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Começou a circular esta quinta-feira na Internet um vídeo com uma voz off que lê reivindicações dos profissionais da cultura sobre os problemas crónicos do setor, agravados por aquilo que consideram ser a falta de apoio do Governo perante a crise provocada pelas medidas de contingência face à pandemia da Covid-19. O vídeo vai dar mote a um protesto virtual marcado para sábado, dia em que técnicos, artistas, produtores e outros trabalhadores da cultura vão inundar as redes sociais com fotografias e vídeos pessoais sob o hashtag “Na Rua Pelo Futuro da Cultura”.
A manifestação acontece num momento de espetáculos cancelados ou adiados e espaços culturais de portas fechadas e quando ainda não chegaram os apoios anunciados a 14 de janeiro pela ministra da Cultura. A nível oficial é dito que só na próxima semana haverá novidades sobre os mecanismos de candidatura e acesso aos montantes disponíveis. Há quem aponte o dia 2 de fevereiro, mas o gabinete da ministra não se compromete com datas oficiais. Certo é que Graça Fonseca convocou para 3 de fevereiro uma reunião por videoconferência com várias estruturas representativas dos profissionais da cultura, algo que os visados consideram uma atitude positiva fruto da pressão que têm feito junto do poder político desde o princípio da pandemia.
[o vídeo da campanha “Na rua pelo futuro da Cultura!”:]
Partilha a partir de 30 de Janeiro nas redes sociais uma foto ou um vídeo a partir do mote:…
Posted by CENA – STE on Thursday, January 28, 2021
“Permanece uma grande nuvem de incerteza”, afirma o ator e produtor Ruy Malheiro, porta-voz da Ação Cooperativista de Apoio — grupo informal de artistas, técnicos e produtores criado no contexto da primeira vaga da pandemia. “Não sabemos de que forma, quando e como as medidas vão ser aplicadas e temos uma grande preocupação: antevemos que um conjunto alargado de pessoas fique de fora destas linhas de apoio.”
O protesto de sábado pretende obter do Governo “uma resposta que vá além dos sucessivos estados de emergência e confinamento e que responda até ao fim de todas as limitações à atividade, provocadas pela pandemia”, diz a convocatória, subscrita por 24 estruturas formais e informais, incluindo a Ação Cooperativista, a Associação Portuguesa de Realizadores (APR), o Cena-STE (Sindicato dos Trabalhadores do Espetáculo do Audiovisual e dos Músicos) e a Plateia (Associação dos Profissionais das Artes Cénicas).
Inicialmente divulgada a 7 de janeiro, quando o segundo confinamento geral era apenas uma hipótese, a manifestação tinha na agenda “as consequências da precariedade laboral” e as “medidas manifestamente insuficientes” do Governo perante a pandemia. Com o confinamento decidido pelo executivo, que se iniciou a 15 de janeiro, as organizações responsáveis pelo protesto ponderaram sobre se valia a pena mantê-lo para o dia 30 e acabaram por decidir que sim — não na rua, mas em formato virtual. Porém, não excluem “outros passos” nas semanas que se seguem, tudo depende da regulamentação das medidas pelo Ministério da Cultura.
“Novas medidas respondem à situação criada em março do ano passado”
No entender do Cena-STE, os apoios anunciados “têm um atraso de 10 meses”. Ou seja, “são bem-vindos mas também insuficientes” e não respondem ao momento presente — independentemente das regras de acesso.
“O problema destas medidas é que esperávamos por elas em resposta ao Estado de Emergência”, diz Rui Galveias. “O atual confinamento é todo um novo nível. As novas medidas respondem à situação criada em março do ano passado, portanto, chegam atrasadas. Correspondem ao que andamos a pedir há meses. Depois, é tudo muito simbólico e pontual, é um balão de oxigénio que se esgota rapidamente, tanto quanto entendemos do que tem sido anunciado”, pormenorizou o porta-voz do Cena-Ste.
Várias fontes dizem que as equipas de Graça Fonseca estão sob pressão e a trabalhar intensamente para conseguirem fechar o mais depressa possível os aspetos burocráticos e legais, bem como os formulários eletrónicos de acesso aos apoios públicos. O Observador enviou a 18 de janeiro nove perguntas sobre a operacionalização dos apoios e recebeu do gabinete da ministra a indicação de que só em fins de janeiro obteria respostas.
Para já, a discrepância entre a data de anúncio das medidas (14 de janeiro) e a provável data de abertura de candidaturas (2 de fevereiro) não merece especial crítica a representantes do setor ouvidos pelo Observador. De resto, depois de meses de críticas acesas às decisões de Graça Fonseca, os agentes culturais dão sinais de maior compreensão, por entenderem que os avanços tardam não por falta de diálogo e de empenho da titular da pasta, mas devido ao que intuem ser determinações do próprio primeiro-ministro, António Costa, e do ministro das Finanças, João Leão.
O Cena-STE, pela voz de Rui Galveias, considera a espera normal. Reconhece que “o confinamento dificulta a coordenação” no Governo e que “é preciso paciência perante o esforço de tantos funcionários públicos” envolvidos na montagem do processo. “Os nossos associados estão preocupados e nos últimos dias enviaram-nos dezenas de emails com dúvidas”, relata Rui Galveias. “Temos respondido que é preciso esperar até ao anúncio oficial.”
A discordância dos profissionais da cultura não está portanto no compasso de espera. Está nos montantes e critérios de atribuição. Três das medidas principais da ministra são precisamente as que mais críticas geram:
os 42 milhões da “primeira fase” do novo Programa Garantir Cultura,
os 438,81 euros atribuídos uma única vez a 18 mil trabalhadores da cultura registados junto das Finanças com códigos de atividade (CAE) ou de IRS relacionados com atividades culturais,
e a renovação do decreto-lei de 26 de março do ano passado, para que sejam pagos a 100%, pelos teatros e instituições públicas, os espetáculos agora cancelados ou adiados.
42 milhões: para quem e como?
Segundo Rui Galveias, se os apoios abrirem na próxima semana é de crer que “as verbas anunciadas a 14 de janeiro só no fim de fevereiro comecem a chegar às pessoas”, o que corresponderá a “um mês e meio de caos”. “As pessoas estão desesperadas agora e as contas continuam a chegar, ninguém congela a vida até que os apoios apareçam.”
Por enquanto, o gabinete de Graça Fonseca não esclarece detalhes, porque estes aparentemente ainda estão a ser definidos e por haver o entendimento de que comentários parcelares neste momento poderiam gerar ainda maior confusão. Acontece que as dúvidas existem. Desde logo, sobre como vão ser atribuídos os 42 milhões, já que se trata de um anunciado programa “universal, não-concursal, a fundo perdido”. E será este montante o bolo de onde se tiram talhadas para todos outros apoios apresentados a 14 de janeiro?
Aparentemente, o Programa Garantir Cultura é autónomo face aos outros montantes, mas neste particular uma larga maioria de artistas, técnicos e empresários ainda não está esclarecida.
Os profissionais do circo, por exemplo, consideram-se fora dos apoios. Mas até podem vir a receber dinheiro do Programa Garantir Cultura, já que este se destina a “todos os profissionais” e a “todas as empresas e entidades coletivas” do setor da cultura. “Temo que estes apoios sejam mais do mesmo, que não cheguem de facto aos circos e aos seus artistas”, observa Carlos Carvalho, presidente da APEAC – Associação Portuguesa de Empresários e Artistas de Circo, criada em maio do ano passado e também envolvida na manifestação deste sábado.
À espera da reunião de 3 de fevereiro com o Ministério da Cultura, Carlos Carvalho sublinha ao Observador que Portugal “é dos poucos países que não deram apoios diretos aos circos” e garante que vai “continuar a pedir”. Outra das reivindicações é o “cancelamento do Imposto Único de Circulação dos veículos” para os profissionais circenses. Com base num argumento que escaparia a quem vê de fora: “Uma vez que o Governo concedeu apoio às rendas para o comércio, também nos deveria dar a nós, porque de facto as nossas rendas são os IUC, porque vivemos em caravanas, na sua maioria veículos pesados e que pagam 500 euros de imposto.”
Também a Cultural Kids, empresa de criação e produção de “programas culturais para um público entre os 0 e os 16 anos”, veio a terreiro queixar-se de que “até agora não foram dados apoios específicos” às estruturas que se dedicam ao teatro para a infância e juventude, as quais trabalham maioritariamente com escolas.
“As idas ao teatro foram banidas em virtude da pandemia”, escreveu num comunicado Cristina de Magalhães Basto, responsável pela Cultural Kids. “Defendemos que de imediato as atividades artísticas e culturais desenvolvidas para o público escolar sejam consideradas nas verbas a distribuir e nos apoios a conceder no âmbito do Programa Garantir Cultura, por forma a que possamos continuar a acompanhar mais de um milhão de estudantes”, destacou, o que indica que também aqui não há certezas sobre o alcance dos apoios.
Problemas com os CAE e fiscalização de pagamentos
No que concerne ao apoio de 438,81 euros, “começa a ser claro”, segundo Ruy Malheiro, “que uma série de trabalhadores que não estão inscritos com um CAE ou código de IRS ligado à cultura vão uma vez mais ficar de fora, o que é grave”. A mesma preocupação é verbalizada por Rui Galveias, que exemplifica com os riggers, técnicos de montagem de palcos.
“Durante a maior parte do ano, os riggers asseguram a montagem em altura de um PA [a estrutura que garante o som para uma plateia], as teias de luzes ou as coberturas dos palcos”, descreve o sindicalista. “São pessoas competentes para trabalhar a 20 ou 30 metros do chão em estruturas desmontáveis. Mas também passam uma parte do ano a prestar outro tipo de serviços, até pintam edifícios e fazem reparações em pontes. É natural que tenham ‘outros serviços’ como atividade principal. Não é só por erro do funcionário das finanças que não soube encaminhar a pessoa para o CAE certo, não é só desconhecimento dos próprios.”
Quanto aos espetáculos cancelados ou adiados, que recebem a 100% de teatros e salas pertencentes ao Estado, a Ação Cooperativista destaca a necessidade de “pagamento a 100% de todas as atividades”, não apenas dos espetáculos em si. “Todas as atividades preparatórias, formativas, de mediação e de contacto com públicos, e não só eventos”, pedem.
Notam ainda que o cumprimento do decreto em apreço deverá ter “fiscalização eficaz e verdadeira” por parte da Inspeção-geral das Atividades Culturais (IGAC), o que não terá acontecido no primeiro confinamento.
DGArtes: apoio extraordinário será a regra?
O único ponto que para já colhe aprovação é o dos apoios da Direção-Geral das Artes, que organiza todos aos anos vários concursos para atribuição de subsídios em diversas áreas. Na conferência de imprensa de 14 de janeiro, ao lado do ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, a titular da pasta da Cultura fez saber que não haverá concursos da DGArtes este ano, mas está garantido o apoio de 35 milhões a projetos artísticos, sem concurso, na modalidade “Apoios Sustentados”. Os beneficiários serão quer entidades artísticas já apoiadas em 2020, tanto as que não receberam nada como as que receberam apenas parte dos montantes a que se candidataram. Já na modalidade “Apoio a Projetos”, serão atribuídas verbas até 8,4 milhões a 368 entidades não apoiadas em 2020.
“É um momento histórico”, entende a Ação Cooperativista, que calcula em 443 o número de candidaturas abrangidas e espera um aligeirar das regras para que os artistas e estruturas também utilizem o dinheiro para outros fins que não a criação artística pura: para fazer contratos para investigação, pesquisa ou produção e compensar perdas económicas de cancelamentos e adiamentos de espetáculos.
Os apoios da DGArtes este ano “são importantíssimos, são a única coisa positiva”, classifica Rui Galveias, do Cena-STE. E no entanto ressalva: “Mas estamos a falar de 18 mil trabalhadores, faltam os outros 112 mil. Os festivais que eram feitos ao longo do ano, não só os festivais de verão, não estão a acontecer. As iniciativas corporate também não estão a acontecer. Há uma carrada de coisas suspensas e é aí que estão muitos milhares de trabalhadores que não se candidatam aos concursos da DGArtes.”
De resto, agentes da cultura que fundamentalmente trabalham em artes performativas querem que os montantes extraordinários da DGArtes passem a ser a regra, para que abranjam mais candidaturas. Isso mesmo foi dito esta terça-feira numa audição parlamentar convocada pelo Bloco de Esquerda. Inês Maia, representante da Performart (Associação para as Artes Performativas em Portugal), afirmou perante os deputados da Comissão da Cultura que “as medidas agora implementadas como medidas extraordinárias para crise pandémica devem ser medidas regulares”.
A Ação Cooperativista concorda e diz que isso só será possível com “um real aumento do Orçamento de Estado para a cultura de forma sustentada”. É o regresso a velha meta simbólica de 1%, a bola parece estar do lado do Governo.