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Há uma distância difícil de apreender entre o primeiro antepassado nosso que experimentou mastigar algumas folhas de um arbusto com um aroma pungente na esperança de aliviar as cólicas resultantes de ter comido mais do que a sua conta de fígado de mamute cru no festim da noite anterior e o desenvolvimento de vacinas que fazem chegar à maquinaria celular, através de uma forma modificada de ácido ribonucleico mensageiro (mRNA), instruções para produzir réplicas do peplómero com que os vírus se fixam nos receptores da superfície celular, réplicas essas que desencadeiam a produção de anti-corpos pelo sistema imunitário.

Durante a maior parte dos muitos milénios que mediaram entre um momento e outro, a obtenção e preparação de fármacos esteve, sucessivamente, confiada ao instinto de cada um, ao shaman da tribo e a boticários, médicos e charlatães (as fronteiras entre estas categorias profissionais nem sempre foram claras); só no século XIX emergiu a figura do farmacêutico, no sentido de alguém que possui conhecimentos científicos sobre a composição dos fármacos e do seu efeito no organismo humano e nas maleitas que o atacam.

Página referente à mandrágora numa versão do século VII do tratado De materia medica (c.50-70 d.C.), de Dioscórides

Nota 1: O ranking mundial de empresas farmacêuticas que é mencionado no texto que se segue foi ordenado de acordo com as receitas obtidas na venda de fármacos (no ano de 2019), o que não coincide necessariamente com as receitas totais dos grupos empresariais, uma vez que alguns destes também têm actividade significativa nos ramos dos dispositivos médicos, higiene, nutrição, perfumaria ou agroquímicos.

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Nota 2: Este é o primeiro de dois artigos sobre este tema.

Poções, unguentos, elixires, bálsamos, mezinhas, emplastros e filtros

Bem antes do advento da farmacologia moderna, já circulavam, em diferentes civilizações, tratados que compilavam o conhecimento disponível sobre as propriedades terapêuticas das diversas substâncias – aquilo que no Ocidente se designou por materia medica.

Um dos mais antigos documentos deste tipo que chegou aos nossos dias é o “Papiro Ebers” (assim denominado por ter sido adquirido pelo egiptólogo Georg Ebers): tem 110 páginas, terá sido redigido por volta de 1500 a.C., embora se suponha que foi compilado a partir de textos mais antigos, e lista 700 tratamentos, que envolvem quer substâncias vegetais e minerais quer invocações mágicas e amuletos. Na China, a primeira materia medica de que há conhecimento (através de cópias tardias) é o Shennong Bencaojing, que foi coligido no século I d.C., a partir de tradições orais remontando ao século III a.C., e que lista 365 fármacos. Na Índia, ao longo do I milénio a.C., foram produzidos vários textos sobre assuntos de saúde, incluindo tratamentos recorrendo a substâncias vegetais e minerais, que seriam depois integrados no Ayurveda (recuperado, no nosso tempo, como fonte de infinita sabedoria pelos entusiastas da New Age e de tudo o que tenha aroma oriental). Alguns dos primeiros tratados de botânica – como o Historia plantarum, de Teofrasto, datado de c.300 a.C. –, embora não sendo classificáveis como materia medica, costumavam dar especial atenção aos usos terapêuticos das plantas.

O documento-charneira nesta área foi o tratado De materia medica (que deu nome ao “género literário”), redigido por volta de 50-70 d.C. pelo médico grego Dioscórides, cujos cinco volumes incluem uma exaustiva farmacopeia, listando um total de 4740 aplicações medicinais. Este tratado foi traduzido para árabe e moldou a medicina no mundo islâmico e tornou-se igualmente influente na Europa, onde assumiu o papel de obra de referência sobre fármacos até ao século XVI, sendo regularmente traduzido e comentado.

Médico preparando elixir, numa versão árabe, de 1224, do tratado De materia medica, de Dioscórides

Entretanto, dois outros fenómenos contribuíram para que a ciência farmacêutica fosse ganhando incipiente forma. Por um lado, iniciou-se a separação entre as profissões de médico e boticário, iniciada em 1242, através de um decreto do sacro imperador germânico Frederico II. Igualmente determinante foi a aparição dos primeiros estabelecimentos especializados na produção de fármacos: o primeiro de que há registo surgiu em 1221, em Florença, associada à Igreja de Santa Maria Novella e ao mosteiro da ordem dominicana que lhe era adjacente e em cujo horto os monges cultivavam plantas medicinais. Esta “proto-farmácia” daria lugar, em 1612, a um estabelecimento comercial, que ainda hoje se mantém em actividade, o que faz dele uma das mais antigas farmácias em funcionamento ininterrupto. Não é todavia, o recordista de antiguidade, distinção que vai para uma farmácia em Tallinn (hoje na Estónia) que funciona desde 1422.

Boticário e médico numa gravura na versão impressa em Florença em 1508 do tratado  De vita libri tres (1489), de Marsilio Ficino

Foi preciso esperar até meados do século XIX para ver surgir a farmacologia moderna, que ganhou forte impulso quando, na Alemanha, os químicos começaram a desenvolver a capacidade de sintetizar compostos orgânicos, em vez de depender exclusivamente dos que era possível extrair das matérias vegetais e animais. Só em 1928 foi descoberto o primeiro antibiótico – a penicilina – e seriam precisos mais 14 anos até que fosse possível sintetizá-lo e mais um ano ainda para que se iniciasse a sua produção em massa.

Desde então, a indústria farmacêutica deu passos de gigante, tornando-se numa das mais lucrativas do mundo, com a despesa global em medicamentos a atingir os 887.000 milhões de dólares em 2010, 1.25 biliões de dólares em 2019 e, estimam os especialistas, 1.58 biliões de dólares em 2024.

Um boticário, numa iluminura no Tacuinum sanitatis, um manual sobre saúde difundido na Europa Ocidental nos séculos XIII-XIV e que se baseava no Taqwim al-Sihha (Tratado de saúde), redigido em 1050 pelo médico iraquiano Ibn Bûtlan

Pfizer

Karl Christian Friedrich Pfizer (1824-1906) nasceu em Ludwigsburg, na Alemanha, e aos 24 anos emigrou para os EUA, onde mudou o nome para Charles Pfizer, processo em que a pronúncia do apelido passou de “pfitzer” para “faizâ”. Em Brooklyn, em 1849, Pfizer, que era farmacêutico, associou-se ao primo, Charles Erhart, que, como ele, nascera em Ludwigsburg (onde fora baptizado como Karl Erhart) e exercia o mister de confeiteiro, para produzir santonina, um vermicida ou anti-helmíntico – isto é, um medicamento contra parasitas intestinais (ténias e similares) – que era extraído da Artemisia cina, um arbusto originário do Turquemenistão. A santonina, que começara a ser usada como vermicida na Alemanha na década de 1830, tinha um gosto assaz desagradável e foi aqui que o talento de confeiteiro de Erhart interveio, conferindo ao medicamento um gosto adocicado.

Charles Pfizer, c.1890

A Charles Pfizer & Co. dedicou-se também à produção de ácido tartárico e ácido cítrico, com grande sucesso, e quando Erhart faleceu, em 1891, Pfizer adquiriu aos seus herdeiros a sua participação na empresa. O ácido cítrico era um dos principais ingredientes das bebidas “medicinais” à base de cola (como a Coca-Cola e a Pepsi-Cola), cuja popularidade explodiu no início do século XX, o que fez os lucros da Charles Pfizer & Co. crescerem ainda mais. A Pfizer teve também papel decisivo na produção em massa de penicilina (descoberta em 1928 por Alexander Fleming) durante a II Guerra Mundial e foi pioneira no desenvolvimento de outros antibióticos (como a terramicina).

A Pfizer foi diversificando os seus produtos, sendo responsável pela comercialização de alguns dos fármacos mais populares, como o anti-depressivo Zoloft, a estatina Lipitor (o medicamento mais vendido de sempre) e o Viagra. Ao mesmo tempo, foi adquirindo alguns dos seus principais competidores, como a Warner-Lambert, em 2000 (por 111.800 milhões de dólares, no que foi a 7.ª maior operação de fusão da história empresarial), a Pharmacia, em 2003, e a Wyeth, em 2009, tornando-se, então, na empresa n.º 2 do ramo – entretanto já subiu ao lugar cimeiro, com receitas anuais de 52.000 milhões de dólares (todas no sector dos fármacos).

Se a Pfizer já era um nome bem conhecido, mais celebridade granjeou em 2020, ao ter sido uma das primeiras empresas a conseguir desenvolver e obter aprovação para uma vacina contra a covid-19. Esta proeza foi conseguida em aliança com a BioNTech, uma empresa alemã de biotecnologia, fundada em 2008, em Mainz, por Uğur Şahin e Özlem Türeci, um casal de investigadores de origem turca. O nome de código desta vacina é a BNT162b2 (o “BNT” provém de BioNTech) e a sua marca comercial é Cominarty, que resulta, segundo a explicação (pouco convincente) da BioNTech, da fusão de “Covid-19” + “mRNA” (o RNA mensageiro usado para induzir a reacção do sistema imunitário) + “comunidade” + “imunidade”.

Pfizer Pharmaceutical Plant

Fábrica da Pfizer em Folkstone, Grã-Bretanha, década de 1950

Warner-Lambert

Resultou da fusão, em 1955, da William R. Warner & Co., com origem numa farmácia fundada em Philadelphia, em 1856, por William R. Warner, e da Lambert Pharmacal Co., com origem numa empresa fundada em St. Louis, em 1885, por Jordan Wheat Lambert.

O produto mais vendido pela Lambert Pharmacal Co. era a Listerine, um elixir bucal cujo nome provém do médico britânico Joseph Lister, que, em 1865, na linha das teorias sobre “germes” defendidas por Louis Pasteur, demonstrou o efeito positivo do uso de ligaduras embebidas em soluções anti-sépticas (de ácido carbólico) nas infecções pós-operatórias. Ao saber da pesquisa de Lister, Joseph Lawrence, um médico de St. Louis, desenvolveu em 1879 um germicida à base de mentol e eucaliptol, que baptizou como Listerine e cuja fórmula vendeu, em 1881, a Jordan Wheat Lambert. A Listerine foi entendida por Lawrence e por Jordan Lambert como um líquido anti-séptico de uso genérico e chegou a ser usada no tratamento da gonorreia e como produto de limpeza de pavimentos e só na década de 1920, quando a Lambert Pharmacal Co. a promoveu como antídoto contra a “halitose”, encontrou a vocação que hoje lhe conhecemos (ainda assim, até à década de 1950 foi também publicitada como tratamento contra a caspa).

Anúncio à Listerine, 1925

O termo halitose tinha sido cunhado em 1874 pelo médico Joseph William Howe, no livro The breath and the diseases which give it a fetid odor (“O hálito e as doenças que lhe conferem um odor fétido”), mas não ganhou curso – talvez por os hábitos higiénicos das pessoas e a salubridade urbana gerarem, naqueles tempos, odores bem mais pungentes e fortes do que o mau hálito – e foi a campanha publicitária da Listerine que converteu a halitose num “problema” e os produtos para a combater num negócio que actualmente move 1000 milhões de dólares por ano só nos EUA.

Em 2000 a Warner-Lambert foi adquirida pela Pfizer e deixou de existir como empresa.

Johnson & Johnson

O nome Johnson & Johnson pode parecer redundante, mas, a bem do rigor, até deveria chamar-se Johnson & Johnson & Johnson, pois a empresa foi fundada, em 1886, por três Johnson, os irmãos Robert Wood (1845-1910), James Wood (1856-1932) e Edward Meade (1852-1934). Robert Wood Johnson começara a trabalhar como aprendiz de boticário aos 16 anos, no estabelecimento do seu primo James G. Wood, e em 1873 criara uma sociedade com George Seabury, vocacionada para o fabrico de pensos. Ao representar a Seabury & Johnson na Exposição Mundial de 1876, em Philadelphia, Robert Wood assistiu a uma palestra de Joseph Lister, o apóstolo da cirurgia asséptica, o que o levou a direccionar a empresa para o material cirúrgico. Em 1886, após um desentendimento com Seabury sobre a repartição dos lucros, juntou-se aos irmãos James Wood e Edward Meade Johnson, dando origem à Johnson & Johnson, com sede em New Brunswick, New Jersey (o logótipo, que continua em uso 135 anos depois, com alteações de pormenor, reproduz a assinatura de James Wood Johnson).

A fim de promover a abordagem revolucionária da cirurgia proposta por médicos como Lister e Lawrence, numa época em que esta era executada em condições higiénicas pavorosas, a Johnson & Johnson produziu, em 1888, o manual Modern methods of antiseptic wound treatment, que distribuiu gratuitamente entre médicos e farmacêuticos; nesse mesmo ano, apresentou o primeiro estojo de primeiros-socorros da história. Os nostálgicos do “antes-é-que-era-bom” deveriam meditar nestes factos, para se darem conta de quão tenebrosa e periclitante era a vida em geral e os cuidados de saúde em particular, antes da aparição dos “químicos” e de outras “pragas” modernas.

Robert Wood Johnson

A Johnson & Johnson não cessou de inovar e de crescer, com a ajuda de eventos catastróficos como a I Guerra Mundial e a pandemia de gripe pneumónica, e em 1919 abriu a sua primeira fábrica fora dos EUA (no Canadá), seguida, em 1924, pela primeira fábrica na Europa (na Grã-Bretanha). Entretanto, em 1894, estreara-se numa área em que viria a ser dominante, a dos produtos de higiene para bebés, com o Johnson’s Baby Powder (pó talco). Em 1920, a Johnson & Johnson começou a comercializar o primeiro penso-adesivo, o Band-Aid, criado por um dos seus funcionários, Earle Dickson (que, mais tarde, chegaria a vice-presidente da empresa). O Band-Aid levou tempo a impor-se, pois o seu fabrico só foi automatizado em 1924 e o penso só foi asseptizado em 1939, mas acabou por tornar-se tão popular que “band-aid” passou a designar, no mundo anglófono, qualquer penso adesivo, independentemente de ser da Johnson & Johnson ou de outra marca.

Só a partir de 1959 é que a Johnson & Johnson investiu a sério no domínio dos medicamentos propriamente ditos, com a aquisição da McNeil Laboratories, que tinha origem numa empresa fundada em 1879 por Robert McNeil e cujo produto campeão de vendas era o Tylenol (nome derivado do seu princípio activo, o N-acetil-para-aminofenol). A proporção do sector farmacêutico nas receitas da empresa foi crescendo (em parte através de aquisições de grandes empresas nesse ramo), representando hoje 45% do total, com os dispositivos médicos a valer 36% e os produtos de consumo 19%. A Johnson & Johnson ocupa o 4.º lugar no ranking das empresas farmacêuticas, com receitas anuais de 82.000 milhões de dólares.

A Johnson & Johnson enfrentou um sério problema de imagem pública em 1982, quando, na área de Chicago, um psicopata (nunca identificado) adquiriu embalagens de Tylenol, adicionou cianeto às cápsulas e recolocou as embalagens em prateleiras de supermercados, do que resultou a morte de sete pessoas (a maior parte menores); a empresa recolheu todas as embalagens de Tylenol no mercado (31 milhões) em tempo recorde e actuou com transparência, o que minimizou os danos.

Já em 2007 a Johnson & Johnson teve um comportamento desastrado em termos de relações públicas, ao processar a Cruz Vermelha Americana pelo uso, nos seus produtos comerciais, do logótipo com… uma cruz vermelha. A Johnson & Johnson alegou que registara este logótipo em 1905, para comercializar os seus pensos; porém, o emblema da Cruz Vermelha fora criado em 1864 e aprovado em 1882 nos EUA, pelo que os argumentos dos advogados da empresa acabaram por ser rejeitados pelos tribunais. Não só foi uma jogada inepta e mesquinha, como pode perguntar-se por que teria a Johnson & Johnson aceitado durante mais de um século a convivência de duas cruzes vermelhas, a “sua” e a da Cruz Vermelha, e só em 2007 se tivesse sentida impelida a reclamar direitos exclusivos sobre o símbolo.

Anúncio ao Johnson’s Baby Powder, década de 1890

Entretanto, vale a pena registar que em 2020 a empresa deixou de comercializar o emblemático Johnson’s Baby Powder nos EUA (embora continue a fazê-lo noutros países), após ter sido obrigada a pagar indemnizações milionárias resultantes de acções judiciais que alegavam que o talco contém vestígios de amianto, uma substância cancerígena. É de notar que o mercurocromo, que, desde 1918, data da descoberta das suas propriedades anti-sépticas, conquistara lugar cativo em todos os estojos de primeiros-socorros e farmácias domésticas, deixou, em 1998, de ser comercializado nos EUA depois de a FDA (Food and Drug Administration), a entidade reguladora do sector dos fármacos, ter alertado para o facto de não se conhecer o risco de envenenamento por mercúrio (um metal tóxico) associado ao seu uso; entretanto, o mercurocromo deixou também de ser comercializado na Suíça, França, Alemanha e Brasil.

Será que vivemos durante décadas num mundo terrivelmente perigoso sem disso ter consciência, ou as autoridades de saúde estarão a tornar-se picuinhas? Ou estas estarão apenas a reagir aos temores de uma sociedade com inclinações hipocondríacas e absoluta aversão ao risco? É certo quer as indústrias farmacêutica, química, agroalimentar e dos tabacos ocultaram e manipularam informação repetidamente, de forma a convencer os consumidores de que certos produtos eram inócuos (ou até saudáveis) quando tinham efeitos negativos comprovados sobre a saúde e o ambiente, mas não estará a assistir-se a uma reacção excessiva em sentido inverso?

Anúncio ao Johnson’s Baby Powder, datado de 1956, num tempo em que o produto era visto como um guardião da pele delicada dos bebés e não como um perigoso carcinogéneo

Entretanto, a Johnson & Johnson também já apresentou a sua vacina contra a covid-19, desenvolvida pela sua subsidiária Janssen Vaccines, com base em Leiden, nos Países Baixos. A sua eficácia é inferior à das vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna, mas tem a vantagem de só precisar de uma aplicação e de poder ser conservada em qualquer frigorífico. A Janssen Vaccines faz parte da Janssen Pharmaceutica N.V., cuja origem remonta a 1934, quando o médico belga Constant Janssen criou a empresa N.V. Produkten Richter, com o fito de comercializar na Béligia e Holanda os produtos da farmacêutica húngara Richter. A expansão deste negócio levou a que, em 1953, Paul, o filho de Constant (e médico, como o pai), reformulasse a empresa com o nome Janssen Pharmaceutica N.V. Esta seria comprada em 1961 pela Johnson & Johnson, que, em 2010, adquiriu também a empresa holandesa de biotecnologia Crucell e a integrou na sua subsidiária Janssen Pharmaceutica com a designação Janssen Vaccines. O que é uma curiosa coincidência é que o nome Janssen é o equivalente flamengo do inglês Johnson, ou seja “filho de João”.

GlaxoSmithKline

A 9.ª maior empresa farmacêutica do mundo, com receitas anuais de 33.700 milhões de dólares (dos quais 24.700 milhões na área dos fármacos), teve uma origem modesta e remota, na Joseph Nathan & Co., fundada em 1873 em Wellington, Nova Zelândia, pelo britânico Joseph Edward Nathan (1835-1912), um próspero exportador de lã que decidiu diversificar o negócio com a produção de leite em pó para bebés, comercializado sob a marca Glaxo (do latim “lacte” = leite).

Anúncio à Glaxo, Grã-Bretanha, viragem dos séculos XIX-XX

A popularidade do leite em pó Glaxo levou a que o ramo farmacêutico da empresa, que iniciou actividade em 1924, fosse baptizado como Glaxo Laboratories, e que o nome Glaxo designasse, a partir de 1947, todo o grupo empresarial.

Recuemos agora até 1715, quando o boticário Silvanus Bevan abriu um estabelecimento em Old Plough Court, em Londres; este passaria para as mãos dos descendentes de Bevan, que, em 1792, recrutaram os serviços se William Allen (1770-1843), que começou por fazer atendimento ao balcão, mas que, por mérito dos seus conhecimentos científicos e dinamismo, ascendeu, em 1795, a sócio da firma e acabou, na prática, por assumir a sua direcção.

A farmácia de Old Plough Court, Londres

Os laços matrimoniais estabelecidos entre Allen e a família Hanbury levaram a que, em 1810, vários elementos desta se juntassem ao negócio e acabassem, após o falecimento de Allen, por assegurar a sua condução, o que justificou que, em 1856, a empresa fosse rebaptizada como Allen & Hanburys. Por esta altura, o seu produto com maiores vendas era o óleo de fígado de bacalhau, mas a empresa também se tornou num importante fabricante de alimentos para bebés, “bebidas estimulantes para inválidos” e pastilhas medicinais.

A história de sucesso da Allen & Hanburys captou a atenção da cada vez mais poderosa Glaxo Laboratories, que a adquiriu em 1958; em 1995, a Glaxo voltou a reforçar a sua posição, ao fundir-se com outra empresa farmacêutica histórica, a Wellcome, fundada em Londres em 1880 por Henry Wellcome e Silas Burroughs, dando origem à GlaxoWellcome.

Agora é preciso ir até ao Oxfordshire, onde Thomas Beecham (1820-1907), nascido numa família humilde, começara a trabalhar como pastor com apenas oito anos. O agreste mister serviu para o rapaz, que tinha espírito arguto, fosse coligindo amplos conhecimentos sobre plantas medicinais, que lhe permitiram conceber umas pílulas laxantes que começou a comercializar em 1842, sob a marca Beecham’s Pills.

A imponente sede situada em St. Helens, Merseyside, encomendada em 1887 por Thomas Beecham ao arquitecto H.V. Krolow, é um eloquente testemunho do acolhimento entusiástico das Beecham’s Pills pelo povo britânico

As pílulas revelaram-se um sucesso estrondoso e o filho mais velho de Thomas Beecham, Joseph (1848-1916), que entrara para a empresa aos 18 anos, deu passos adicionais para a expansão do negócio, abrindo fábricas nos EUA e na Europa continental. Pelos serviços prestados na desobstrução dos intestinos britânicos, Joseph Beecham recebeu o título de “Sir” e, depois, de baronete; tornou-se numa figura proeminente da sociedade britânica, desempenhando cargos de juiz da paz e de mayor e adquiriu um teatro em Londres. O seu filho, que recebeu o mesmo nome do avô, desviou-se do negócio familiar e tornou-se num dos mais afamados maestros britânicos de todos os tempos e também foi agraciado com o título de “Sir” – os Beecham representam, pois, uma invulgar história de ascensão num país que, na época, possuía uma hierarquia social rígida.

A empresa, que, entretanto, foi diversificando a produção bem para lá das pílulas laxantes, foi comprada à família Beecham em 1924 por Philip Hill e foi rebaptizada em 1943 como Beecham Group.

O rumor do mar no interior das conchas recomenda que se experimentem as Beecham’s Pills: anúncio da década de 1880

Tomemos agora outro fio, que recua até 1830, com a abertura em Philadelphia de uma farmácia por John K. Smith, a quem se juntou, em 1865, o farmacêutico Mahlon Kline, sociedade que está na origem da SmithKline. Esta fundiu-se em 1929 com os laboratórios French, Richard & Co., dando origem à SmithKline & French, que por sua vez se fundiu com a Beckman Inc. em 1982, dando origem à SmithKline Beckman, que em 1989, adquiriu o Beecham Group.

Todos este emaranhado de fios empresariais foi atado num nó em 2000, quando a GlaxoWellcome, que era então a 3.ª maior companhia farmacêutica do mundo, se fundiu com a SmithKline Beckman, adoptando a designação GlaxoSmithKlein (ou GSK).

Merck KGaA

Se a história das grandes empresas farmacêuticas costuma ser enredada, a da Merck é-o ainda mais: na verdade, coexistem duas empresas com o mesmo nome, a Merck KGaA (também conhecida como Merck Group), com sede em Darmstadt, na Alemanha, e a Merck & Co., com sede em Kenilworth, New Jersey.

Iremos ocupar-nos primeiro da Merck alemã, que é a mais antiga empresa farmacêutica do mundo em actividade, com origem na Engel-Apotheke (Farmácia Anjo), aberta em Darmstadt em 1668, por Friedrich Jacob Merck (1621-1678).

Engel-Apotheke, Darmstadt, c.1790

Um dos seus descendentes, Heinrich Emanuel Merck, fundou, em 1850, a E. Merck Darmstadt, que, dez anos depois, oferecia 800 produtos diferentes e que no final do século era a maior companhia farmacêutica da Alemanha. Em 1891, a empresa abriu uma sucursal em Nova Iorque, através de Georg (depois George) Merck e Theodore Weicker, com o fito de pôr cobro às contrafacções de fármacos da marca Merck que então proliferavam nos EUA. A sucursal americana, baptizada Merck & Co., prosperou até à eclosão da I Guerra Mundial ter cortado a importação de produtos fabricados pela casa-mãe – pior ainda seria a entrada dos EUA na guerra, em 1917, que levou à nacionalização da Merck & Co.

Secção de empacotamento, fábrica da Merck, Darmstadt, 1936

A casa-mãe continuou a crescer e em 1939 tinha 4000 trabalhadores. Embora o seu director de então, Karl Emanuel Merck, se tivesse filiado no Partido Nazi em 1933, o Governo do III Reich entendeu que, em tempo de guerra, a produção de fármacos era demasiado importante para ser deixada nas mãos da iniciativa privada (quanto mais não fosse porque parte do desempenho dos militares alemães dependia do recurso maciço a doping) e, em 1942, nomeou um gestor militar para dirigir a empresa.

A II Guerra Mundial destruiu parte das instalações da Merck (e a histórica Engel-Apotheke), mas a empresa recuperou rapidamente e em 1960 já tinha 6300 trabalhadores. A Merck KGaA tem diversificado as suas actividades, pelo que os fármacos coexistem hoje com os cristais líquidos (de que é o maior produtor mundial), os semi-condutores, os pigmentos e os cosméticos, sendo o grupo constituído por um total de 250 empresas subsidiárias. As letras KGaA no nome referem-se ao estatuto da empresa: Kommanditgesellschaft auf Aktien, ou seja “participação limitada baseada em acções”. Ao fim de três séculos e meio de existência, a família Merck continua no controlo, detendo 70% do capital.

Merck & Co.

Retomemos a história da Merck & Co. onde a tínhamos deixado, com a nacionalização decorrente da entrada dos EUA na I Guerra Mundial. Após a conclusão desta, George Merck comprou as acções da Merck & Co. e voltou a assumir a direcção da empresa e estabeleceu um acordo com a casa-mãe, que permitiu que a Merck & Co. usasse a marca “Merck” nos EUA, sendo esta reservada à Merck alemã no resto do mundo.

George Merck, c.1900

Em 1953, a Merck & Co. fundiu-se com a Sharp & Dohme Inc., que, por sua vez, tinha “engolido” em 1929 a H.K. Mulford, empresa criada em 1889 por Henry Kendall Mulford e que estava na vanguarda do desenvolvimento de vacinas. A Merck tornou-se também pioneira neste domínio, sendo a primeira a desenvolver vacinas contra a papeira (1967) e a rubéola (1969). Em 1953, a Merck & Co. era o maior produtor de fármacos dos EUA e continuou a crescer através de aquisições, sendo a mais volumosa a da Schering-Plough, ramo americano da Schering alemã, e que era, à data, detentora das conhecidas marcas Dr. Scholl’s (calçado “ortopédico”) e Coppertone (protectores solares), mas em 2014 estas marcas foram adquiridas, com a restante secção de “consumer health” da Merck & Co., pela Bayer. Apesar desta alienação, a Merck & Co. é hoje a 5.ª maior farmacêutica do mundo, com receitas anuais de 47.000 milhões de dólares (42.000 milhões na venda de medicamentos), tendo uma dimensão muito superior à da Merck alemã, cujas receitas anuais são “apenas” de 2.000 milhões de dólares.

A coexistência de duas Mercks no mundo nunca foi inteiramente pacífica, mas a situação agudizou-se em 2015, quando a Merck de Darmstadt, que reclama ser “a verdadeira Merck”, entrou em litigância com a Merck de New Jersey pelo uso indevido pela segunda da marca Merck fora dos EUA; a Merck americana retaliou acusando a Merck alemã de práticas análogas nos EUA.