Dois debates, o mesmo filme. Socialistas e sociais-democratas passaram dois dias consecutivos a apresentar os respectivos pacotes de emergência social, mas acabaram a discutir quem era mais troikista do que a troika – sempre com o tema das pensões como pano de fundo –, com os restantes partidos, à esquerda e à direita, a aproveitarem para distribuir o mal pelas aldeias de PS e PSD.

“É lamentável que se tenha passado uma parte da tarde a discutir se a culpa foi de José Sócrates ou de Passos Coelho e que PS e PSD tenham preferido dar uma lição de história, em vez de discutir medidas para o futuro”, chegou a dizer André Ventura, do Chega, no primeiro dia de debate parlamentar. Não estava muito longe de verdade.

Com o Governo (unanimemente) acusado de estar a preparar um corte de mil milhões no sistema de pensões, os socialistas levaram para o Parlamento a estratégia que têm ensaiado fora dele e recuperaram o fantasma da troika, do corte das pensões e as malfadadas alterações da Taxa Segurança Única, propostas há nove anos, portanto. Uma fuga em frente que levou os sociais-democratas a carregarem, mais uma vez, nos botões “José Sócrates” e “PEC IV”.

Na quinta-feira, em pleno debate parlamentar, e para responder às provocações socialistas, Joaquim Miranda Sarmento, líder parlamentar do PSD, chegou a pedir para que fosse distribuída o Orçamento do Estado para 2011, assinado pelo então governo socialista, e as páginas do memorando do entendimento para provar pela enésima vez a tese (verdadeira) de que foi o PS a pedir a intervenção da troika.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ora, o seu homólogo na bancada socialista, Eurico Brilhante Dias, não se ficou e tentou provar outra tese: afinal, foi Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças do PSD, então nomeado por Pedro Passos Coelho como interlocutor do partido nessas negociações, quem de facto obrigou o José Sócrates a aceitar aquelas condições.

“Que seja distribuída a fotografia tirada pelo dr. Eduardo Catroga, depois de obrigar um Governo minoritário a fazer austeridade”, ensaiou Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS. Sem conter o riso, Miranda Sarmento provocou: “O PS era assim tão irresponsável que só fazia o que o partido da oposição queria? Então não percebo o que estavam a fazer no Governo”.

Entre fotos, documentos e àpartes vários, referências ao facto de Fernando Medina ter feito parte do Governo de José Sócrates ou ao discurso sobre a “peste grisalha” do PSD, mais argumento menos argumento, a responsabilidade pela intervenção da troika em Portugal e o título de campeão dos cortes nas pensões dominaram o duplo confronto parlamentar entre PS e PSD.

“É o regresso do velho PSD da troika” (Miguel Cabrita, PS); “Não deixa de ser curioso que um partido nos colocou de mão estendida venha agora falar de caridadezinha” (Jorge Paulo Oliveira, PSD); “É preciso não ter qualquer tipo de vergonha para vir acusar o PS de cortarem nas pensões” (Francisco César, PS); “Não aceitamos nenhuma lição sobre pensões vinda da direita” (Fernando Medina, Governo PS); “A austeridade está cá em Portugal. Voltamos ao racionamento. Os senhores são o rosto desse racionamento. São o rosto da austeridade” (Nuno Carvalho, PSD).

E assim se arrastaram os dois dias de debate, com uma novidade, ainda assim, face às duas legislaturas anteriores: pela primeira vez desde 2015, os socialistas estiveram verdadeiramente isolados à esquerda e à direita perante a chuva de críticas dos restantes partidos com assento parlamentar.

Governo mantém tabu sobre pensões em 2024 e tributação sobre lucros excessivos

Na quinta-feira, o PSD levou a discussão o seu próprio pacote de emergência social, mas, e apesar das críticas que mereceu das bancadas da esquerda (e do Chega), o adversário comum a abater era o PS – dinâmica que se repetiu ao longo da discussão de sexta-feira, esta já centrada, de facto no programa apresentado pelo Governo socialista.

“Engano”, “fraude”, “humilhante”, uma submissão aos “interesses dos grandes grupos económicos”, uma “mão cheia de nada”, uma coleção de “truques”, de “mentiras” e “pequenas migalhas” para os portugueses, o bilhete de troca para “brilharetes orçamentais” que resulta num “pacotinho” sem dimensão para fazer face à crise inflacionista, foram repetindo todas as bancadas à exceção, naturalmente, da do PS.

Esta sexta-feira, e depois de o Governo ter estado ausente no debate de quinta-feira, coube a Fernando Medina fazer a defesa da honra do Executivo socialista, caracterizando o programa apresentado como “eficaz, abrangente, oportuno e prudente”, e acusar toda a oposição, em particular a oposição à direita, de “hipocrisia”.

Da discussão de dois dias, ficaram ainda duas questões por esclarecer: o que fará o Governo para evitar a perda de valor das pensões a partir de 2024 em diante; e se vai ou não tributar as empresas que registem lucros excessivos neste contexto de crise, tal como vêm defendendo vários responsáveis políticos, incluindo a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

Se no primeiro caso os socialistas vão atirando a discussão para 2023, na segunda questão, Medina, acusado à esquerda de estar a ser cúmplice dos grandes grupos económicos, limitou-se a reafirmar que o Governo não tem uma posição fechada sobre a taxação dos lucros extraordinários.

Os dois temas tem provocado alguns calafrios na família socialista, numa rara demonstração de divisão interna que acabou por marcar a rentrée do PS. Ainda assim, não foi desta que o Governo clarificou o seu entendimento nestas duas matérias. Serão cenas para os próximos capítulos.