Diagnosticado há dois anos com cancro pancreático, Rui Rodrigues está sempre atento a novos estudos na área da oncologia. Divide os esforços com a mulher, francófona, ele focando-se em ensaios clínicos, ela à procura de histórias de recuperação. Foi assim que, numa pesquisa em francês por casos de sucesso, acabaram por descobrir um novo estudo internacional que quer descobrir o porquê de um raro grupo de pacientes com alguns dos cancros mais agressivos, cuja esperança de vida pós-diagnóstico não passa de entre um a três anos, sobrevive muito para lá disso.
Foi o casal que falou do estudo ao médico que acompanha Rui na Fundação Champalimaud, que assim se tornou uma de quatro instituições portuguesas a envolver-se na iniciativa. “Há dois mil anos achávamos que tudo era magia, hoje não é assim. Quando existem estas situações excecionais que a ciência não consegue explicar, se calhar há qualquer coisa que a ciência ainda não conhece”, diz Rui Rodrigues ao Observador. “Todas as iniciativas para aprofundar o conhecimento que a ciência tem acerca desta doença, que também me assola, são positivas”, sublinha, apesar de não preencher os critérios para ser integrado neste estudo em particular.
A iniciativa pretende estudar os chamados ‘super-survivors’ (em português ‘super-sobreviventes’) e é liderada pela startup francesa de biotecnologia Cure51. Passa por construir uma base de dados mundial com todos os casos que for possível reunir e perceber o que os torna diferentes, com o objetivo de vir a criar novas terapias para tumores agressivos e melhorar as hipóteses de sobrevivência de outros pacientes.
“Geralmente, estamos muitos focados em explicar as causas, os processos que levam à morte dos pacientes. Mas perceber porque e como sobrevivem é um método importante e que já foi aplicado a casos como o VIH. Porque não com o cancro?“, questiona Elizabeth Auzias, co-fundadora da Cure51. Foi desta pergunta, explica a gestora de projetos científicos da startup ao Observador, que partiram em 2021 para o “grande desafio” de criar uma rede internacional para identificar os pacientes, que são uma percentagem rara em todo o mundo.
Desde o início do projeto, a Cure51 já estabeleceu contactos com mais de 200 instituições de cerca de 40 países. A rede já inclui centros de renome como o Gustave Roussy, em Paris, o Léon Bérard, em Lyon, e o Charité, em Berlim. Em Portugal já conta, além da Fundação Champalimaud, com o Hospital da Luz, Lusíadas e CUF Tejo. Há mais parcerias a caminho, incluindo do setor público, diz Elizabeth Auzias, explicando que o Instituto Português de Oncologia (IPO) mostrou interesse na iniciativa.
Desvendar os mecanismos de sobrevivência
Como é possível que um paciente diagnosticado com um dos mais agressivos cancros do pâncreas, que acaba por desenvolver também cancro da próstata e nas células que produzem anticorpos, sobreviva mais de quatro anos para lá do diagnóstico? É uma pergunta que deixa a especialista oncológica Ana Raimundo, que pertence ao Hospital CUF Tejo, onde o doente é acompanhado, ou qualquer outro médico da área perplexo. A medicina não tem, para já, uma resposta. Mas, espera a médica, um estudo como o da Cure51 pode trazer pistas.
A investigação vai olhar em profundidade para três dos tipos mais agressivos de cancro: o glioblastoma, um tipo de tumor do sistema nervoso central; o cancro do pulmão de pequenas células, de crescimento rápido e que tem grande probabilidade de se espalhar para outros órgãos; e o adenocarcinoma do pâncreas, o subtipo mais frequente de cancro pancreático e que na maioria dos doentes é diagnosticado já no último estadio (metastático), numa fase muito avançada da doença. O objetivo é identificar pacientes com estes tipos de cancros que viveram pelo menos cinco anos para lá do diagnóstico, três anos no caso específico do glioblastoma.
Esses casos são, no entanto, raríssimos. Não se espera que os pacientes vivam para lá de dois ou três anos, muito menos para lá dos cinco. “O que está reportado na literatura é que menos de 5% das pessoas sobrevivem para lá dos cinco anos“, explica a especialista em oncologia Joana Albuquerque. A médica do Hospital da Luz, que está a fechar a parceria com a Cure51, acrescenta que para todos eles, em estadios metastáticos, “a sobrevivência ronda um ano“.
Apesar de raros, há pacientes que se afastam e muito da regra. O difícil é encontrá-los. Ana Pissarra, do Hospital Lusíadas, lembra, por exemplo, um doente que o hospital acompanha e espera ver integrado no estudo e que conta sete anos de diagnóstico de cancro do pâncreas. Para já, foi o único caso identificado pelo hospital numa análise prévia, numa altura em que estão à espera da aprovação da comissão de ética e que as contratualizações fiquem fechadas.
O caso do paciente com três tipos de cancros acompanhado no Hospital CUF Tejo, onde a parceria com a Cure51 também está a ser fechada, é outro com potencial para ser integrado no estudo. “Já tem pelo menos quatro anos de diagnóstico, mas tenho de confirmar se já completou os cinco para poder poder ser inserido”, diz Ana Raimundo.
Na Fundação Champalimaud, que também está na fase de submissões à comissão de ética, que deve ficar concluída até ao final do ano, foram identificados numa fase inicial oito casos de sobreviventes longos. “São poucos”, reconhece Nuno Couto ao Observador, acrescentando que ainda esperam conseguir encontrar mais.
Casos de sobrevivência prolongada são tão raros que, em muitos deles, o diagnóstica está errado
Identificar casos está a revelar-se ainda mais difícil do que a Cure51 previa e, por isso, a obrigar a envolver mais centros. “Achávamos que teríamos mais pacientes, mas na verdade ainda são mais raros do que esperávamos”, admite Elizabeth Auzias. “Estes casos são tão raros que por vezes quando são diagnosticados e sobrevivem mais de cinco anos é porque o diagnóstico até estava errado. Por isso, temos de estar bem certos do verdadeiro diagnóstico para os integrar”, refere. Isso implica rever caso a caso, um esforço demorado.
O estudo pretende dar resposta a uma questão que incomoda os médicos ouvidos pelo Observador e muitos investigadores por todo o mundo: afinal, o que está a ajudar estes pacientes a sobreviver durante mais anos do que seria expectável? “Não há nada que me faça olhar para o doente, fazer uma avaliação clínica ou da biópsia e conseguir concluir se ele vai viver mais ou menos tempo”, explica Ana Pissarra.
O que caracteriza estes três tipos de cancro?
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- Glioblastoma
É de difícil diagnóstico e só a observação das células suspeitas ao microscópio pode confirmar este tipo de cancro . Na fase de tratamento, “é difícil a quimioterapia entrar no sistema nervoso central”, explicam os médicos ouvidos pelo Observador.
Cancro do pulmão de pequenas células
É por vezes chamado de cancro das células em “grão de aveia” e, diz a Liga Portuguesa Contra o Cancro, este tipo de tumor cresce mais rapidamente e é mais provável que metastize para outros órgãos. Até há bem pouco tempo, e principalmente nos casos pós-metastizados deste cancro, a única terapêutica que existia era a quimioterapia.
- Cancro pancreático
Um dos principais problemas com este tipo de cancro é que manifesta em fases mais tardias — muitas vezes já no IV estádio. Esses tumores são muito quimiorresistentes. Devido à localização do pâncreas e as suas características — baixa irrigação, ambiente muito privado de oxigénio — as células acabam por desenvolver mecanismos de resistência a uma série de tratamentos.
Há também a questão do que torna estes cancros tão agressivos, para a qual não há uma resposta clara. “Se soubéssemos responder de caras, eu diria que poderíamos resolver o problema”, aponta Nuno Couto. No caso do cancro do pâncreas, a sua área de especialidade, destaca a dificuldade do diagnóstico precoce e a eficácia dos tratamentos em doentes em que o cancro já se disseminou. “Entre 50 a 60% dos pacientes são diagnosticados em estadio IV, em que o doente já tem metástases. Metade desses já não está com condições para receber terapêutica“, explica.
Também no caso dos glioblastomas se sente essa dificuldade. “Não temos agentes que penetrem no sistema nervoso central mais dirigido. E é um campo em que, apesar de haver algum esforço a nível internacional e da comunidade científica sempre para avançar, nos últimos anos não se tem avançado tanto“, acrescenta Joana Albuquerque.
Um banco de dados mundial
A iniciativa da Cure51 segue a diferentes ritmos um pouco por todo o mundo. A maior parte dos centros, como os portugueses, ainda estão a identificar pacientes, um esforço que só começou em setembro deste ano. Outros estão já a recolher dados e amostras dos long survivors. No total, o banco de dados conta com 91 pacientes, dos quais 20 já foram validados. Mas o que procuram, afinal, os investigadores e que dados vão recolher?
A ideia, para evitar sujeitar pacientes a novos exames invasivos, é aproveitar amostras e testes que já existem, tanto para pacientes que continuam a ser acompanhados pelos hospitais como outros que, apesar de já terem morrido, sobreviveram à marca de três e cinco anos exigida no estudo e tenham deixado autorização para que os seus dados fossem usados.
Os investigadores de todo o mundo vão, então, recolher material de biópsia ou tecidos, imagens de TAC ou ressonâncias e alguns dados clínicos dos pacientes. Ao mesmo tempo, também serão recolhidas amostras de doentes que tenham tido o curso habitual da doença para poder comparar as diferenças.
“Em alguns casos vamos trabalhar com amostras que podem ser muito antigas, algumas até com 20 anos. Temos de usar tecnologias que garantam que podemos tirar o máximo proveito de muito pouco”, lembra Elizabeth Auzias, tomando como exemplo as amostras de biópsias, muitas vezes “pequenas e antigas”. “Vai ser um desafio”, reconhece.
O foco das análises será o próprio tumor e as suas características — que alterações genéticas, mutações, estão presentes; que expressão têm determinadas proteínas. “A questão é que há alguma coisa naqueles tumores, do ponto de vista molecular, que os torna diferentes. Ou porque têm mais sensibilidade à quimioterapia ou por terem alguma mutação que os torna mais sensíveis e conseguimos controlá-los melhor com o tratamento”, explica Ana Pissarra, do Hospital Lusíadas.
Este estudo aprofundado dos tumores, que na prática clínica diária é impossível, tem outra vantagem. “Dá-nos a possibilidade de ter acesso a informação sobre o tumor que, de outra maneira, não teríamos, também, porque é feito um conjunto de estudos que no dia a dia não estão disponíveis”, nota Nuno Couto.
Também vão ser testadas algumas novas tecnologias, incluindo um método do parceiro 10x Genomics para analisar a expressão dos genes e como as células estão a interagir umas com as outras no tumor. “Nas doenças em que nos vamos focar não houve novos tratamentos nos últimos 40 anos, porque não as entendemos. E não as entendemos pela complexidade do que está acontecer internamente”, refere Elizabeth Auzias. Daí que um estudo como este, que começou a ser pensado há vários anos, só tenha avançado agora. “Tenho muita esperança sobre o que vamos descobrir”, admite.