.

Beach House: Teen Dream

De 2008 a 2012, os Beach House, com as suas canções em compasso ternário, corações em colapso, órgãos espaciais com guitarras slide oníricas em redor, foram a materialização musical da perfeição, a banda-sonora das paixões quase-adultas de uma geração que se aprestava a atirar fora o cinismo e fazer filhos. A voz ciciante de Victoria Legrand (casa comigo, Victoria, não é tarde) cirandava por entre cenários hiper-românticos, ecoando uma longa panóplia de dores amorosas, como se a relação entre dois seres humanos fosse um Calvário que, estranhamente, lhe dava prazer. Bloom, de 2012, talvez seja o pináculo da escrita da dupla, mas Teen Dream foi o momento em que tudo pareceu certo, em que eles eram a mais importante banda ao cimo da terra – e tinham canções como “Walk in the Park”, “Used to Be”, “Real Love” e esse espanto que é “Take Care”. (Casa comigo, Victoria, não é tarde.)

2011

Shabazz Palaces: Black Up

É sempre uma alegria quando podemos dizer que não há nada que soe assim – e a estreia dos Shabazz Palaces é um desses momentos: apesar de a banda ser o novo projeto de Ishmael Butler, o antigo líder dos Digable Planets, não há muita música que se compare à que se ouve em Black Up – os cLOUDDEAD, algum rap de fusão, talvez. Black Up é um daqueles inacreditáveis momentos em que yin e o yang se encontram em equilíbrio perfeito, em que o ouvido experimental faz as pazes com o ouvido pop e depara com uma experiência sónica que produz tanto espanto quanto alegria: funk sinistro, eletrónica sombria, beats esfrangalhados, melodias de marimba escangallhadas – tudo em Black Up é esquisito e tudo em Black Up é fascinante, e se precisarem de um exemplo basta “Are you… Can You… Were you? (Felt.)”. Há música para a qual é preciso ter os ouvidos bem abertos – e há música que nos deixa de boca aberta. Oito anos depois, ainda é o futuro.

Halloween: Árvore Kriminal

Talvez nunca tenha havido rap de rua tão violento em Portugal como com Árvore Kriminal, mas, por outro lado, dizer isso talvez seja diminuir o valor lírico das rimas de Halloween, que não está interessado em mostrar “a verdade” ou acalmar a consciência, antes em cuspir o seu interior com uma honestidade assustadora. Para o susto muito contribui a voz cavernosa de Halloween, mas também a produção sufocante mas precisa que torna este marco do hip-hop nacional numa das maiores tareias emocionais da década. Sintetizadores sombrios, samples neuróticos, a voz de gravilha e o outro lado do mundo, para o qual normalmente não temos coragem de olhar e que nas palavras de Halloween se torna demasiado vívido para ignorar.

2012

B Fachada: Criôlo

E de repente o mais branco dos jovens turcos saídos da Flor Caveira sintonizou a RTP África, botou a guitarra no lixo, tirou a roupa e criou a banda-sonora das noites do B. Leza do futuro. Criôlo é feito de sintetizadores farsolas, ritmos africanos, e uma inigualável verborreia libertária que inclui frases como “Muita mama e boa foda / é bestial”. É uma espécie de purgante que lava a alma de hipocrisia e põe a anca a mexer – e é o melhor disco de B Fachada (que já havia assinado um par de clássicos, no seu trajeto), mas é mais que isso: num país conservador, que nunca olhou com atenção para as suas ex-colónias, é a celebração da criatividade desenfreada, da dança, do sexo, da vida no que esta tem de mais cru e irreprimível.

Diabo na Cruz: Roque Popular

Há anos assim, em que a música pop portuguesa resolve pôr um pé fora do nicho apenas para descobrir que consegue encher estádios. Roque Popular, à boleia de “Dona Ligeirinha”, um single extraordinário, chegou a muita, muita gente, muito graças à sua inusitada fusão de rocalhada com folclore tuga, que tinha espaço para afunkalhar ocasionalmente, para apopalhar quando fosse necessário. Num país que tem tanta dificuldade em lidar com a sua própria língua, Roque Popular – o único disco saído da Flor Caveira a atingir mais que estatuto de culto – foi uma bênção.

Frank Ocean: channel ORANGE

Há argumentos que favorecem Blonde como o melhor disco de Frank Ocean, mas bastava um para que o eleito fosse channel ORANGE: “Thinkin bout you”, um R&B lento, sacana, sofrido, cheio de sintetizadores e de cordas, cantado em falsete – um daqueles assombros que marca uma época e ficará para sempre, tipo “Purple Rain”. channel ORANGE é, antes de mais, um milagre de som, um doutoramento em revestimento de R&B a seda, um dos discos sexualmente mais carregados que a humanidade já produziu. Num álbum repleto de canções extraordinárias (“Pyramids”, caraças, “Pyramids”, ou então a espantosa “Crack Rock”) há ainda “Super rich kids”, a canção que melhor resume a vida de excesso dos filhos dos ricos – e que, se houver justiça neste mundo, se ouvirá no fim de “Succession”.

2013

Blood Orange: Cupid Deluxe

Apontem isto: não houve ninguém (ninguém) a fazer tanto pela música negra desde Prince como Devonté Haynes. Vocês sabem quem Devonté é, mesmo que não saibam: conhecem-no porque foi ele que escreveu “Everything is embarassing”, de Sky Ferreira, e “Losing you”, de Solange. Mas não o conhecem porque ninguém liga nenhuma à sua “banda”, os Blood Orange, onde ele leva ao limite a reescrita do que a soul e o R&B podem ser, algo que fica claro com os primeiros compassos de “Chamakay”, a faixa de abertura “Cupid Deluxe” (aquilo é uma marimba sintetizada, a abrir?). Baixos slapados, caixas de ritmo estragadas, sintetizadores manhosos, saxofones sofridos – a música de Dev Hynes tinha tudo para correr mal. Mas Hynes não só tem uma noção quase sideral do que um beat pode ser, como do épico em potência numa melodia. A finalizar Cupid Deluxe vem a mais espantosa canção de amor da década, “Time will tell”, a única canção de amor não feita por Prince que Prince gostaria de ter feito. Um piano, uma bateria – e a canção que coloca Hynes para todo o sempre no panteão.

Solange: True

Os anos 10s do século XXI viram o hip-hop e o R&B tomar definitivamente o topo das tabelas, destronando o rock’n’roll enquanto música da juventude, enquanto símbolo do que está a acontecer agora, das mudanças culturais e sexuais. Há cada vez mais mulheres fortes e donas de si e talvez nenhuma tenha tanto impacto como Beyoncé – mas musicalmente a música é outra, e Solange, a irmã mais nova, é mais fascinante que a rainha. Sendo que por muito interessantes que When I Get Home e A Seat at the Table sejam, o melhor de Solange foi este magnífico True, admirável exemplar de como se pode ser simultaneamente comercial e inventivo. O single “Losing you” é firme candidato a canção da década mas o que dizer dessa admirável experimentação sónica que é “Some things never seem to fucking work” ou de “Lovers in the parking lot”? Sexy, dançável, meloso, a espaços verdadeiramente futurista e genial, True é o melhor disco de R&B da década.

2014

Kate Tempest: Everybody Down

A estreia de Kate Tempest nos discos não foi de sonho – foi de pesadelo. Um pesadelo urbano, industrializado, sofisticado, descrito na forma de quase-romance: Everybody Down descreve uma série de personagens do mundo do entretenimento, invariavelmente enredadas no seu narcisismo, nos seus sonhos de ascensão social, na sua dependência de drogas. Esta narrativa é embrulhada sob a forma de canções hip-hop sujo e sombrio, metálicas, por vezes difíceis de tragar – e são entregues com uma ferocidade rara, que confere emocionalidade à imensa fragilidade das personagens. Não é o retrato da época nem um exemplo de sucesso – é o negativo das histórias cor-de-rosa, um choque de realidade.

War On Drugs: Lost in the Dream

Não é exatamente fácil ter sucesso com um som que poderia encontrar lugar num disco dos Dire Straits, com aquelas baterias abafadas e toalhas e toalhas de sintetizadores, em que à vontade metade das canções são longos solos de guitarra – isto numa era em que as guitarras têm cada vez menos importância e adeptos. Mas talvez seja isso que Lost in the Dream é: o último grande disco de guitarras, que se está a borrifar para o bom gosto, não se importa de derramar azeite por todos os poros e resolve as suas dores em crescendos épicos que não seriam descabidos num álbum de Springsteen. Que mais não fosse, Lost in the Dream deixa-nos “Red Eyes”, uma das mais espantosas canções de dor de corno da década.

Sharon Van Etten: Are We There

Houve ali um período, de 2010 a 2014, em que Sharon Van Etten foi como que a sacerdotisa das nossas dores emocionais, a bruxa que purgava os líquidos tóxicos do nosso corpo, com aquela voz arrasadora que subia quando a sua guitarra descia aos acordes menores. Epic e Tramp são discos excecionais mas é em Are We There, o retrato de uma mulher que sobrevive a uma relação disfuncional, que ela atinge o estatuto de clássico ao conceber um disco cujo alinhamento parece o topo de uma tabela  de singles: canções como “Afraid of Nothing”, “Your Love Is Killing Me”, “Tarifa”, “I Love You But I’m Lost” ou “Every Time the Sun Comes Up” são das mais belas facadas no coração desta década.

2015

Kamasi Washington: The Epic

A grande vitória de Kamasi, em particular em The Epic, não foi injetar inovação no jazz, foi conseguir levar o jazz a uma nova geração sem o tornar facilitista. Fiel ao seu nome, Epic é épico, uma operação em larga escala, consciente de estar no século XXI mas também dos baús onde quer resgatar o passado: o jazz mais aparentado de soul, ou a música de fusão dos anos 70 – toda a música que tenha uma dívida para com Bitches Brew, de Miles Davis. Epic é daqueles discos em constante mutação, que nos assalta com a sua paixão mas nunca perde a noção de melodia nem de sedução. Um grande disco.

Sufjan Stevens: Carrie & Lowell

Em 2004, Sufjan Stevens lançou Seven Swans, um disco de folk tão suave que me irritou tremendamente – ao ponto de a cada novo disco de Sufjan eu não passar de um minuto de audição, tão presente era a anterior recordação. Até que um dia, numa daquelas playlists que o Spotify cria a partir de um tema, do nada surgiu uma canção em que um homem se masturba enquanto alguém lê mensagens de texto – uma espantosa, esquelética e dolorosa canção chamada “All of me wants all of you”. E só aí ouvi com atenção Carrie & Lowell, a história da mãe alcoólica de Sufjan, com quem ele não teve proximidade até quase à morte desta e do seu companheiro. Umas vezes cruel, outras comovente, é uma duríssima indagação, Sufjan à procura de entender o que é, o que significa ser filho de quem foi, o que herdou, o que perdeu. Às vezes Carrie & Lowell nem parece um disco, antes uma prece, uma tentativa de perdoar e amar no matter what, às vezes Carrie & Lowell não parece um disco, antes as entranhas musicadas de Sufjan – e isso passa na voz dele, linha pungente após linha pungente, levando até um cínico como eu ao raiar das lágrimas. “Did you get enough love, my little dove / Why do you cry?”, canta Sufjan, colocando-se na pele da mãe, por entre os sintetizadores de “Fourth of July”. No final cantará “we’re all gonna die”, mas Carrie & Lowell será eterno.

2016

Anderson .Paak: Malibu

Se algum dia precisarem de um exemplo de como transformar a desgraça em alegria podem usar Malibu: baseado na história da família de Anderson .Paak, que inclui o próprio como vítima de bullying, e a mãe a ser espancada pelo pai antes de se divorciar, enriquecer, perder tudo e ser presa, Malibu musica este negrume realista da forma mais arrojada e colorida que se pode imaginar: repescando sons e instrumentos da soul e do funk dos anos 70 mas tingindo estes géneros de um psicadelismo exótico, Malibu é um prodígio de ritmo e melodia capaz de constantes guinadas inesperadas e sucessivos feitos de inovação, num alinhamento em que não há um tema menor que espantoso. Isto é o hip-hop do futuro que sabe qual foi o seu passado.

Angel Olsen: My Woman

E eis que Angel Olsen se libertava da folk possuída, da imagem de menina-prodígio, mandava a respeitabilidade às malvas e sacava um enorme disco de rockalhada e popalhada indie, ainda esquisito, mas capaz de ser muito mais luminoso. “Shut up, kiss me” era o single e o panfleto: a partir de agora Olsen estava ao comando, mandava, dava ordens – e My Woman, que tem uma valente dose de herança do rock psicadélico dos anos 70, ardia e rockava em “Give it up” e nessa maravilha de desejo que é “Not gonna kill you”. Canção após canção – e cada uma é um single perfeito – My woman é um dos grandes exemplos de como as mulheres (Angel Olsen, Natalie Mering, Julia Jacklin) tomaram de assalto o indie-rock e o revitalizaram.

Big Thief: Masterpiece

Qualquer um dos quatro discos dos Big Thief podia estar aqui, o que simboliza o poder da escrita de Adrianne Lenker, vocalista, guitarrista e compositora dos Big Thief, o mais extraordinário veículo da música americana de raízes desta década. Quando surgiram, os Big Thief já eram uma banda completa, com um som e um imaginário perfeitamente definidos: canções sobre a disfunção das famílias pobres do Midwest e do sul, sobre gente que bebe demais, peca demais e não conhece qualquer caminho para a salvação. “Masterpiece”, “Real love” e “Parallels” são canções admiráveis – mas “Paul”, um tratado sobre o desejo em apenas três minutos, é tão espantosa que acaba por conferir a Masterpiece o estatuto de disco lendário acima do mais equilibrado Capacity.

Elza Soares: A Mulher do Fim do Mundo

Elza Soares tinha 79 anos quando gravou A Mulher do Fim do Mundo e uma vida marcada pela violência doméstica nos 16 anos de casamento com um alcoólico chamado Garrincha, a morte da sua mãe e do seu filho em acidentes de automóvel e, após todas estas desgraças, uma pausa na carreira que incluiu tentativas de suicídio. A Mulher do Fim do Mundo soa ao seu título: um disco profundamente feminino, em que questões como a violência doméstica, a negritude e o transexualismo dominam as letras, enquanto musicalmente o samba, que constituiu o cerne da carreira de Elza, está rodeado de eletrónica, guitarras e um sentido de apocalipse iminente. Elza Soares tinha 79 anos e uma vida de desgraças quando fez um dos discos mais futuristas da década.

2017

LCD Soundsystem: American Dream

Uma boa parte da humanidade queria não gostar de American Dream, em parte porque era supostos não ter existido: os LCD haviam dito adeus, feito concertos de despedida, pelo que quando anunciaram novo disco e nova digressão muito boa gente simplesmente assumiu que foi enganada, aquando da digressão de despedida. Talvez tenham sido – mas isso não invalida que American Dream seja (e de longe) o melhor disco dos LCD, a melhor súmula da fórmula pós-punk + NY dançável do final dos anos 80 que se tornou imagem de marca da banda. Com algumas vantagens: não só as melodias melhoraram, como American Dream é um disco raro, de reflexão de alguém que envelheceu e sabe que envelheceu e sabe que já não é mais o rei da parada. O que o torna um lindíssimo disco pop de velhos, talvez o mais belo disco pop de velhos alguma vez criado.

Thundercat: Drunk

Os anos de 2015 a 2017 foram extraordinários para a pandilha de Kendrick Lamar: não só ele ascendeu ao topo como os seus músicos puseram cá fora álbuns a solo inquietantes e inovadores – Kamasi Washington foi um deles mas Thundercat talvez tenha ido um pouco mais longe em Drunk, um disco que bebe tanto do hip-hop como da herança deixada por Bitches Brew, de Miles Davis: tudo em Drunk é baixo e fusão, soul e fusão, jazz e fusão, hip-hop e fusão, num festival de cor e imaginação improvável.

Kendrick Lamar: DAMN.

Kendrick Lamar tornou-se uma personagem tão incontornável na década de 10 e, pelo menos a partir do Pulitzer, tão consensual que por vezes dá vontade de dizer mal dele só para chatear – que é o que acontece quando se começa a chamar profeta a um músico ou quando brancos que não ouvem música começam a citar um negro, para demonstrarem que não são racistas. Mas a música de Lamar é superior a todo o ruído à sua volta: Good Kid, M.A.A.D City (de 2012), o magnífico To Pimp a Butterfly (de 2015) e DAMN. são discos tão extraordinários lírica e musicalmente que nos resta bater palminhas. Notem a classe com que Lamar passeia por cima do beat lento, reptileano de “YAH.”; pesem cada vocábulo da letra de “DNA.”, atentem em como ele sapateia por entre as notas de piano do beat de “HUMBLE.”: isto é um artista no exato instante em que chega ao topo das suas qualidades. No exato momento em que se torna incontornável.

2018

IDLES: Joy As An Act Of Resistance

No final da década de 70 o punk dizia-nos que não havia futuro; 40 anos depois o punk é outra coisa: uma forma de resistência ao fascismo, à xenofobia, ao machismo e homofobia – pelo menos nas canções dos IDLES. Toda esta moral poderia ser aborrecida quando vertida para arte (que por norma não se dá bem com a pedagogia), acontece que a moral, nos IDLES, está cheia de raiva – raiva contra quem abusa, quem pisa os desafortunados. Se Joy As An Act Of Resistance resulta (e ao vivo transforma-se numa das maiores descargas de adrenalina a que já assistimos) é porque essa moral é cantada sob a forma de histórias emocionais e pejadas de violência, muito graças à espantosa voz de Joe Talbot – e o resto são guitarras como rajadas de metralhadoras impiedosas.

2019

Weyes Blood: Titanic Rising

Há semelhanças entre as movimentações de Natalie Mering e de Angel Olsen: ambas começaram por fazer folk com algo de medieval, ambas mandaram às malvas o som antigo ao terceiro disco. Mas Mering só explodiu definitivamente ao quarto, este espantoso Titanic Rising, tratado sobre a angústia millenial em cinemascope: uma escrita pop clássica com o tipo de ambição musical e de arranjos que já não ouvíamos desde os anos 70 e meia dúzia de canções de eleição (“Movies”, “Everyday”, etc).

Julia Jacklin: Crushing

A era #MeToo encontrou o disco que simboliza as suas apreensões: Crushing é um disco de crescimento, de chegada à idade adulta, mas é antes de mais um disco feminino, no sentido em que se preocupa com as matérias silenciosas da vida das mulheres, aquilo que as assusta e por norma elas escondem (como o que um ex-namorado poderá fazer com fotografias comprometedoras). Mas Crushing é também simbólico da tomada das guitarras pelas mulheres nos últimos anos – o indie-rock, anteriormente uma área apenas de homens (e brancos), pertence hoje às raparigas, que resgataram a força do ruído como uma espécie de empowerment.

Purple Mountains: Purple Mountains

Homem cultíssimo, fascinado com as mitologias da música popular, David Berman deixou uma juventude regada a Cure e indie-rock para se tornar, a bordo dos maravilhosos e subvalorizados Silver Jews, numa espécie de alt-cowboy, o rei desconhecido da country cósmica, o maior produtor de one-liners existenciais da história da música popular. Uma década depois do fim dos Jews, Berman regressou com uma banda nova, os Purple Mountains, encontrando um novo som, algures entre a country e a soul, de pendor psicadélico e cósmico, mais negro e explícito que nunca. O seu suicídio, pouco após a saída do disco, encarregar-se-á de colocar este mestre da solidão no panteão dos eternos.