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Uma pequena operação para ascender ao estrelato

Quando a Igreja Católica interditou que as mulheres cantassem nas igrejas e nos teatros, tinha por intuito a defesa do pudor, da modéstia e do que entendia ser o lugar da mulher na sociedade, mas, inadvertidamente, criou um sério problema à prática musical: as vozes agudas só podiam ser asseguradas por rapazinhos (ou, mais raramente, por falsetistas); e acontece que as leis da vida ditam que os rapazinhos crescem e a partir da puberdade as suas vozes angelicais dão lugar a uns grasnidos grosseiros, antes de migrarem de vez para o registo grave. Houve quem descobrisse que a remoção dos testículos na idade apropriada – oito a dez anos – permitia, com alguns “danos colaterais”, que a voz se mantivesse angelical ao longo da adolescência e da idade adulta e que a caixa pulmonar de um homem associada à laringe de uma criança permitia feitos vocais que não estavam ao alcance de nenhuma outra criatura.

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Farinelli, o mais célebre dos castrati com amigos: da esquerda para a direita, o poeta e libretista Metastasio, a soprano Teresa Castellini, aluna de Farinelli e prima dona do teatro de ópera de Madrid, Farinelli e o autor do retrato, Jacopo de Amigoni. 1750-52

Claro que o proprietário da voz angelical e dos testículos era demasiado novo para poder decidir, em consciência, da manutenção da primeira a custo da perda dos segundos, pelo que a decisão recaía sobre os pais. Se estes fossem pobres, não haveria lugar para grande hesitação: num prato da balança estava a mesma vida miserável de sempre, no outro um filho que, no lisonjeiro quadro pintado pelo professor de música do petiz, estava destinado à fama e à fortuna – omitindo que nem sempre a operação produzia os resultados desejados, que uma bonita voz aos oito anos e treino intensivo não garantiam uma bonita voz aos 18 anos e que uma bonita voz nem sempre assegurava uma carreira generosamente remunerada.

Mas mesmo que o miúdo não estivesse destinado ao estrelato, a castração e a admissão num conservatório ou num coro de igreja representavam um alívio do fardo dos pais: era menos um filho para alimentar, vestir e calçar – e educar, já que o treino como cantor nessas instituições vinha acompanhado de rudimentos de instrução, variáveis segundo as circunstâncias. É significativo que a maioria dos castrati proviessem das regiões mais pobres do Sul de Itália, em particular da Apúlia (o tacão da “bota” italiana).

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Este tipo de atitude em relação à castração é, claro está, uma generalização, já que também houve casos como o de Caffarelli e Luigi Marchesi, que insistiram em fazer-se castrar para poder seguir a carreira que almejavam.

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O jovem castrato Gaetano Majorano (1710-1783), mais conhecido por Caffarelli, numa caricatura de Pier Leone Ghezzi

Da igreja para o teatro

O Vaticano não aprovava oficialmente a castração, mas era um dos seus principais beneficiários e o coro da Capela Sistina foi um dos seus primeiros e mais assíduos empregadores. Foi também o último, uma vez que aí cantaram castrati até ao início do século XX, embora a castração fosse proibida em Itália desde 1870 e, em 1878, o papa Leão XIII tivesse interditado a contratação de novos castrati pelo Vaticano. Pertencem a um castrato desse coro, Alessandro Moreschi (1858-1922), os únicos registos conhecidos desse tipo de voz, realizados entre 1902 e 1904. Pela mesma altura – Novembro de 1903 – o papa Pio X assestou mais um golpe nesta tradição secular, ao decretar que as vozes agudas passassem a ser asseguradas “por rapazes, em conformidade com as mais antigas tradições da Igreja”.

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O coro da Capela Sistina nos nossos dias

Ainda assim, Moreschi, que começara carreira aos 15 anos como solista no coro da basílica de S. João Latrão, em Roma, continuou a ser membro da Cappella Giulia, na basílica de S. Pedro, até 1913.

Os registos de Moreschi não dão uma imagem minimamente aproximada do que seria a voz dos castrati idolatrados pelo público da ópera setecentista: não só a qualidade de som é péssima como Moreschi era um cantor sofrível e, quando as gravações foram realizadas, a sua voz estava já em franco declínio. Além do mais, Moreschi nunca fora sujeito ao treino intensivo em acrobacias vocais a que eram sujeitos os castrati que seguiam carreira operática.

[“Crucifixus” da Petite Messe Solennelle de Rossini, por Alessandro Moreschi, em 1902]

Na verdade, a quebra da qualidade do cantores nas igrejas começara muito antes: em meados do século XVII, o público da ópera começou a ficar fascinado com as vozes dos castrati e os empresários de ópera começaram a aliciar os melhores cantores com remunerações com que as igrejas não podiam competir. A febre pelos castrati foi subindo na primeira metade do século XVIII e as remunerações pagas pela ópera também, de forma que, na década de 1770, Charles Burney, que viajou intensivamente pela Europa a fim de obter material para a sua pioneira e ambiciosa História da Música, afirmava que “todos os músicos nas igrejas [de Itália] são o refugo dos teatros de ópera e é muito raro encontrar nelas uma voz aceitável”.

Burney talvez exagerasse, pois apenas uma pequena fracção dos castrati conseguia integrar o número restrito de cantores que se apresentava nos teatros de ópera e menos ainda conseguiam manter-se entre essa elite durante muito tempo, já que os gostos do público eram volúveis, a ópera era um ramo de negócio sempre à beira da ruína financeira e as tournées europeias eram extenuantes e perigosas, já que as redes de transportes eram relativamente incipientes. Assim, muitos castrati acharam prudente manter a ligação a um coro de igreja, mesmo que se ausentassem, por vezes por longos períodos, para actuar na ópera. Outros tentavam regressar aos coros quando a fortuna nos palcos os abandonava ou quando a voz já não lhes permitia as acrobacias requeridas na ópera.

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O castrato Carlo Scalzi, no papel de Sirbace, na ópera Rosbale (1737), de Nicola Porpora. Retrato de Charles Joseph Flipart, c. 1737

O lugar das mulheres

Apesar da sua extraordinária popularidade, os castrati não monopolizaram os palcos dos teatros: é verdade que a ópera barroca não costumava atribuir papéis importantes às vozes de tenor e baixo, mas no registo agudo os castrati tinham a competição das sopranos, mezzo-sopranos e contraltos, pois a interdição da Santa Sé relativa à participação de mulheres em espectáculos musicais apenas tinha efeito prático nos Estados Pontifícios e nos países mais devotamente católicos, como Espanha e Portugal.

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A soprano Faustina Bordoni reinou nos palcos europeus entre 1716 e 1751; retrato de Bartolomeo Nazari, c. 1730

No caso português, a interdição de mulheres em palco manteve-se até muito tarde, o que permitiu que os castrati mantivessem o domínio absoluto dos palcos até ao final do século XVIII, quando no resto da Europa a sua voga entrava já no ocaso. Luísa Todi, a cantora portuguesa de maior projecção internacional de todos os tempos, foi aclamada nos mais prestigiados teatros da Europa (e viu-se envolvida numa acesa rivalidade com Luigi Marchesi, um dos últimos castrati de grande popularidade), mas quando regressou a Portugal, em 1793, necessitou de uma autorização especial para actuar em público.

No Real Teatro de São Carlos viu-se pela primeira vez uma mulher em palco a 28 de Julho de 1799, contracenando com Crescentini (1762-1846), outro dos derradeiros castrati de relevo, o que causou alguma agitação. Porém, em Novembro desse mesmo ano, a interdição da presença de mulheres foi finalmente revogada pelo príncipe regente D. João.

Em França, cuja ópera seguiu uma linha evolutiva independente da italiana e não recorria a castrati, as vozes agudas eram domínio feminino exclusivo, enquanto no resto da Europa (salvo Estados Pontifícios, Espanha e Portugal, como referido) os palcos eram partilhados por mulheres e castrati. Mesmo em Roma, a interdição só se aplicava a espectáculos públicos, pelo que as récitas privadas nos palácios de cardeais e aristocratas recorriam por vezes a cantoras.

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A soprano Francesca Cuzzoni, o castrato Farinelli e o empresário John James Heidegger, em caricatura de Joseph Goupy, c. 1729

Um palco cheio de equívocos sexuais

O que pode parecer mais desconcertante aos olhos e ouvidos de hoje é que a distribuição de mulheres e castrati pelos diversos papéis de uma ópera não correspondia a critérios “realistas”. As convenções da opera seria – cujos enredos assentavam na mitologia greco-romana, em episódios históricos da Antiguidade Clássica e da Idade Média ou em romances de cavalaria – impunham que os heróis masculinos – como Júlio César ou Alexandre – tivessem vozes agudas, podendo ser assumidos, indiferentemente, por um castrato ou por uma mezzo-soprano ou contralto.

Também os papéis femininos tanto podiam ser entregues a mulheres como a um castrato (de preferência jovem e bem-parecido). A incongruência podia ir ao ponto de um papel masculino secundário – um general ou um príncipe – ser concebido para voz de soprano, enquanto a sua apaixonada – invariavelmente uma princesa – era composta para voz de contralto, mais grave. Aos tenores e baixos estava quase sempre confiado o papel de vilão ou de pai (quase sempre um rei idoso) ou ainda de braço direito/confidente do herói.

Quando a opera seria começou a regressar aos palcos em meados do século XX, os papéis que dantes eram dos castrati foram atribuídos a mezzo-sopranos e contraltos ou foram transpostos para o registo de tenor. Porém, na década de 80 os contratenores começaram a ganhar espaço e foram progressivamente tomando conta dos papéis de heróis masculinos.

Quando Gérard Corbiau decidiu rodar um filme (supostamente) biográfico sobre Farinelli, o mais célebre dos castrati, e precisou de recriar a voz do cantor (descrita nos relatos da época como prodigiosa), usou uma solução de compromisso: fundiu digitalmente as vozes da soprano Ewa Malas-Godlewska e do contratenor Derek Lee Ragin.

[Trailer de Farinelli (1994), de Gérard Corbiau]

Quando em 2002 René Jacobs, um antigo contratenor que se converteu num brilhante maestro de música antiga, concebeu Arias for Farinelli, que foi pioneiro na vaga de discos “conceptuais” dedicados a grandes castrati, recorreu a Vivica Genaux, uma mezzo-soprano originária de Fairbanks, no Alaska, que era então pouco conhecida e se tornou entretanto numa estrela de primeira grandeza do canto barroco.

[Ária “Qual guerrieroin campo armato”, de Idaspe (1739), ópera de RiccardoBroschi, irmão de Farinelli, por VivicaGenaux, Akademiefür Alte MusikBerlin & RenéJacobs (Harmonia Mundi)]

Também o maestro Alan Curtis, o mais empenhado advogado das óperas de Handel, com extensa discografia na Virgin e Archiv, tem vindo a confiar os papéis de castrati preferencialmente a vozes femininas. No extremo oposto, a primeira gravação mundial de “Catone in Utica”, de Leonardo Vinci (c.1696-1730, sem parentesco com o pintor renascentista), dirigida por Riccardo Minasi em 2014 para a Decca, conta com um elenco exclusivamente masculino, e a mesma opção foi tomada por Diego Fasolis para o Artaserse, do mesmo compositor, que gravou em 2011 para a Virgin.

As discussões sobre se são as mezzo-sopranos, as contraltos ou os contratenores que se aproximam mais da mítica sonoridade dos castrati é vã e está condenada a ser inconclusiva: por um lado, porque as vozes de castrato assumiram variadas formas, por outro porque as descrições que nos chegaram não permitem reconstituí-las. O que importa é que hoje estamos magnificamente servidos de mezzo-sopranos, contraltos e contratenores que cantam as árias de ópera barroca com uma agilidade e expressividade que nada deixam a desejar.

[“Anch’il mar par che sommerga”, ária de Idaspe na ópera Bajazet (1735), de Antonio Vivaldi, originalmente destinado ao castrato soprano Giovanni Manzoli. Por Cecilia Bartoli, Il Giardino Armonico & Giovanni Antonini]

Música feita por medida

Na ópera barroca, mais relevante do que a coincidência entre o sexo do intérprete e o sexo da personagem, era o acerto entre as capacidades vocais do intérprete e as árias que lhe eram confiadas. Os compositores compunham as diferentes partes tendo em mente intérpretes concretos, cujas virtudes e limitações conheciam – para mais, durante os ensaios, podiam aferir da adequação da partitura e fazer ajustes onde entendessem necessário, ou onde o intérprete, se tivesse estatuto para tal, exigisse.

Quando, no final de 1722, a soprano Francesca Cuzzoni, que deslumbrara Itália, chegou a Londres, para desempenhar o papel de Teofane, filha do imperador bizantino, em Ottone, de Handel, entendeu, durante os ensaios, que a sua primeira ária, “Falsa imagine”, não convinha à sua voz e pediu que o compositor compusesse uma ária nova. Handel, que era um homem corpulento e irascível, respondeu-lhe: “Madame, bem sei que vós sois um verdadeiro demónio, mas informo-vos de que sou Belzebu, chefe de todos os demónios”. E tomando a cantora pela cintura, ergueu-a no ar e fez menção de a atirar pela janela. Cuzzoni conformou-se em cantar a ária e acabou por ser muito aplaudida.

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A soprano Francesca Cuzzoni, c. 1720-30

O cuidado em ajustar as árias aos cantores levava a que, quando a ópera era reposta com outro elenco, o compositor se desse ao trabalho de rever as árias ou até de substituir algumas delas por outras mais adequadas aos novos intérpretes. Alguns cantores tinham inclusive uma mão-cheia de árias favoritas – as arie di baule – que punham em evidência os seus particulares dotes vocais e com as quais tinham ganho fama, que tratavam de inserir em qualquer ópera que cantassem. Os compositores opunham-se a tal prática, mas o público, que, em geral, estava marimbando-se para a coerência dramática da ópera e queria era ouvir os seus ídolos cantar os seus greatest hits, entrava em delírio.

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O jovem Farinelli num papel feminino, caricatura de Pier Leone Ghezzi, 1724

Birras, amuos e tumultos

O interesse do público estava sobretudo focado nas acrobacias vocais das vozes agudas, pelo que eram os castrati e as cantoras que obtinham os contratos mais vantajosos: as estrelas ganhavam mais do que toda a orquestra e que o próprio compositor, por muito prestigiado que este fosse, e eram essas remunerações principescas que tornavam o negócio da ópera uma actividade financeiramente arriscada.

Em Londres, na década de 1720, a Royal Academy of Music, dirigida por Handel, conseguiu reunir três super-estrelas: as sopranos Faustina Bordoni e Francesca Cuzzoni e o castrato Senesino. A concentração de estrelas fez sensação mas a companhia acabaria por falir. Handel, que nutria forte paixão pela ópera (comporia cerca de 40), não desistiu e fundou a Second Academy, que, na década de 1730, entrou em feroz competição com a Opera of the Nobility. A primeira assegurou os serviços do castrato Carestini (depois substituído por Caffarelli) e a segunda contratou os castrati Farinelli e Senesino. Os vencimentos destes elencos “galácticos” acabaram por levar ambas as companhias à bancarrota.

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O castrato Farinelli, por Jacopo Amigoni, c. 1752

É tentador ver neste estrelato e nestas remunerações milionárias um paralelo com o que se passa hoje com as estrelas do pop-rock e do futebol. O paralelo tem ainda outra faceta: a idolatria de que eram alvo e o facto de, tendo origem humilde, se verem catapultados para o convívio com reis, aristocratas e cardeais – a conjugação destes factores costumava dar a volta à cabeça dos cantores, desencadeando manifestações de vaidade e arrogância e levando frequentemente a atritos com maestros, compositores e colegas. As picardias entre cantores pretexto para a criação de facções rivais entre o público, que não só ovacionavam entusiasticamente todas as intervenções do seu ídolo como apupavam e gracejavam quando cantava o seu rival.

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Faustina Bordoni, em retrato de Rosalba Carriera, década de 1730

Quando o elenco de uma ópera tinha duas cantoras de estatuto idêntico, o compositor era obrigado a distribuir com rigorosa igualdade o número, a duração e a dificuldade das árias, de forma que nenhum das prime done se sentisse menosprezada. Embora já tivessem partilhado o palco em Itália, a coexistência de Francesca Cuzzoni e Faustina Bordoni na Royal Academy of Music foi tornando-se cada vez mais difícil, com a tensão a ser acicatada pelas respectivas claques, que perturbaram as récitas de Admeto, de Handel, em Janeiro de 1727.

As coisas foram ainda mais longe a 6 de Junho de 1727, numa récita de Astianatte, de Giovanni Battista Bononcini, e nem a presença da princesa Carolina entre o público dissuadiu as claques de criar um tumulto inaudito, que levou à suspensão da representação e de toda a temporada de ópera. Correu na imprensa a notícia de que Cuzzoni e Bordoni se teriam insultado e puxado pelas perucas uma da outra, mas investigações recentes permitiram apurar que as desordens foram sobretudo entre as claques e que a imagem das duas divas engalfinhadas só terá ocorrido nas textos satíricos publicados pela imprensa londrina, que não perdia uma oportunidade para ridicularizar a opera seria, as suas estrelas caprichosas, os libretos pretensiosos e o espalhafato da maquinaria cénica

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Vivica Genaux (esquerda) e Simone Kermes (direita) parodiam a rivalidade entre Francesca Cuzzoni e Faustina Bordoni, em imagem promocional do CD Rival queens (Sony Classical)

Quatro primeiras damas

Em 2015, a orquestra barroca Armonia Atenea, de George Petrou, tinha lançado The 5 Countertenors (Decca), cujo título, embora parodie “Os três tenores”, nada tem a ver com esse projecto que reuniu Pavarotti, Domingo e Carreras a cantar greatest hits da ópera e da cançoneta sentimental para as massas (a estreia, nas Termas de Caracala, em Roma, destinou-se a providenciar verniz cultural à final do Campeonato do Mundo de Futebol de 1990) e que obteve reconhecimento planetário e pingues lucros mas que é de nula relevância artística.

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Petrou e os contratenores Max Emanuel Cenčić, Yuriy Mynenko, Valer Sabadus, Xavier Sabata e Vince Yi propunham-se recordar ao mundo a assombrosa exuberância e variedade da música composta para os castrati da ópera barroca e pré-clássica, recorrendo a árias compostas por Ferdinando Bertoni, Johann Christian Bach, Baldassare Galuppi, Christoph Willibald Gluck, George Frideric Handel, Johann Adolf Hasse, Niccolò Jommelli, Josef Mysliveček e Nicola Porpora.

[Apresentação e excertos das gravações de The 5 countertenors, pela Armonia Atenea]

Petrou e a sua Armonia Atenea propõem agora algo de similar, mas, em contraste com o CD anterior, estritamente masculino, Baroque divas (Decca) recorre a um quarteto de notáveis cantoras de música barroca da actualidade, três mezzo-sopranos – Romina Basso, Vivica Genaux e Mary-Ellen Nesi – e uma contralto – Sonia Prina –, para dar a ouvir árias compostas por Giovanni Battista Bononcini, Antonio Caldara, Christoph Willibald Gluck, Johann Adolf Hasse, Giovanni Porta/Giuseppe Sellitto, Francesco Maria Veracini, Leonardo Vinci e Antonio Vivaldi para os maiores virtuosos do seu tempo.

Entre essas estrelas estão os castrati Nicola Grimaldi (1673-1732), mais conhecido pelo nome artístico de Nicolini, Giovanni Battista Minelli (1689-1762), Giovanni Ossi (activo em 1716-34) e Carlo Broschi (1705-1782), que ficou na história com o nome de Farinelli.

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“Prove per un’opera”, por Marco Ricci, c. 1709. Ensaio de uma ópera no teatro de Haymarket, em Londres, com o compositor, empresário e libretista Nicola Francesco Haym ao cravo e o castrato Nicolini (Nicola Grimaldi) de pé, à direita de Haym

Caffarelli (1710-83), um dos poucos castrati que rivalizou em fama com Farinelli, está representado por “Ti parli nel seno speranza ed amore”, uma ária “em segunda mão”, já que Giovanni Porta a destinou originalmente a Farinelli, na sua ópera Farnace (1731), mas acabou por ser reutilizada, em forma profundamente revista, por Giuseppe Sellitto para um Siface (1734) composto a várias mãos (as óperas colectivas e o pasticcio – uma ópera que reaproveita trechos de óperas pré-existentes – eram práticas correntes no barroco e davam resposta ao insaciável apetite do público por novas produções operáticas).

A maioria das árias de Baroque divas foram originalmente destinadas a castrati e a única grande “diva barroca” em destaque no programa do CD é Faustina Bordoni, que está representada com “Spera che questo cor”, de Astianatte (1727), de Giovanni Battista Bononcini, a ópera em que a rivalidade Bordoni/Cuzzoni atingiu as vias de facto. Bordoni é agora reencarnada por Mary-Ellen Nesi.

[“Spera che questo cor”, por Mary-Ellen Nesi, Armonia Atenea & George Petrou]

Outra das raras árias incluídas em Baroque divas que se destinou originalmente a uma cantora interpretando um papel feminino é “Daranno all’ira mia” (cantada no CD por Romina Basso), que provém de Euristeo (1724), de Antonio Caldara, uma ópera composta para corte imperial de Viena e que teve a particularidade de ter sido concebida para um elenco vocal de membros da família imperial e da nobreza, dirigidos a partir do cravo pelo imperador Carlos VI.

Como é usual nestes florilégios de árias de ópera barrocas, a maioria dos compositores amostrados em Baroque divas são desconhecidos do público não-especializado de hoje. É também o caso de Francesco Maria Veracini, que abre o CD com “Amor, dover, rispetto”, de Adriano in Siria (1735), que foi concebida para que Farinelli exibisse a sua fenomenal agilidade vocal. Vivica Genaux passa a prova com distinção, mostrando que, desde o seu surpreendente Arias for Farinelli, com René Jacobs, em 2002, subiu alguns degraus no domínio do virtuosismo pirotécnico farinelliano.

[“Amor, dover, rispetto”, de Vinci, por Vivica Genaux, Europa Galante & Fabio Biondi, num concerto ao vivo]

Do napolitano Leonardo Vinci (1690-1730), hoje também esquecido, o CD inclui “Ti calpesto, o crudo amore”, da ópera Astianatte (1725), uma ária enérgica, abrilhantado pela sonoridade faiscante das trompas. A carreira de Vinci como compositor durou apenas 11 anos (entre 1719 e 1730) durante os quais compôs 35 óperas (parte das quais são óperas bufas em dialecto napolitano) e Charles Burney gabou-lhe a forma como colocou a voz em relevo, desemaranhando-a de floreados e laboriosos procedimentos composicionais.

[“Ti calpesto, o crudo amore”, de Vinci, por Sonia Prina, Armonia Atenea & George Petrou]

Antonio Vivaldi (1678-1741) ganhou fama no século XX pela copiosa produção de concertos (quase quatro centenas) e só mais recentemente se revelou como não menos prolífico compositor de óperas: o próprio reclamava ser autor de 90, das quais chegaram aos nossos dias 40 (20 sob forma incompleta). Desta riquíssima produção, o CD elegeu “Vedrò con mio diletto”, da ópera Giustino (1724), uma ária de atmosfera velada, cantada com sumptuosa lentidão por Romina Basso.

[“Vedrò con mio diletto”, de Vivaldi, por Romina Basso, Armonia Atenea & George Petrou]

O compositor mais representado em Baroque divas é Johann Adolph Hasse (1699-1783), que foi um dos mais afamados, bem pagos e prolíficos (mais de 60 óperas!) do seu tempo mas que passou por um longo período na sombra até à recente recuperação da ópera barroca. Hasse foi amigo chegado de Metastasio, o libretista n.º1 da opera seria, e casou-se em 1730 com Faustina Bordoni, para cuja voz compôs numerosos papéis.

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Johann Adolph Hasse, retrato de Balthasar Denner, 1740

Hasse representa bem o carácter cosmopolita da opera seria setecentista: nasceu em Hamburgo, obteve, na qualidade de tenor, um posto na corte de Brunswick, onde compôs a sua primeira ópera e, aos vinte e poucos anos, rumou para Itália, como Handel, com a intenção de aperfeiçoar a sua técnica de composição, tendo estudado em Nápoles com o renomado Porpora. E como Handel (ver link Handel em Itália), assimilou tão rápida e completamente a linguagem italiana, que em pouco tempo estava a disputar a primazia aos compositores italianos em Nápoles, uma das capitais europeias da ópera.

Foi para esta cidade que compôs Tigrane (1729), de onde foi extraída para o CD a ária “Solca il mar e nel peligro”, aqui cantada pela contralto Sonia Prina. “Solca il mar e nel peligro” é uma “ária de tempestade”, embora a acção decorra em terra firme e bem seca – o enredo envolve a sucessão no trono da Arménia – mas não há aqui contradição: as ondas alterosas e a ventania que quase faz soçobrar o navio que são evocadas neste tipo de ária são uma metáfora da agitação psicológica da personagem e das emoções contraditórias que a assolam.

Em 1730, Hasse foi nomeado Kapellmeister da magnificente corte de Dresden, onde ficou, intermitentemente, até 1763, com numerosas e prolongadas escapadelas para dar a ouvir as suas óperas em Itália. Em 1734, passou brevemente por Londres, onde o seu antigo mestre Porpora, que entrara ao serviço da Opera of the Nobility, preparou um pasticcio do Artaserse que Hasse estreara em Veneza em 1730, enxertando-lhe trechos de outros compositores (nomeadamente de Riccardo Broschi, irmão de Farinelli). Este Artaserse de 1734, com Farinelli e Senesino, nos papéis de Arbace e Artabano, respectivamente, fez sensação em Londres.

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O castrato Senesino, c. 1720

A selecção do CD contempla a ária “Pallido il sole”, proveniente do pasticcio londrino de 1734 e destinada à personagem de Artabano, cantada por Senesino e não por Nicola Grimaldi, como se escreve nas notas do livrete (até porque este já há muito regressara a Itália, tendo falecido em Nápoles, em 1731, nos ensaios de Salustia, a primeira ópera de um rapaz de 21 anos, Giovanni Battista Pergolesi, que cruzaria como um meteoro o firmamento operático barroco). “Pallido il sole” é interpretada no CD pela contralto Sonia Prina, cuja voz escura assenta na perfeição à atmosfera sombria e inquietante da ária.

[“Palido il sole”, por Sonia Prina, Armonia Atenea & George Petrou]

Esta ária de Senesino seria depois celebrizada por Farinelli, que em 1737 se retirou dos palcos, por ter sido contratado pela corte espanhola – Elisabetta Farnese, a mulher de Filipe V, convencera-se de que só a voz prodigiosa de Farinelli seria capaz de curar o rei da sua profunda depressão. Conta-se que, todos os serões, durante anos a fio, Farinelli terá cantado para Filipe V as mesmas três ou quatro árias, duas das quais eram do Artaserse de Hasse: “Per questo dolce amplesso” e “Pallido il sole”.

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Filipe V de Espanha sofria de acessos de “melancolia”, que encontravam lenitivo no canto de Farinelli; retrato por Jean Ranc, 1743

O prestígio de que Hasse disfrutava não impedia que o seu vencimento fosse muito inferior ao da esposa: a composição de uma ópera podia render a Hasse 50 ducados, mas Bordoni cobrou 3300 ducados por uma temporada em Nápoles. Em 1751, Bordoni retirou-se dos palcos com Ciro riconosciuto e Hasse teve de encontrar outra musa. A primeira, Regina Mingotti (1722-1808), que se estreou em Adriano in Siria (1752), foi de curta duração, pois entrou em conflito com Hasse e Bordoni, sendo substituída por Teresa Albuzzi-Todeschini como prima dona do teatro da corte de Dresden. Mingotti seria, provavelmente, muita senhora do seu nariz e independente, já que depois de passar brevemente pela corte de Madrid, onde Farinelli dirigia as representações de ópera, foi parar a Londres, onde assumiria a direcção do King’s Theatre – a primeira vez na história em que uma mulher desempenhou este tipo de cargo.

A ópera seguinte de Hasse para Dresden, Solimano (1753), está representada pela ária “Fra quest’ombre”, cuja orquestração já prenuncia as óperas “da reforma” de Gluck. A ária, destinada à personagem Selim, interpretada na estreia pelo castrato Angelo Maria Monticelli, é confiada no CD a Vivica Genaux.

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O castrato Angelo Maria Monticelli como Megacle, na ópera Attilio Regolo, de Hasse, estreada em Dresden em 1750

O que não é possível restituir em CD, nem nos teatros de ópera de hoje, é a sumptuosidade da encenação de Solimano, que, tirando partido da temática oriental (a acção decorre em Babilónia e envolve questões dinásticas otomanas), colocou em palco dezenas de animais vivos, incluindo camelos e elefantes.

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A soprano Teresa Albuzzi-Todeschini como Tamiri na ópera Solimano (1753), de Hasse

No programa do CD, Christoph Willibald Gluck (1714-87) representa a transição para um novo estilo de ópera, sem os excessos de ornamentação e o virtuosismo exuberante típicos da primeira metade do século XVIII. A ária “Le belle immagini d’un dolce amore”, cantada no CD por Vivica Genaux, provém de Paride ed Elena (1770), que constitui, com Orfeo ed Euridice (1762) e Alceste (1767), a trilogia de óperas “de reforma”. A textura da orquestra ganha densidade e dá papel mais relevante aos sopros, ao mesmo tempo que a linha vocal se torna mais linear.

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Christoph Willibald Gluck, um dos principais agentes da evolução da ópera do barroco para o classicismo, em retrato de Joseph Duplessis, 1775

“Jupiter, lance ta foudre!” vem da ópera seguinte de Gluck, que regista um desvio ainda mais acentuado ao padrão da opera seria barroca: Iphigénie en Aulide (1774), a primeira ópera que Gluck compôs para Paris, mescla elementos das óperas francesa e italiana. “Jupiter, lance ta foudre!”, uma ária da personagem Clytemnestre, é uma das três árias do CD que se destinou originalmente a uma personagem feminina e a uma voz feminina.

O texto do livrete, é omisso sobre as circunstâncias que rodearam a composição, estreia e recepção das árias, óperas e compositores seleccionados e fornece escassos elementos sobre os cantores que as estrearam. É uma debilidade difícil de compreender num disco em que música, intérpretes e engenharia de som estão acima de quaisquer reparos.

Outros discos dedicados a super-estrelas do canto barroco

Na última década, sopranos, mezzo-sopranos e contratenores de topo têm vindo a gravar discos com selecções de árias de ópera barroca, onde convivem compositores consagrados e nomes entretanto caídos no mais completo olvido, cuja música não é escutada há três séculos. Entre essa abundante oferta, recomendam-se em seguida discos cujo programa foi articulado em torno de uma grande estrela do canto barroco (ou de um par de rivais).

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