O suspense durou até ao último segundo. No fim, ficámos a saber quem era o criminoso, perdão, o vencedor, perdão, as vencedoras: Isaura e Cláudia Pascoal, autora e intérprete de “O Jardim”. Lamentavelmente, pela primeira vez na história do festival, o vencedor não terá direito a ir ao estrangeiro.

Mas o ambiente hitchcockiano não se ficou pelo suspense. Como na obra-prima de Hitchcock, “A Corda”, neste Festival RTP da Canção também havia um cadáver no meio da sala, convenientemente escondido num baú de ética e resignação. Para tristeza dos milhares de fãs dos seus dotes vocais e da perfeita simetria das sobrancelhas, Diogo Piçarra, reencarnação do sonâmbulo chupista, retirou-se do concurso após alguns ouvintes atentos e evangélicos terem apontado a trave na melodia de “A Canção do Fim”, que de apocalíptica nada tinha, a não ser que o fim do mundo venha em golpes de tédio e sacarina. Piçarra, obediente, desculpou-se. Disse-se de consciência tranquila porque, e passamos a citar, “nem sequer me associo à Igreja ou à IURD”, o que prova mais a sua falta de fé do que a sua inocência. Em entrevista ao Observador após o escândalo, Piçarra surgiu tão abatido, olheirento, gaguejante e nervoso que aposto na sua inocência. Porém, para evitar males maiores, desistiu e a RTP, judiciosa e supersticiosamente, repescou outra das canções porque seria mau agouro uma final com treze participantes.

E assim, privados da grande estrela desta edição, mas reconfortados pelo encontro com as caras familiares do serviço público e o triunfo da estética “cinco para a meia noite”, pudemos assistir ao mais aguardado Festival da Canção deste milénio.

“Sem Medo”

Rui David

Jorge Palma-compositor escolheu para intérprete um avatar, um Jorge Palma genérico, marca branca, limpinho, um Jorge Palma para quando o mês já dobrou a metade e o dinheiro já fugiu, ideal para pôr na sala de estar e levar ao casamento da prima, e útil também para reparações várias e concursos de imitações.

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“Mensageira”

Susana Travassos

Repescada, a canção de Aline Frazão não destoaria num recanto de um disco de Marisa Monte, primeira tendência da vaga atlântica que galgou a costa, destruiu apoios de praia e chegou até ao berço da nacionalidade.

“Sunset”

Peter Serrado

Desde o “sunset boulevard” que o GPS de José Cid transportou para Nova Iorque que não se ouvia esta palavra no Festival da Canção. Serrado veio por esse oceano abaixo, tem pinta de macho-alfa, reprodutor por excelência, queixo clássico, inglês luso-canadiano, tipo injarroba. Respira um certo vigor masculino conforme aos ditames do hetero-patriarcado, canta em langue de bois capitalista, a melodia é FM, João Pedro Pais com mais centímetros de altura e menos espessura de alma bué de atormentada. Estava escrito nas estrelas que acabaria a meio da tabela, a não ser que raparigas em idade núbil e no período fértil se excitassem e desatassem a votar nele.

“Zero a Zero”

Joana Espadinha

Pop descartável anos 80, mas sem laca, sem maquilhagem excessiva, sem aquele piquinho a camp que nos faz ter saudades de Sandra ou de Laura Branigan. O que os anos 80 teriam sido sem drogas, sem a ganância de Gekko e sem as mamas da Sabrina.

“O Voo das Cegonhas”

“Lili”

Vestido merengue, brincos em filigrana, neo-minhota, música electro-chic-easy-listening-tuga-vintage. Não ficará na memória.

“Para sorrir não preciso de nada”

Catarina Miranda

O compositor, Júlio Resende, orbita no universo Salvador, Catarina Miranda veio de fada-boneca de pano é gente, a canção sabe a gomas ligeiramente ácidas, gelado de baunilha e menta, estranha e familiar. Por mim, ganhava e, noutros tempos, era 21º lugar garantido na Eurovisão. Depois do fenómeno do ano passado, arriscávamo-nos a ganhar novamente.

“Anda Estragar-me os Planos”

Joana Barra Vaz

Após sete canções, temos os primeiros vestígios de coreografia: um menear de ancas e joelhos que motiva um sorriso consciente da intérprete. Não foi para isto que se fez a Eurovisão.

“Amor Veloz”

David Pessoa

Crooner com ar de quem tirou licenciatura em Ciência Política no ISCSP, enquanto ganhava dinheiro a cantar aos fins-de-semana em bares da Linha de Sintra. Tony de Matos cantava com aquele tesão de rufia, de quem a qualquer momento pode sacar da navalha e acabar a noite em lágrimas e uivos na esquadra do Bairro Alto. Estes novos românticos cantam sem paixão, com o sentimento de quem não se quer comprometer, a fibra dos homens que pedem um tempo.

“Patati-Patatá”

Minnie e Rhayra

Dupla multicultural, luso-tropicalista, patati-patatá, xiribiti-xiribitá, de balangadã afro-quindim, ludo-letra, aiuê, mamãe eu quero, me dá um dinheiro aí, pegaram minha lulu pra fazer cachorro quente, dizem que também mete russo e alemão, à moda de Molotov-Ribbentropp. Paulo Flores, mítico autor de “Cherry” e “Coração Farrapo”, ajusta a criatividade às medidas do festival só pra não dar estrilho.

“(sem título)”

Janeiro

Magrittiano, isto não é um título, isto não é uma canção de festival, isto não é Salvador 2.0, alguns traços de Asperger, a pedir reforço do consumo de potássio nas entrevistas. A excêntrica prestação de Salvador Sobral no ano transacto retira impacto à de Janeiro, que parece simplesmente parvo. A canção é tão festivaleira quanto a opus 210 do Maestro Lopes-Graça executada em Korg Volca.

“Bandeira Azul”

Maria Inês Paris

Se há dois anos nos dissessem que Tito Paris estaria a compor canções para o Festival isso pareceria inacreditável, mas, como diz o Facebook, o impossível é só o que ainda não aconteceu, ou coisa parecida. Portanto, Tito Paris, Maria Inês Paris e “Bandeira Azul”, uma canção sobre a lusofonia, mas sem Teodoro Obiang.

“Para te dar abrigo”

Anabela

Uma canção, duas ressurreições: exumada das encenações de La Féria, Anabela reaparece com inusitada frescura, salvo uma ou outra ruga, dir-se-ia a mesma menina de “A Cidade (até ser dia)”, o que indicará uma vida sem drogas, sem tarefas domésticas e à base de seitan e quinoa; depois de forçado a exilar-se no Brasil por razões político-absurdas, Fernando Tordo regressou e foi recebido por uma multidão em delírio no aeroporto Humberto Delgado. Agora, oferece-lhes esta modinha com açúcar e com afecto.

“O Jardim”

Cláudia Pascoal

A favorita dos hipsters e de quem não gosta do festival. A dupla tem o seu quê de sáfico, movimentações k. d. languescentes com traços de angústia Lorde e final encorpado. É canção state of the art, do género “ao nível do melhor que se faz lá fora” e, para lhe dar a cor luso-sentimental, é sobre a avó da compositora.

“Só Por Ela”

Peu Madureira

Autor da célebre frase “o festival não devia ser da canção, mas sim do coração”, Peu Madureira vem representar o retro-fadismo embalado em blazer azul, olhos fechados de emoção, microfone em contra-picado. Marialvismo sensível, mão direita nervosa, olhos meigos de touro castrado. Refrão beatífico assinala momento em que o cantor é possuído por Frei Hermano da Câmara. Uma canção para aqueles a quem a lavoura não embotou os sentimentos.

Últimas notas: o público fez justiça a Anabela; a votação do júri dos Açores demonstrou a importância do “menos uma hora nos Açores”; Valter Hugo Mãe representou bem a literatura portuguesa; Cláudia Pascoal não vai fazer figuras tristes lá fora; para o ano, eutanasiem o festival porque isto só tende a piorar.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015, e de “Esta Noite Estarás Comigo no Paraíso”