Aos 70 anos de idade e 50 de carreira, que incluem três Óscares da Academia, isto se não contarmos com mais de vinte nomeações, Meryl Streep atingiu o grau máximo de consagração a que as atrizes (e atores) do século XXI podem aspirar: tornou-se um meme. Ela foi a Kramer que abdicava do filho no icónico “Kramer vs Kramer”, a mulher adúltera de “Pontes de Madison County”, a escritora recém-lésbica em Manhattan – mas é seguro afirmar que nunca antes fora tão ubíqua: um simples clip de um berro e eis Streep nos chats de boa parte da humanidade.
Há uma razão para o clip do berro ser tão partilhado: é inesperado e é angustiante. Claro que o seu destino é ser partilhado a uma segunda de manhã por um utilizador do Twitter para simbolizar a sua irritação com o facto de o fim-de-semana ter acabado; ou por um adepto do FC Porto quando descobre que o clube vendeu Oliver por apenas 12 milhões de euros. Em suma: o clip é usado como um símbolo de raiva.
Esta parece ser a maior aspiração de um objeto cultural, por estes dias: tornar-se um GIF. O que implica ser retirado do contexto, despido das nuances e subtilezas que uma cena encerra e ser reduzido a uma simples emoção primária que toda a gente consegue compreender quando se depara com ela numa caixa de chat.
[o grito de Meryl Streep:]
Mas vamos experimentar o oposto: reconduzir o GIF de volta ao seu formato inicial, o de uma pequena cena num episódio de uma série cuja segunda e — até ver mas por confirmar — última temporada terminou esta segunda de madrugada (ainda que a maior parte dos espectadores portugueses só vá ver o último episódio esta noite). A Meryl Streep que grita desempenha o papel de Mary Louise, personagem introduzida na segunda temporada de “Big Little Lies”; o seu filho, Perry, morreu no final da primeira temporada e Mary Louise desconfia que não foi um acidente, antes homicídio, e que a nora tem alguma coisa a ver com isso. O grito representa a dor e a raiva de Mary Louise – mas é mais que isso.
O “mais que isso” são as Big Little Lies que cada uma das protagonistas da série esconde e que na primeira e gloriosa temporada foram sendo descobertas a conta-gotas, em sucessivos flash-backs que serviam para nos lembrar que, como um dia escreveu Philip Roth, “ninguém sabe nada sobre os outros”.
A novidade, em “Big Little Lies”, é o olhar feminino – não só a série nos oferece a possibilidade de vermos a vida quase exclusivamente pelo lado das mulheres como a profundidade e violência desse olhar é maior do que o que estamos habituados.
Quando a série começa, rapidamente as quatro personagens principais são-nos apresentadas: Madeline (Reese Witherspoon) é uma dona de casa muito opinativa mas, apesar de tudo, com os pés na terra; Celeste (Nicole Kidman) é hiper-reservada; Renata (Laura Dern) é agressiva como um macho-alfa; a estas três – que são abonadas financeiramente – junta-se na pequena cidade de Monterey, Caliórnia, Jane (Shailene Woodley), uma mãe solteira que parece assustada com a competitividade entre as mulheres.
Se o tom inicialmente dá a parecer estarmos perante uma variação de “Donas de Casa Desesperadas”, rapidamente a série avança para territórios que estão muito para lá da pequena mesquinharia dos dramas domésticos – e no entanto o incidente que espoleta a lenta revelação dos pequenos horrores que as mulheres sofrem em silêncio é da ordem doméstica: a filha de Laura Dern é agredida por um coleguinha, logo no primeiro dia de aulas; por alguma razão, alguém da escola acha por bem que a garota diga, à frente de toda a gente, quem a agrediu; a miúda indica o filho de Jane, que se diz inocente. Jane mantém-se ao lado do filho, “comprando” uma guerra com Renata/Dern.
Mas o que se segue, nessa primeira temporada, está bem para lá das formulações típicas com que as televisões tentam simbolizar a competitividade feminina e que, por norma, envolvem a preocupação com as notas dos filhos ou festas de anos ou vestidos para galas – tudo isto existe, mas a ambição da série é mostrar o que reside para lá dessa camada de verniz apresentada à sociedade.
Ao longo da primeira temporada de “Big Little Lies” iremos descobrir que estas quatro mulheres serão espancadas, foram abandonadas, foram violadas, nasceram pobres e ascenderam a pulso – mas não são seres passivos à sombra de homens dominadores. E também não são seres puros condenados a sofrer com os pecados dos maridos.
[o trailer da primeira temporada:]
ESTE É O MOMENTO EM QUE É PRECISO LIDAR COM OS SPOILERS. (se não quer correr o risco de saber mais porque ainda não viu a série, não leia daqui para a frente)
Para não estragar o barato a ninguém vou omitir nomes na descrição dos males que vão sendo revelados em “Big Little Lies”. Tome-se o caso do casal A e B: vivem bem, têm uma libido acima da média e filhos bonitos, dos quais a senhora A se ocupa desde que deixou de trabalhar. São, digamos, alvo de inveja da comunidade.
Até que o senhor dá uma estalada B à senhora A; o sexo que se segue é bastante durinho; o padrão será recorrente: violência, sexo bruto, pedido de desculpas. A expressão “violência doméstica” pode aumentar os nossos níveis de indignação e empatia humana mas a forma como “Big Little Lies” a filma transporta-nos para um espaço de intimidade ao qual os espectadores costumam estar alheios e transporta-nos graças a detalhes que (presumo) só as vítimas de violência conhecem, como a senhora A estar no carro a disfarçar as nódoas negras com comésticos; ou o senhor B segurar de forma agressiva o braço da senhora A em público e ela ter de alterar o seu tom de voz de modo a não chamar à atenção; ou a senhora A desculpá-lo perante a terapeuta do casal.
O grande feito da primeira temporada de “Big Little Lies” não se esgota no ato de mostrar o que é viver com o terror – também nos põe a pensar nas consequências desse terror e em como é dificílimo identificá-lo. A imagem externa da senhora A é de uma mulher em perfeito controlo da sua vida; na realidade, ela está a tentar controlar o que pode controlar.
PEÇO DESCULPA MAS VOU TER DE RECORRER A SPOILERS (agora a sério, tenha cuidado se ainda não viu a série e quer ver):
a senhora A tem dois filhos e um deles é o verdadeiro agressor da filha da personagem de Laura Dern. A ilação imediata que tiramos é a de que o rapaz terá herdado a maldade do pai – ou que terá assistido a alguma cena de violência e tê-la-á reproduzido ou que a sua agressividade resulta da exposição à tensão entre os pais. Mas o rapaz tem um irmão e esse irmão não agride ninguém – o que nos diz que a violência não gera obrigatoriamente violência, mas a mãe deles vive no pânico de que ambos se tornam agressores.
A maior parte destas revelações surgem na forma de flashbacks, o que em 2019 está longe de ser um dispositivo sofisticado – mas a forma como o flashback é usado adequa-se à temperatura das personagens: uma recordação surge não porque alguém está a esforçar-se por lembrar-se de algo.
A senhora C choca com o filho quando este quer saber quem foi o seu pai, a senhora D encontrou um bom homem que não ama, a senhora E é quase um macho alfa na forma como disputa tudo, por medo a voltar à pobreza: por trás da maquilhagem, do cabelo imaculado, do sorriso perfeito todas arrastam as mencionadas big little lies.
[o trailer da segunda temporada:]
https://www.youtube.com/watch?v=eCWevZV945M
Toda a gente tem big little lies, diga-se – mas há big little lies que são mais femininas que masculinas pela simples razão de serem as mulheres quem mais as sofre: há mais mulheres vítimas de violência doméstica, há mais mulheres vítimas de violação. O feito da primeira temporada de “Big Little Lies” é aceder à linguagem privadas com que as mulheres escondem os seus traumas ou acabam por confessá-los dentro do seu círculo de confiança.
Isto não é apenas incomum – é um feito. E é um feito apesar de por vezes a série resvalar para um certo estilo de telenovela ou sucumbir ao ritmo de um whodunit, porque desde o primeiro episódio sabemos que morreu alguém mas não sabemos quem nem quem o matou e se foi acidente ou não.
Numa série como “The Wire”, a informação não é escondida para criar tensão e mistério – a informação é escondida e depois entregue no momento certo para que possamos assimilar tudo e compreender o percurso de uma personagem até ir parar às ruas e matar. A dada altura apercebemo-nos que o que realmente vemos quando vemos “The Wire” é apenas e só esse processo de esmagamento de cada indivíduo até o transformar num peão do movimento que o mal faz ao alastrar-se.
Mas em “Big Little Lies” alguma da informação não nos é fornecida apenas e só para perpetuar o “Quem matou?” ou, na segunda temporada, “Será que alguém vai ser preso?”. A preocupação com a trama é sempre um sinal de que o guionista perdeu de vista a sua função inicial: introduzir-nos à física privada do sofrimento feminino.
O “Quem morreu e quem matou?”, que funcionava como arco da temporada inicial, servia de desculpa para um travelling penoso sobre o sofrimento feminino; mas na segunda temporada nunca se perde de vista o “Será que alguém vai ser preso?”; levar o espectador ao fim de cada episódio para ser o objetivo dos argumentistas.
Quando numa série, num filme, o que vai acontecer se torna mais importante que a razão pela qual uma personagem se comporta como comporta algo se perdeu: no caso perdeu-se um pouco da gravitas da primeira temporada e que agora reside na confusão e na raiva da personagem de Meryl Streep, que tenta compreender o que terá acontecido ao seu filho (e a vida que ele terá levado).
Não quero ser injusto: a personagem da senhora A, a forma como ela lida com o trauma, continua a ser da mais fascinante televisão a que tivemos direito nos últimos muitos anos. Aliás, os desempenhos destas mulheres – em particular de Nicole Kidman, cuja carreira parece ter sido reavivada nos últimos anos – são irrepreensíveis.
A HBO mantém que a série acaba aqui, por razões de agenda: tem sido impossível reunir novamente estas mulheres no intervalo dos filmes que já têm agendado. Mas talvez seja mais simples que isso: talvez neste momento não haja razão para continuar. Talvez nem sequer fizesse sentido uma segunda temporada.
No seu melhor, “Big Little Lies” é uma admirável introdução a uma linguagem que até há pouco nos era desconhecida; no seu pior é uma novela hipster muito bem filmada e extraordinariamente bem desempenhada. Vamos ter saudades.