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HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR

Dia mundial do piano: quatro pianistas explicam o que o torna único e sugerem o que ouvir, de Bach a Keith Jarrett

Esta 2ª celebra-se o dia do piano. Júlio Resende, Filipe Melo, Joana Gama e Filipe Raposo explicam ao Observador porque é um instrumento único, contam como se apaixonaram por ele e deixam sugestões.

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Foi inventado há mais ou menos 320 anos, por volta do início do século XVIII. É difícil precisar a data exata mas sabe-se que o inventor foi um construtor de instrumentos nascido em Pádua chamado Bartolomeo Cristofori — e não há dúvidas de que a palavra nasceu do nome dado às primeiras versões deste instrumento de cordas e teclado, pianoforte.

Ao longo destes três séculos o piano, nas suas versões de cauda e vertical, serviu de forma versátil a composição, produção e performance musical. Foi um dos motores maiores da criação da canção pop-rock (a par da guitarra acústica), instrumento preponderante na música erudita (ou clássica), peça fulcral da música jazz.

A história da música está impregnada das suas 88 notas, das harmonias que o piano permite — por abrir a porta a que se toquem várias notas em simultâneo. Aproveitando que esta segunda-feira é o dia mundial do piano, efeméride que se assinala ao 88º dia de cada ano, telefonámos a quatro pianistas portugueses — Júlio Resende, Filipe Melo, Joana Gama e Filipe Raposo —, para os ouvir explicar porque é o piano um instrumento tão especial, como se aproximaram dele, porque ficaram fiéis e em que discos, composições ou peças o podemos ouvir mais bem tocado. Os depoimentos das entrevistas foram tratados de modo as que os possamos ler em discurso direto.

Júlio Resende

Quando tinha quatro anos o meu pai ofereceu-me um teclado que comprou ao ex-patrão. Esse teclado transformou-se no meu brinquedo favorito e continua a sê-lo até hoje. Digo que o piano é um brinquedo no sentido em que se gosta de uma coisa, em que se é feliz a brincar com ela, em que aquilo dá gozo e é ao mesmo tempo uma aprendizagem. Brincava com o piano como se brinca com uma bola, com LEGOS ou com um livro, explorando-o. E ainda hoje o faço.

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"O piano pode ser um local de refúgio e um ponto de partida para a aventura. É nele que te podes refugiar quando estás cansado do mundo e é nele que podes embarcar quando te apetece ver mundo."
Júlio Resende, pianista

Tenho uma grande fidelidade ao piano. É como se fosse um irmão, não me lembro de mim sem ter um teclado por perto. É uma relação familiar, como um amigo que está sempre presente. Através do piano apaixonei-me por todos os instrumentos e por toda a música.

Há uma sensação tátil muito forte no piano, implica ter-se dez dedos a tatearem de um modo mais ou menos independente. É como ter os olhos tapados e estar com os dez dedos a tatear uma parede. O piano tem essa força, gera uma sensação tátil muito forte. E depois há a beleza do som: tem um certo lado lírico, um certo lado melancólico, um certo lado de percussão. Oferece várias cores. 

Alguns dos melhores momentos da minha vida estão ligados à minha profissão [pianista] e vêm através do piano, foram-me oferecidos por ele. E emocionalmente originaram momentos muito fortes: o momento — o encontro — com a Amália inaugura até um gesto. É com o piano que faço essas coisas. Oferece um local de refúgio e um ponto de partida para a aventura. É nele que te podes refugiar quando estás cansado do mundo e é nele que podes embarcar quando te apetece ver mundo. É assim com toda a música em geral, mas tenho essas sensações especificamente com o piano.

Júlio Resende lançou nos últimos anos discos como "Amália por Júlio Resende" (2013), "Cinderella Cyborg" (2018) e "Julio Resende Fado Jazz Ensemble" (2020), entre outros

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Houve pessoas que me marcaram enquanto pianistas, com certeza algumas delas portuguesas: o Bernardo Sassetti, o Mário Laginha. E a Maria João Pires: quando comecei a ouvir os seus Noturnos [de Chopin] estava no Conservatório. Havia uma pianista portuguesa do mundo clássico que era uma das melhores do mundo! Eu adorava Chopin e aquilo marcou-me imenso — e continua a marcar.

Podia falar do Glenn Gould e do Michel Petrucciani. Por exemplo, da versão do Michel Petrucciani da ‘Take the Train’, uma canção do Duke Ellington. É uma pessoa que nasceu com uma doença rara e é fantástico como ele, com o seu corpo, conseguiu ser aquele músico. Foi um dos que mais me marcou na cena jazz, por tudo o que musicalmente, existencialmente e filosoficamente representou.   

Há o [Brad] Mehldau, que marcou esta geração. E há o Keith Jarrett, que marcou, sei lá, todas as gerações [risos]. Falando de obras específicas poderia recomendar as “Variações Goldberg” [de Bach] tocadas pelo Glenn Gloud, de 56. Os Noturnospela Maria João Pires. E o ‘The Koln Concert‘ do Keith Jarrett. 

Na música popular, no pop-rock, vamos chamar-lhe assim, o piano é um dos instrumentos que cria mais canções ao lado da guitarra. Quer os singer-songwriters quer as bandas servem-se muito de guitarra e piano para iniciar os processos de composição. E o piano é um dos instrumentos que mais canções pop criou. Agora a sua performance [ao vivo] no mundo da pop começou diria que há menos tempo e continua a ser discreta. Só nos últimos anos os microfones ganharam mais capacidade para captar um piano de um ponto de vista mais rockeiro, mais pop. Os Queen chegaram a usar em concertos, os Coldplay de vez em quando acho que também usam um piano vertical.

Hoje os microfones já permitem que um piano tenha volume sonoro para os grandes palcos. O Elton John e o Billy Joel também usaram mas não aparece tanto nos concertos de pop porque é considerado um instrumento acústico, com pouco volume e talvez sem a pujança necessária. 

Dentro da cena pop-rock talvez o Patrick Watson e o Rufus Wainwright sejam autores dos momentos em que o piano tem aparecido mais e melhor. Estou a pensar no ‘Poses’ [disco de 2001 do cantor e compositor Rufus Wainwright] e em alguns discos do Watson, por exemplo. 

O piano tem uma coisa fantástica: não é nada difícil tirar som dele. Basta carregar numa tecla e sai um bom som. É mais difícil de tirar logo um som bom numa flauta transversal ou num saxofone, por exemplo.

Pode-se começar a tocar piano em qualquer altura. Claro que quanto mais cedo se começa mais hipóteses se tem de ser um concertista, mas qualquer pessoa pode aprender a divertir-se com o piano. Recomendo vivamente começar-se a qualquer altura, tenha-se 40 anos, 50, 60, 70 ou 15. Acho que vai ser sempre gratificante. A quem quiser dedicar-se a ele mais seriamente: têm de amar a música. Não há outra reposta. Se alguém quiser fazer isso bem, terá de amar a música. Com talento e amor — porque o amor implica em si dedicação diária — vai ser muito simples.”

Júlio Resende encontrou a música que se esconde entre o homem e as máquinas

Filipe Melo

A minha relação com o piano começou pela curiosidade. É um instrumento imponente mas começou por ser uma relação quase de brincadeira, porque — tinha eu 12 ou 13 anos — estava alguém a tocar e eu fui para lá e comecei a experimentar e a tocar em cima da pessoa. Foi quase como se estivesse a começar a improvisar, daí talvez o percurso que tive depois no jazz. Esse início foi ao mesmo tempo uma relação de reverência e de brincadeira, foi cruzar uma barreira e não deixar que o instrumento me impusesse respeito suficiente que me impedisse de brincar com ele.

Enquanto estudante foquei-me muito no piano. Fui conhecer a tradição do piano e estudar para de alguma maneira controlar a parte técnica. Tenho curiosidade pelo funcionamento de outros instrumentos portanto acabo por tentar tocar um bocadinho de cada um para estimular a criatividade, mas volto sempre ao piano.

O espectro sónico do piano é muito grande: temos desde notas muito graves até notas muito agudas. É um registo enorme. Para quem gosta muito de harmonia, da combinação de notas, o piano oferece a possibilidade de tocar quantas notas quisermos. Temos dez dedos mas em última análise um piano permite tocar 88 notas ao mesmo tempo. É capaz de ser um dos instrumentos mais ricos, se não o mais rico, a potenciar harmonias.

"Costuma-se dizer que o piano acaba por ser uma extensão do nosso corpo e de alguma maneira até é, o que significa que estabelecer a relação física com o instrumento é uma coisa muito importante para expressar aquilo que está dentro de nós. Isso é tão claro que muitas vezes consigo ouvir o pianista a tocar e sei quem ele é sem o ouvir falar, só pelas notas que toca."
Filipe Melo, pianista

A minha relação com o piano é complexa, quase como a que temos com o nosso próprio corpo. Costuma-se dizer que o piano acaba por ser uma extensão do nosso corpo e de alguma maneira até é, o que significa que estabelecer a relação física com o instrumento é uma coisa muito importante para expressar aquilo que está dentro de nós. Isso é tão claro que muitas vezes consigo ouvir o pianista a tocar e sei quem ele é sem o ouvir falar, só pelas notas que toca. Isso é uma coisa que acontece muito no jazz.

O piano é uma espécie de extensão da voz da pessoa, da voz humana. Consegue ser um inimigo de vez em quando tal como o nosso próprio corpo, tal como quando não fazemos exercício e nos pomos a correr — depois ficamos cansados. Nesse aspeto consegue ser um inimigo porque muitas vezes lembra-nos que devíamos estar a estudar em vez de estarmos a fazer outras coisas.

Filipe Melo tem 42 anos e é um pianista com um percurso consolidado no jazz português

Joana Linda

O piano está sempre lá. É uma constante que tem vindo a acompanhar a minha vida nos últimos 30 anos. Muitas coisas têm ido e vindo mas o meu velho piano está sempre aqui. É uma espécie de casamento que continua com uma dose valente de paixão. Interesso-me por coisas, desinteresso-me por coisas mas o interesse pelo piano vai estar sempre lá. Há sempre coisas novas por explorar, é um mundo. 

Há coisas que me marcaram muito quando era mais miúdo. Estou a lembrar-me por exemplo do Glenn Gould a tocar Bach — a nível do piano não sei se haverá algo que tenha ouvido mais vezes. No jazz houve muitas coisas que gostei imenso de ouvir: um pianista chamado Bud Powell, obviamente o Bill Evans, o Keith Jarrett. Há um álbum do Jarrett chamado ‘The Melody At Night, With You’ que é capaz de ser o melhor som de piano que ouvi gravado num disco. É uma maravilha, esse disco.

Do Bill Evans há uma série de discos que gosto muito, mas gosto em especial de o ouvir tocar no grupo do Miles Davis, quando ele era o pianista do Miles Davis. O Herbie Hancock também é um pianista incrível. Passei horas e horas a copiar e a roubar tudo isto. O piano é um instrumento tão versátil e com uma história tão grande que é muito difícil uma pessoa dizer uma influência, tanta gente o tocou tão bem que vamos roubando um bocadinho daqui e um bocadinho dali.

Posso dizer uma coisa: gosto muito de ouvir um piano mal tocado. É uma coisa que me dá algum prazer. O piano é um instrumento que teve tantos exemplos de virtuosismo que muitas vezes as pessoas até têm medo de chegar lá e fazer algo completamente simples e básico.

Uma coisa que me intrigou e que mudou a minha maneira de ver o instrumento foi um disco do Bonnie Prince Billy que se chama ‘Arise Therefore’. Ouvi o piano neste disco e pensei: não sei se esta pessoa sabe tocar ou não e isto intriga-me muito, parece um som que nunca ouvi. Gostei muito disso. Obviamente o piano na música pop tem imensos exemplos de pessoas que tocam simples e bem: posso ir desde o Elton John ao Paul McCartney, do Rufus Wainwright à Fiona Apple. Toda essa gente trata o piano como uma extensão do proprio corpo e o piano serve para exprimirem o que querem dizer. É para isso que acho que o piano serve, na verdade.

Que conselhos daria a quem quer tocar piano, estudar piano e aprender piano? É uma grande responsabilidades mas um dos conselhos seria ouvir muita música. Também é importante perceber quem é que nós somos musicalmente e estudar o que for preciso para conseguir exprimir isso. Ah, e não desistir — esse é o melhor conselho de todos.

Filipe Melo: “Quando isto começou, a última coisa que me apetecia era tocar piano”

Joana Gama

Entrei no Conservatório de Música Calouste Gulbenkian de Braga aos 5 anos, portanto comecei a estudar música nessa altura. Aos 7 anos comecei as aulas de piano com a professora Ema Pais Martins.

Lembro-me que inicialmente era uma situação um bocadinho tensa porque a professora ficava muito zangada se não tivéssemos estudado o suficiente ou bem. Inicialmente estudava mais por temor do que por prazer. Depois com o tempo fui ganhando gosto e essa professora foi muito importante por incutir esse gosto.

O que acontece muitas vezes é que as relações entre professores e alunos de piano são tensas e muito nocivas em vários aspetos: ou porque nunca está bem ou porque o aluno não quer lá estar e o professor sente que está a perder o seu tempo. Eu tive muita sorte com essa primeira professora de piano, que foi determinante. Ainda mantenho contacto com ela. Essa professora é nonagenária, tem hoje 96, 97 anos. Ainda mantemos contacto e vou-lhe contando coisas do meu percurso, que a deixam contente.

Quando era criança era muito irrequieta, não aguentava sentada muito tempo. Toda a gente ficava muito admirava como é que eu aguentava sentada nas aulas de piano. E essa professora dizia: não, ela vem para a aula, senta-se, está atenta e porta-se bem. Era muito curioso.    

"Um só piano enche uma sala de concertos, enche a alma do público. A partir de um só instrumento temos quase uma orquestra em potência. E trabalhando a forma de tocar podemos ter timbres diferentes dentro do próprio instrumento, daí ser extremamente fascinante para os compositores das varias épocas."
Joana Gama, pianista

A partir do momento em que comecei a estudar piano nunca pensei em mudar de instrumento. Quando entrei na escola até queria era estudar canto, tinha 5 anos quando entrei na primeira classe. Mas disseram-me que canto ainda não dava, que era muito novinha, que o piano seria bom porque seria uma boa base para a minha formação musical, se mais tarde quisesse poderia trocar. Mas a partir do momento em que comecei a tocar piano nunca ponderei sequer mudar de instrumento.

O que é muito especial relativamente ao piano é ser um instrumento harmónico, ou seja, pode-se tocar a melodia e pode-se tocar o acompanhamento. Um só piano enche uma sala de concertos, enche a alma do público. A partir de um só instrumento temos quase uma orquestra em potência. E trabalhando a forma de tocar podemos ter timbres diferentes dentro do próprio instrumento, daí essa riqueza que vem do piano, daí ser extremamente fascinante para os compositores das varias épocas. A partir do momento em que surgiu o piano quase todos os compositores escrevem para piano porque é um instrumento extremamente atrativo e sedutor.

O piano pode ser tocado de uma forma convencional — tocando-o no teclado — mas a partir do momento em que se começou a explorar o interior… Também há a hipótese de o tocarmos como ‘piano preparado’, ficou assim celebrizado através do John Cage. É uma técnica em que se colocam parafusos e borrachas no meio das cordas e aí o piano ainda soa a outra coisa, aí parece quase um gamelão, fica com um som completamente adulterado. Aparece um outro instrumento. As capacidades do piano são infindáveis e essa possibilidade de tocar um instrumento para além do óbvio tem sido explorada e ainda bem.

A minha primeira professora de piano incutiu-me um grande gosto de estar em palco. Essa possibilidade de partilha com o público através do piano é algo muito forte na minha relação com o instrumento. Sinto que através do piano tenha a possibilidade de me expressar, não só através da música que faço mas também através da música de outros compositores. É um instrumento com o qual passo muitas horas.

Joana Gama passou pela Royal Academy of Music, em Londres, e divide-se entre a música clássica (com recitais de repertório canónico) e a música exploratória

Vera Marmelo

Quando estou a estudar piano é uma altura em que penso muito na vida, muitas coisas clarificam-se nesse momento. É um instrumento que vai acompanhando a minha vida há vários anos. E tenho uma relação especial com o meu piano, um Yahama C3, que as pessoas não ouvem porque nos concertos uso os pianos das salas ou os pianos alugados.

A relação que tenho com o piano é na verdade uma relação mais comigo do que propriamente com o instrumento, porque ele mantém-se sempre fiel. Sentada ao piano tenho momentos muito díspares, emoções muito díspares e isso é muito forte: o facto de um instrumento acompanhar uma vida inteira.

Há muitos pianistas que conviveram comigo, no sentido em que quando estava no conservatório o meu professor de piano ia-me mostrando discos. Álbuns do [Sviatoslav] Richter, do [Emil] Gilels, do Arturo Benedetti Michelangeli. Também a pianista Martha Argerich é uma grande referência para mim. Eram pianistas exímios que me faziam sonhar e querer estudar mais piano para conseguir tocar — nunca tão bem como eles porque era uma perfeição inatingível, mas eram uma grande inspiração.

Componho muito pouco. A minha relação com o piano é maioritariamente como intérprete. Para além dos recitais tenho uma relação com as artes performativas, através de performance em peças de dança e peças de teatro. Tenho também um duo de piano eletrónico com o Luís Fernandes e aí somos compositores mas é algo um pouco pontual na minha vida.

No momento em que sou intérprete obviamente que através do piano canalizo as minhas emoções. E o que é interessante também é que há uma expressividade e uma emotividade que existe sentada ao piano que muitas vezes não existe no dia-a-dia. Especialmente num momento de partilha, em palco. Vejo às vezes fotografias minhas ou vídeos a tocar nos meus concertos e é quase estranho ver-me de fora. Em palco há uma emoção muito profunda, é um momento de entrega total, por mais nervos que existam antes e muitas vezes durante. 

Quando estive a estudar na Royal Academy of Music conheci uma pianista inglesa chamada Joanna MacGregor que foi muito inspiradora. Apesar de ser professora e ter uma carreira relacionada com a música clássica, lançou um disco chamado ‘Play’ em que tocava música clássica mas tocava também [Astor] Piazzolla e misturava repertório antigo com repertório contemporâneo. Gostei muito desse ecletismo. A própria imagem da pianista era bastante atual e contrastava com um formalismo que está associado à música clássica. Hoje em dia já está um pouco diferente mas naquela altura as fotografias dos músicos clássicos eram muito banais, por exemplo. Essa pianista tinha uma frescura que achei muito interessante. Foi bastante inspirador para o meu percurso, ajudou-me a pensar que podia criar um caminho meu e escolher repertório que realmente gostasse de tocar e ir fazendo o meu caminho. 

Há uma peça que estou agora a estudar e de que fiz a estreia em Portugal em outubro, na Culturgest, chamada O Livro dos Sons [título original: Das Buch der Klänge]. É de um compositor alemão chamado Hans Otte. É uma peça belíssima e acho que é uma boa sugestão para o dia mundial do piano.

Gosto muito que haja várias abordagens ao instrumento. Na música clássica o piano é um instrumento sagrado e há toda esta herança da música clássica, dos grandes pianistas e dos virtuosos. Isso é forma muito especifica de tocar. Mas em alguns casos se for pedido depois aos pianistas para improvisarem muitos não conseguem porque não é esse o treino que têm. Vejo com muito bons olhos o uso do piano noutros contextos, não tenho nada a opor.

É muito importante ouvir música, é muito importante ouvir música de todo o tipo e é muito importante absorver a arte nas suas várias dimensões. Para quem está a estudar piano, a maneira de conseguir evoluir é encontrar repertório que a pessoa goste mesmo de tocar.

O que acontece muitas vezes no ensino é que os professores acabam por passar aos alunos repertório que conhecem e gostam e isso não é entusiasmante para os alunos, que estão quase a fazer um favor ao professor em tocar determinada peça. Isso é normal, há muita coisa que fazemos e não gostamos tanto e há determinadas peças que é importante trabalhar para se melhorarem aspetos técnicos e para se dominar a linguagem de determinado compositor. Mas com o tempo é muito importante descobrir-se música que se goste realmente de tocar. Para isso é preciso conhecer música, é preciso ouvir o mais possível e instruir-se o mais possível para depois ter imaginação e ter esse lado mais imaginativo. Não basta mexer os dedos.

Filipe Raposo

A minha primeira experiência musical aconteceu quando tinha mais ou menos três anos, no ensaio de coro onde a minha mãe cantava. Esse coro era acompanhado por um pianista. No final das sessões lembro-me de alguém pegar-me ao colo e dar-me um instrumento para experimentar, para brincar. A minha avó tinha um piano vertical em casa que funcionava como recreio, como brinquedo. Com o passar dos anos a minha mãe percebeu que tinha afinidade com o instrumento e a partir dos 10 anos comecei a ter aulas com um professor. 

Antes dos meus pais comprarem um piano, tive um piano digital em casa. Tinha um som diferente de um piano acústico. Quando ia para as aulas de piano era logo um upgrade face ao piano digital que eu tinha em casa. Percebia: ah, aquilo que estudei em casa tem este som, tem este timbre muito mais elegante, muito mais interessante. Os pianos no Conservatório Nacional, onde estudei, já eram melhores.

Para mim cada aula de piano significava superar um desafio. O ensino está organizado por etapas, por fases. Lembro-me que quando tinha um livro novo olhava para a última página e pensava: como será quando chegar à última fase, à última página? Porque chegar lá significava que o meu nível pianístico já era maior, já era capaz de tocar peças com a exigência do ultimo exercício. Era mesmo um desafio tremendo, lembro-me de preparar muito as aulas.

Recordo-me de ver colegas mais velhos a tocarem peças muito complicadas no conservatório, com um nível muito exigente, e eu sonhava chegar àquele nível. Passava muitas horas lá, a aproveitar os melhores pianos que ali existiam. Havia sempre concorrência entre os alunos, para perceber que salas — entre as que tinham os melhores pianos — estavam ocupadas. Os melhores pianos no conservatório eram os Steinway, que é uma marca conhecida por ter um equilíbrio límpido entre a região grave e a aguda. Um piano muito bom consegue mesmo nessa região grave dar sons com uma grande clareza, sem estarem demasiado misturados.

"No conservatório havia uma zona que era chamada de cemitério dos pianos. Era uma sala escura, nas catacumbas, e portanto também metafórica: simbolizava o descer à gruta, ao local iniciático, ao sítio onde esses pianos mortos se encontravam. Alguns estavam na vertical, encostados à parede, alguns estavam sem perna no chão. Era uma espécie de campo de batalha onde estavam instrumentos que tinham servido pianistas anteriores, nomes muito conhecidos do Conservatório antigo."
Filipe Raposo, pianista

O que o piano tem de especial é que oferece um registo completo de uma orquestra sinfónica. Nas suas 88 notas cabe uma orquestra. Em termos de extensão de sons isso dá logo ao piano uma primazia em relação a qualquer outro instrumento, nenhum outro tem a mesma amplitude de sons. Este é um instrumento polifónico, como o órgão e a guitarra mas com uma extensão maior. Permite tocar mais do que uma nota ao mesmo tempo, ao contrario da maioria dos instrumentos de sopro que só permitem emitir em simultâneo um ou dois sons.

Para mim a harmonia foi sempre uma coisa fascinante. A harmonia é a junção de duas ou mais notas tocadas simultaneamente. Para mim isto foi sempre uma coisa fundamental que me fez gostar muito de piano: não só tenho possibilidade de tocar a melodia como posso também acompanhá-la.

O piano é para mim um instrumento diário. Ocupa uma parte central da minha sala. Isso significa que a minha sala de estar, de lazer, também é a minha sala de trabalho — e a minha sala de trabalho é a minha sala de lazer. Isso simbolicamente também denuncia aquilo que a música e o piano significam para mim. Ocupa uma parte significativa da minha vida, em termos de horas de estudo, em termos de horas de trabalho. Há uma afinidade muito grande.

Filipe Raposo, nascido em 1979, tem uma longa carreira na música clássica, no jazz e na música improvisada

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Quando era mais novo via um piano e tinha de o ir experimentar. No conservatório havia uma zona que era chamada de cemitério dos pianos. Era uma sala escura, nas catacumbas, e portanto também metafórica: simbolizava o descer à gruta, ao local iniciático, ao sítio onde esses pianos mortos se encontravam. Alguns estavam na vertical, encostados à parede, alguns estavam sem perna no chão. Era uma espécie de campo de batalha onde estavam instrumentos que tinham servido nomes muito conhecidos do Conservatório antigo, pianistas anteriores. Quando não havia mais nenhum piano disponível para estudar íamos para esse local misterioso, iniciático, que tinha uma aura mística. Eram pianos que vinham desse passado longínquo e ainda emitiam som, ainda que desafinados.

O piano é um veículo que serve também um propósito de comunicação, uma comunicação através dos sons e da música. No meu caso, como também sou compositor, as minhas peças expressam também o meu estado emocional. Claro que tenho peças escritas em momentos de grande intensidade emocional, quando, sei lá, morre um ente próximo. Já aconteceu usar o instrumento para fazer a minha catarse. Muitas vezes é uma catarse que é efémera no sentido de que só eu é que a fiz, só eu é que soube que existiu enquanto tocava. Outras vezes essa catarse fica impressa numa partitura, numa gravação. Mas o piano também serve para expressar alegria.

O que faço ao tocar é convocar estados emocionais diferentes para diferentes peças. Com esses estados emocionais que convoco tento passar uma verdade, que só é possível quando a vivenciamos. Tento trazer essas vivências verdadeiras para a música que faço. Acredito que só assim existe uma comunicação entre intérprete e compositor.

Uma obra que para mim foi decisiva para conhecer o trabalho de Bach foi um livro que normalmente é usado numa fase de aprendizagem, chamado “Invenções e Sinfonias”. É um livro com caráter pedagógico que Bach escreveu para filhos e alunos, é um conjunto de peças. Quando começo a tocar essas peças começo a descobrir a música de Bach e tornou-se um íman muito forte. Bach tem essa característica: é muito cativante não só para quem escuta mas também para quem toca. 

O concerto em sol maior do [Maurice] Ravel é uma obra também icónica, de uma beleza extraordinária, que para mim enquanto pianista e compositor — mais como compositor — foi muito importante. Revisitei-a muitas vezes para estudar orquestração, pela maneira como o Ravel acaba por interligar grupos de instrumentos para criar novos sons onde se mistura mais do que um instrumento.

No que toca à música improvisada, o concerto de Paris do Keith Jarrett também foi uma obra que visitei muitas vezes e que é belíssima. Chama-se mesmo Concerto de Paris [Paris Concert] e é de 1990. Falava nas invenções e sinfonias de Bach e o que encontro na abertura deste concerto do Keith Jarrett é uma revisitação desses cânones, de Bach. Começa com escrita técnica que se chama coral, não ao estilo de Bach mas onde estão presentes muitas técnicas de Bach. Há aí uma ponte que se estabelece com a tradição e é um disco uma elegância extrema, de um lirismo incrível. E tendo em conta que é um concerto totalmente improvisado, revela uma capacidade de criar em tempo real absolutamente maravilhosa. Ele pega naquilo que é a tradição e transforma a tradição numa linguagem contemporânea.

Na música popular, no formato canção, todos os cantautores com quem trabalhei tinham sensibilidade relativamente ao piano. Antes de mim outros pianistas trabalharam com eles e há muito que dão espaço a esse instrumento, um espaço bastante nobre.

O último disco ao vivo que gravei com o Sérgio Godinho, com orquestra no Teatro São Luiz [Filipe Raposo foi o autor dos arranjos] tem um tema que faço só com ele ao piano: “Fotos do Fogo”. Acho que é um tema muito inspirado do Sérgio, é uma canção sobre os álbuns de fotografias que os soldados da Guerra Colonial traziam para casa. Toda a narrativa é muito impressionante e há ali uma ligação muito forte entre o piano e a parte lírica e poética, que tentámos manter ao vivo.

Dos discos que gravei com cantautores também há um de que gosto muito chamado Não Sou Daqui, editado em 2011 pela Amélia Muge, que tem uma canção chamada “Entre o Deserto e o Deserto” que poderia destacar. Também acho belíssima a versão do Vitorino com o João Paulo Esteves da Silva do tema “A Queda do Império”, reveladora de um enorme bom gosto no arranjo do João Paulo Esteves da Silva. Juntei-me depois a ele e ao Vitorino numa versão desse tema que fizemos para o disco ‘Voz e Dois Pianos’.

Na música pop diria que o piano tem um tratamento um bocadinho mais subserviente, se calhar. Tem um espaço mas acho que é um espaço muitas vezes modificado timbricamente, tem uma presença menor enquanto instrumento em detrimento de uma estética de mistura. Acho que na maior parte das vezes tem menos interesse precisamente devido a uma espécie de limites que lhe impõem, até porque nessa estética as coisas têm de funcionar numa forma um pouco mais quadrada. É um bocadinho mais… está mais hermético, não tem tanto espaço para abrir e dar o máximo que o piano dar.

Filipe Raposo: “Não poder tocar piano seria como não poder falar, ter um braço e não o poder usar”

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