Duarte Valle de Castro é gestor na banca, mas durante um ano foi gestor de microcréditos em Timor. Tinha 26 anos quando, em 2007, embarcou num projeto de voluntariado com a mulher, Matilde Trocado. Se para ele era um sonho de jovem, para ela o projeto nada significava. Mas a formação de um ano nos “Leigos para o Desenvolvimento” fizeram-na mudar de ideias. Depois de um ano em Timor juntos, Duarte escreveu com a mulher “Em Timor: Histórias de um casal em missão”, onde conta as aventuras de um casal recém-casado, a viver numa casa cheia de ratazanas, baratas e centopeias. E como esses dias lhe desfizerem certezas e mudaram a sua relação com Deus. Foi mais uma figura da galeria de “Imperdíveis”, o programa de entrevistas de Laurinda Alves, na Rádio Observador, todos os domingos, às 11h que pode ouvir aqui.
Duarte Valle De Castro, como assina no seu livro, mais conhecido, se calhar, por Duarte Castro, 38 anos, casado, pai de três filhos, uma delas com um ano. Isto é o que eu sei sobre o Duarte, sei também que esteve um ano em missão em Timor com a sua mulher, a Matilde, e escreveu um livro a contar tudo o que foi fácil, o que foi difícil. Dito isto, como é que se apresenta?
Sou casado há 12 anos, tenho três filhos, uma de nove, um de sete e uma bebé de um ano. Trabalho na área financeira aqui em Lisboa já há uns anos. Sou católico, sou feliz. Todos temos dificuldades, e eu também as tenho, mas posso dizer que sou feliz e tenho paz de espírito quando me deito à noite e, isso é talvez a coisa que mais valorizo.
Interessante, uma pessoa definir-se como: “Sou feliz”. O que é que o faz dizer “sou feliz”? Estou bem casado, sou pai, tenho saúde ou mais alguma coisa?
Compreendo muito bem as pessoas que dizem “o que é importante é que tenha saúde” e sobre os bebés “o que é importante é que venham com saúde”. Já vi gente infeliz com imensa saúde e gente muito feliz muito doente e, portanto, não acho que seja uma condição para ser feliz o ter saúde. No meu caso, acho que dizer “sou feliz”, tem a ver com viver tentando seguir o caminho que entendo que é aquilo para que sou chamado, que é a minha vocação. Certamente com falhas, mas nunca perdendo o norte e, portanto, acho que tenho vindo a trilhar esse caminho, muito mais hoje do que noutras alturas da minha vida, e isso é o que me dá, no fundo, paz de espírito. E a sorte que eu tenho em ter uma mulher fantástica, ter três filhos que obviamente adoro, etc. Isso dá-me imensa felicidade. E dá-me consolo.
Unidade interior, ou seja, a felicidade também vem de uma pessoa não estar tão rasgada por dentro, de se sentir inteiro…
Sem dúvida.
No casamento, como pai, na profissão…
Sim. Acho que com tudo isto. A minha vida tem as dificuldades que todos temos. Uns terão mais, outros terão menos, mas, face a elas, acho que consigo perceber que o sofrimento não é mau necessariamente.
Ou seja, o maior mistério é que é no sofrimento que nós se calhar aprofundamos o conhecimento de nós próprios, fortalecemos as nossas fragilidades, é isso?
Sem dúvida, e o sofrimento faz parte do caminho, hoje vive-se muito a fugir dele, não é? Quer dizer, temos é de nos sentir bem e claro que não gosto de sofrer, não gosto do sofrimento, é duro. Dói, mas entendo. É bom que tenhamos consciência que faz parte da vida e, portanto, se conseguimos com isso ser felizes, acho que temos muito a ganhar.
Engraçado, termos começado pela felicidade própria. Já agora, o que é que faz pela felicidade da sua mulher?
Provavelmente devia fazer mais, mas… [risos]
Podemos sempre fazer mais.
Acima de tudo temos um projeto juntos, que é o mais essencial na nossa vida. Acho que ela sabe é que no matter what [aconteça o que acontecer] isto é para durar, estamos aqui para ficar.
E pode sempre contar consigo…
Sim. Falho muitas vezes, como falho em tudo o resto, não é? Não sou melhor do que os outros, não somos um casal melhor do que os outros de todo em todo, mas acho que é isso, aconteça o que acontecer estamos aqui.
Ou seja, é uma fidelidade ou um compromisso mútuo e “vamos os dois juntos”, aconteça o que acontecer?
Vamos tentando.
E foi isso que vos levou também a ir juntos — aconteça o que acontecer — para Timor? Fizeram uma experiência de voluntariado, de trabalho, de missão durante um ano em Timor, agora foi publicado um livro. Como é que surge a ideia de ir para Timor ou para onde quer que seja, em casal, um casal recém-casado e o que é que é preciso levar na bagagem, seja a bagagem física, material, mas também a bagagem da preparação emocional, o endurance, o que for?
Como é que surge é muito simples: desde miúdo, adolescente, que não sei porquê, e não sei mesmo, pensei que quereria um dia partir em missão depois de casar. Não sei porquê depois de casar, há muitos programas para jovens, para aquelas coisas mais de curta duração, etc., mas gostava de fazer assim uma experiência mais radical. Pensava sempre: “Um dia quando casasse gostava de fazer esta experiência casado”. Se casasse, não é? Que acabou por acontecer.
E quando começou o namoro disse isso à Matilde Trocado, que é autora.
E encenadora.
E encenadora dos musicais que nós vamos vendo e de grande qualidade — já vamos falar sobre isso. Portanto, quando começou o namoro com a Matilde, disse: “Mais tarde ou mais cedo havemos de ir fazer uma missão”.
Não disse “havemos”, disse “gostava”. E ela disse-me: “Eu nunca senti nenhuma inclinação para isso, nunca foi um sonho que tivesse. Não me identifico muito com esse projeto”.
“Não tenho essa demanda interior”.
Sim, claramente. Fomos continuando juntos. Aquilo deixou-me a achar: “Olha, provavelmente ao contrário do que gostaria, do que queria, provavelmente isto nunca vai acontecer”.
No sentido em que há um grande respeito. Há um que tem este sonho, o outro não tem.
Não se vai obrigado para um projeto de um ano no outro lado do mundo, não é?
Claro.
Portanto, de vez em quando falava-lhe disso, a resposta tendencialmente era esta. E depois casámos e…
E o namoro durou quanto tempo?
Dois anos.
E depois casaram?
Sim. Voltei-lhe a falar nisso já casados, e ela disse-me: “Olha, mas se é uma coisa de que tu gostavas, vai ver, vai investigar”. E fui, nesse próprio dia.
Antes que se perca a oportunidade…
Isso. [risos] Contactei os “Leigos Para o Desenvolvimento” que é a ONG [organização não-governamental] com a qual partimos para Timor.
Que é uma grande escola de vida, além do mais.
Sem dúvida.
No mundo corporativo, se no CV consta que as pessoas tiveram uma experiência ou a formação dos “Leigos Para o Desenvolvimento” é sempre um valor acrescentado incrível.
Faz sentido que seja assim, porque a formação é muito boa e entendo que uma experiência deste tipo enriquece necessariamente uma pessoa. Assim foi, começámos o caminho da formação, durante o qual não há nenhum compromisso, é caminho de discernimento e, portanto, para a Matilde foi: “Ah, a formação faço porque não tenho de me comprometer com nada”.
E além disso é uma mais-valia.
E a verdade é que foi mudando, foi-se identificando mais com um projeto deste tipo, e acabou por perceber que isto fazia sentido para a vida dela e, portanto, chegado ao fim da formação…
Mas não chegue já ao fim da formação. Quando é que uma pessoa sobe um patamar de consciência, do discernimento de que se calhar o caminho é por aí? São os outros [que ajudam a perceber isso]? (Porque havia outras pessoas convosco, tanto quanto sei o chef Kiko [Martins], que antes de fazer aquele grande projeto “Eat The World”, e agora antes de ter estes restaurantes todos foi com a Maria, sua mulher, também acabados de casar, para Moçambique um ano [também lá estava]). Todos se vão incentivando uns aos outros, não é só a formação, há pontos de discernimento e há pontos em que uma pessoa percebe que sobe de patamares de consciência, é isso?
Sem dúvida. Cada um faz o seu caminho individual de discernimento. No nosso caso até era uma decisão em casal, mas é um caminho que é feito acompanhado porque é uma formação para muita gente, que depois partirá para diferentes países de missão. É um conjunto de pessoas que ficam tendencialmente muito próximas, muito amigas e que fazem um caminho juntas durante um ano. É durante uma formação em que se trabalham aspetos como auto-conhecimento, as próprias características dos projetos, os temas ligados ao desenvolvimento, e relacionados com a comunidade, porque os “Leigos” mandam pessoas para viver em comunidade. Nós só dizemos aos “Leigos” que estamos disponíveis e depois eles dizem-nos com quem é que vamos e para onde.
E por isso não vai o casal viver só em casal, o casal vai viver numa casa provavelmente com outras pessoas.
Necessariamente, ou seja, enviam comunidades. Acabaram por nos dizer que partiríamos para Timor com a Joana e a Diana, com quem vivemos durante um ano.
E Timor foi-vos dado a escolher? Ou Timor é-vos sugerido e, não havendo nada em contrário, vocês diziam sim?
Na altura os “Leigos” tinham vários projetos em África, em Moçambique, em Angola e em São Tomé, e um em Timor. Não escolhemos. Até manifestámos uma preferência para onde é que gostaríamos de ir, mas não dissemos Timor. [risos] E foi lá que fomos parar.
E, portanto, a aventura é maior.
A pessoa quando se prepara tem muito a ideia de África, não é? Aquelas fotografias e as crianças, e etc. Lembro-me que pusemos São Tomé, mas não podia estar mais feliz com aquilo que nos aconteceu e, portanto, ir para Timor foi ótimo.
Então e a bagagem?
Do ponto de vista prático não há muito a dizer. É roupa velha que se vai estragar ao longo do ano e alguns cuidados que perdemos ao fim de uma ou duas semanas, dos repelentes dos mosquitos e das pastilhas para a malária e etc. Passado um mês já ninguém usava nada disso porque, enfim, não é propriamente ir uma semana de férias, é passar a viver. A formação dá-nos a bagagem que nós precisamos e prepara-nos para, em comunidade, viver de facto num contexto muito diferente.
E muito adverso.
Mais adverso, ou seja, não há nenhum tipo de conforto. Vivíamos numa casa integrada num bairro pobre de Díli que não tem comparação nenhuma com a minha. Conto muitas coisas no livro sobre aspetos engraçados e a companhia que tínhamos na casa, das baratas aos ratos, etc.
Mas pode contar aqui também às pessoas que ainda não leram o livro e que querem saber.
A casa tinha um teto falso que em cima do qual viviam manadas de ratazanas, era uma coisa ao princípio mesmo terrível, depois conseguimos acabar com aquilo. Tínhamos ratos a passear pela casa, centopeias, baratas e isto não é confortável para ninguém. A pessoa habitua-se — sim habitua —, mas é muito diferente daquilo que temos cá, é a verdade.
Mas há uma motivação, tem que haver alguma coisa que ajuda a superar uma situação dessas, porque nem para um homem nem para uma mulher é confortável dormir debaixo de um teto onde se sabe que o barulho de ratos e ratazanas é incessante e as baratas também estão à volta da cama… O que é que faz ficar, não desesperar, resistir?
Isso tem a ver também com o que falávamos da bagagem: quando fomos tínhamos a certeza absoluta para o que é que estávamos a ir e que estávamos a responder a um pedido. Os “Leigos Para o Desenvolvimento” é uma organização que está ligada aos jesuítas, foi fundada por um padre jesuíta, tem uma espiritualidade cristã e nós também somos cristãos e, portanto, entendíamos que aquele era um projeto para o qual Deus nos pedia para ir, partir. Quando fomos tínhamos a certeza absoluta de que era para ali que tínhamos de ir naquele ano. Este ano é para ser passado em casal ao serviço dos timorenses e de Deus.
E dos mais vulneráveis e de quem está a precisar de nós e onde nós podemos acrescentar valor.
E isto é tão grande que quando vem com baratas e ratazanas, é chato mas é muito maior o motivo que nos leva a estar lá. Não gostava de baratas, mas acabei por me habituar. Não quer dizer que as passei a ter como animais de estimação. Quer dizer, matava cada uma que via. [risos] O que fomos para lá fazer era muito maior e respondia facilmente às dificuldades que íamos encontrando.
E o que é que foram para lá fazer, então?
Trabalhava num projeto de microcrédito numa instituição timorense que funcionava em Díli que tinha dois timorenses, o Maretinho e o Antoninho. O “Leigo” que lá estava acabava por gerir um bocadinho os destinos deste gabinete de microcrédito que tinha projetos em vários sítios da ilha. Isso foi muito bom porque permitiu-me viajar, ir a Atauro, que é uma ilha mais pequena em frente a Díli. Enfim, conheci muito bem Timor por causa deste projeto.
E sobretudo viu também o impacto deste empréstimo, que as pessoas pagam e que consegue de facto resgatar e modificar vidas a partir de um pequeno empréstimo.
Sem dúvida. Conto no livro uma história de uma senhora que era a dona Domingas, de quem fiquei muito amigo: a vida dela e da família mudou muito por causa deste projeto de microcrédito.
Como é que era a vida antes e como é que era depois?
Ela e o marido trabalhavam na horta, naquela agricultura de subsistência para ter comida para os filhos. Os filhos andavam ali na escola perto de casa. Era uma família pobre. Sendo que a pobreza lá é muito diferente de miséria, porque as pessoas vivem muito de forma comunitária, têm os irmãos, os primos, os tios, os amigos a viver ali ao pé deles, porta aberta e portanto, todos se ajudam, é um conceito muito diferente, e até muito feliz, de vida e de organização da vida.
Ou seja, falta tudo a todos, mas não falta nada a ninguém.
Isso. E se o vizinho tem, é evidente que me dá a mim, que tenho menos neste momento, e isso é uma evidência para todos, é assim que se vive e vivem uns com os outros, ao contrário de nós que estamos muito enjaulados nos nossos apartamentos.
Nós competimos muito.
Competimos e acho que vivemos, não é? Trancamos a porta a quatro chaves e se não conhecer o meu vizinho de cima também dá-me igual porque vivo aqui não é no andar de cima, não é?
E ali isso é impossível.
Isso de facto não existe porque a vida está organizada de outra maneira.
Isso é uma grande lição. Voltando à dona Domingas.
A dona Domingas com este empréstimo — primeiro um que pagou muito certinha, depois outro — conseguiu que o marido voltasse a estudar, estudava qualquer coisa na área de saúde e voltou para a universidade, os filhos também foram para escolas melhores e passaram a ter muito melhor aproveitamento e um melhor ensino. Ela conseguiu o negócio dela: uma pequena loja. Começou por ter uma loja pequenina onde vendia os bens mais básicos, e depois conseguiu comprar um frigorífico que aquilo às vezes há eletricidade, às vezes não há — não sei que saúde terá tido aquele frigorífico, mas conseguiu comprar um frigorífico. Faziam uns doces para vender a quem passasse. E portanto, conseguiu de facto passar a ter muito mais rendimento e tornar tudo isto possível à família.
O microcrédito são empréstimos de que valor? De que ordem de grandeza?
Lá usam o dólar, o dólar americano, e o primeiro era de 500 dólares.
Que eles vão pagando em prestações?
Vão pagando em prestações mensais.
E que pagam irrepreensivelmente.
Alguns sim, outros não. Não tenhamos a ilusão de que todos pagam lindamente porque…
Até porque há este mito, se calhar é um mito, de que as pessoas do microcrédito pagam mais do que às vezes aquelas do macrocrédito.
Não. As pessoas pagavam e os números eram bons nesse sentido. O projeto era sustentável, mas havia de tudo. Deparei-me com vários casos que já estavam a decorrer quando eu lá cheguei de pessoas que não pagavam há muito tempo. Lembro-me até de um senhor que tinha tido um crédito, mas era alcóolico e não tinha feito nada, não tinha feito nenhum negócio. Questionava-me como é que este senhor teve [o crédito]. A verdade é que quando lá chegávamos para cobrar as prestações às pessoas daquela zona, ele todos os meses dizia: “Ah, a coisa está difícil, não posso pagar”. E pronto, nós íamos embora, também não havia nenhum mecanismo depois de…
De punição…
De punição? Havia, havia.
Ou seja, depois não se atribui, não é?
Não se atribui o novo crédito e há alguns mecanismos disso ter impacto depois para outras pessoas do grupo, e isso cria-lhes uma pressão social que alguns acabam por sentir.
Ou seja, também no fundo partilhar…
Se um não paga o outro não recebe, não é? E, portanto, isso pode, no limite, fechar.
Pode fechar a torneira do microcrédito numa comunidade.
Naquela zona. E faz sentido que assim seja.
São 500 dólares que se emprestam a um ano?
Era caso a caso, mas definia-se um prazo, os juros, as prestações. Esta senhora, a dona Domingas, a preocupação dela todos os meses era juntar o necessário para quando nós lá fossemos cobrar. Assim que tinha guardava, punha de lado, quando nós chegávamos, pagava-nos. Tinha um sentido de responsabilidade enorme. Era assim todos os meses e, portanto, recebeu um segundo [empréstimo] de mil euros, que lhe permitiu comprar o frigorífico e etc.
Deve ser difícil também para vocês irem lá cobrar quando sabem que as pessoas não podem pagar, ou não?
Sim. Ir ter com uma pessoa que sabemos à partida que não pode pagar e que não vai pagar é difícil, mas os casos não eram todos assim. A maior parte pagava, alguns pagavam e um mês ou outro diziam: “Este mês não consigo, posso pagar para o próximo?”. E até pagavam.
Vocês vão gerindo casuisticamente.
Havia um caso ou outro de que nós já sabíamos: “Pronto, este foi um erro de casting“. Fazia parte da atividade e nós fazíamos isso com alguma naturalidade.
Qual foi a coisa que mais o marcou em Timor nesta missão?
Acho que desfez muitas certezas com que ia. Eu, uma pessoa de vinte e seis anos, já casada, que se achava muito adulta, tinha imensas certezas na vida, e elas foram caindo uma a uma por terra, e voltei a aprender muita coisa, e que a forma como nós fazemos as coisas é só a nossa forma, e não é necessariamente a melhor.
De que certezas é que estamos a falar?
Eu não sei se sei dizer uma ou outra certeza, tinha a certeza disto e deixei de ter… aquilo que fui sentindo é que tornei-me, necessariamente, durante este ano, numa pessoa menos moralista.
Menos julgamentos.
Muito menos.
Ou seja, não julga tanto para não tentar também moralizar tanto.
Claramente. Ou seja, quem vai com uma postura de estar — que é uma palavra muito importante nestes projetos de missão: o estar com as pessoas —, não é cumprir tarefas, não é cumprir uma to do list [lista de coisas a fazer], é estar, estar ponto. Não vou para isto, não vou para aquilo.
Estar de certa forma despojado, pelo outro, com o outro e pelo outro independentemente da minha expetativa.
Com o outro. Este “com o outro” é muito importante e quem vai com esta atitude acaba por absorver a realidade e a realidade é muito diferente da nossa e quando vemos que há diferentes formas de pensar, há diferentes formas de fazer, há diferentes hábitos, necessariamente as certezas que temos são abaladas. E, sejam certezas de fé, sejam certezas de como é que as coisas se fazem. Lembro-me que numa manhã de trabalho às tantas perguntei: “Onde é que está — já não me lembro quem é que era, era uma pessoa que trabalhava comigo —, onde é que ele está?”. “Foi ao barbeiro.” Mas isto era a meio da manhã. “Foi ao barbeiro? Então mas isto são horas de trabalhar.” Eles achavam aquilo normal.
Era hora de ir ao barbeiro. [risos]
Foi ao barbeiro, quer dizer, não é que isto seja bom. Também se tem de transmitir que há horas para trabalhar, há horas para ir ao barbeiro, há horas para ir almoçar, etc., mas este é um exemplo caricato de que, de facto, vive-se com muito maior tranquilidade, o tempo é diferente lá. Isto da questão das certezas foi isso, foi ter absorvido uma realidade que em tudo é diferente da nossa, porque as pessoas são diferentes. A pessoa ganha ali um certo rótulo de antes de ir, não é? “Bem, vocês são fantásticos” — é muito normal ouvirmos isto na altura. Não é assim, não é assim.
Pois isso é como nas universidades, não é? Estão nas melhores universidades portanto são ótimos alunos, vão ser ótimos change makers ou ótimos gestores ou o que for, e depois é-se confrontado com a realidade. Aliás o seu caso também, porque formou-se numas das melhores universidades de business, na Nova SBE e sabe a expectativa.
E sou um desses casos que depois não sou assim tão fantástico. [risos] Mas sabe que estou agora a ler um livro sobre o Churchill e voltamos já ao tema e ele foi péssimo aluno.
O Einstein também. Não foi péssimo, mas foi um aluno de um 11.
Pois.
Há muitas cabeças prodigiosas que não encaixam no sistema académico convencional, digamos assim, e ainda bem. É preciso é valorizá-las e não descartá-las. Voltando aqui à missão em Timor. Vocês ao fim de um ano estavam em Timor, numa missão difícil, numa comunidade vulnerável e o que é que isso faz ao casal?
Acho que fomos tendo resposta a essa pergunta ao longo dos anos que se seguiram a esta experiência.
Quando voltaram?
Quando voltámos e nos anos [seguintes].
Porque lá era fazer, fazer, fazer, viver, acordar, adormecer e depois é que se reflete.
Sim, certamente que nos momentos de dificuldade lá foi importante estarmos os dois. E até em coisas muito práticas: tivemos lá um episódio de uma praga de larvas no nosso quarto, aquilo foi pior do que parece aqui, foi mesmo mau.
O que é que uma pessoa faz?
Mexeu connosco. Tivemos de ir mudar de sítio. Foi importante para nós. Também estivemos doentes os dois ao mesmo tempo com malária e com dengue. Foi importante estarmos juntos nesse momento porque, nem que seja porque nos apoiamos um ao outro, porque quando um está um bocadinho melhor ajuda o outro a tomar os remédios ou insiste para o outro comer, qualquer coisa, quer dizer, aí vê-se o que é estarmos juntos, foi importante.
É uma força.
É uma força. No Natal, por exemplo. A Joana e a Diana estavam sozinhas, quer dizer, não tinham o pai, não tinham a mãe, não tinham ninguém.
[estava] a acabar de viver a mudança do “eu tenho uma vida na igreja porque faço o
que os meus pais dizem e fazem” para “eu tenho uma vida na igreja porque eu tenho
aqui uma relação com alguém“. Tenho com Deus um relacionamento que tem fases boas, más, mas é tão mais próximo que permitiu-me já na minha vida haver momentos em que eu até me zanguei
A Joana e a Diana eram as outras duas raparigas da vossa comunidade?
Com quem vivíamos. Eu e a Matilde apesar de tudo não tínhamos os nossos pais mas…
Mas eram uma família?
Mas éramos uma família, estávamos ali os dois. Nesses momentos em missão foi bom e foi importante estarmos juntos. Mas depois acho que trouxemos muito…
Um cimento, um betão armado que fica.
Teve impacto em todas as vertentes da nossa vida, certamente que no trabalho da Matilde, nos projetos fantásticos que ela faz dos musicais, na educação dos nossos filhos, na forma como hoje olho para alguns aspetos práticos da vida. E voltei para uma vida totalmente comum.
Business, de gestor.
Sim, quer dizer, há muita gente que volta destes projetos e de repente a vida muda, e vai trabalhar em projetos. Não foi o meu caso, bem ou mal, mas…
Voltou para a banca e a ser um gestor diário.
Isso. Mas acho que tem impacto na forma como olho para o outro e acho que para Deus.
E como aceita o outro tal como é, tal como ele é?
Sim, pelo menos acho que tento. Procuro, com as falhas que terei certamente, ter a mesma naturalidade com a senhora da receção ou da limpeza quando entro no banco, e com o administrador que lá está em cima, e penso que consigo e também será fruto dessas experiências…
E depois o estar como administrador, ou como senhora da limpeza, é
uma circunstância, e é o verbo estar, não é o verbo ser. Falou que passou a
olhar diferente para Deus também, e já assumiu que é católico praticante, que isto foi
uma missão. Olha diferente para Deus porquê? Porque já é um Deus “testado” no terreno, numa comunidade onde as pessoas sofrem, onde vivem
despojadas, às vezes de bens de primeira necessidade, onde vocês próprios também
tiveram que viver em circunstâncias que não foram assim tão fáceis, que Deus é este
que voltou ou que esteve em Timor ou que voltou de Timor convosco?
O Deus é o mesmo. O que eu conheço Dele é que é diferente. Eu era um recém-adulto
[estava] a acabar de viver a mudança do “eu tenho uma vida na igreja porque faço o
que os meus pais dizem e fazem” para “eu tenho uma vida na igreja porque eu tenho
aqui uma relação com alguém“. Tenho com Deus um relacionamento que tem fases boas, más, mas é tão mais próximo que permitiu-me já na minha vida haver momentos em que eu até me zanguei, até disse “agora és tu, agora não consigo mais, és tu, agora…”. Portanto, passou de…
Passou a uma verdadeira intimidade…
Passou de facto talvez de uma coisa mais gasosa para uma relação concreta, prática.
Ou seja, diz-se também muitas vezes que há muitas pessoas que
ficam na quarta classe da fé e evoluem em todos os campos menos no campo espiritual, porque ficaram ou com uma má catequese, ou com um ir à missa porque alguém obriga e a expectativa é só a dos outros e não a própria mas quando se dá a volta ou quando se descobre essa relação, essa possibilidade de relação de intimidade com Deus, com um amigo ou como se quiser chamar, as coisas mudam e até uma pessoa se pode zangar com Ele e isso, dizem, também que é um sinal de grande intimidade. Uma pessoa poder-se zangar ou poder pôr as mãos à anca e no fundo
dizer “faz tu” ou “explica-me” ou “diz-me” ou “dá-me sinais”. O que é que o faz zangar-se com Deus?
Não acho que aconteça muito, nem sei se sei responder a essa pergunta, acho que talvez em compreensão, não é? Se a pessoa vive com uma decisão de “que o que tu quiseres é o que eu quero mesmo que falhe”, às vezes o que nos é pedido são coisas que não compreendemos.
Tais como? No concreto. Estou a pensar porque há muitas pessoas
que tropeçam muito no sofrimento das crianças, no sofrimento das vítimas sejam elas
vítimas do que quer que seja e perguntam onde é que está Deus aí? E depois há os
que sentem que Deus está para dar a força, para atravessar toda essa situação difícil,
e há outros que achariam que Deus podia ser um mágico que tiraria a situação difícil,
não é?
Os momentos de sofrimento se calhar são momentos muitas vezes de incompreensão. Acho mais do que natural, nesses momentos de sofrimento, que a pessoa diga “então e Deus? Então e esse vosso Deus? Então e…?” E percebo perfeitamente a incompreensão de quem não acredita certamente, mas mesmo de quem acredita. “Então o que é isto? Explica lá, eu não estou a perceber, tenho aqui sinais contraditórios. Quer dizer, estou aqui a decidir alguma coisa da minha vida: de um lado parece-me claramente que vou para um caminho e, de repente, surge-me o sinal que não. Vá, explica lá o que é isto?” Talvez essa intimidade que tenho vindo a construir e não é certamente por mérito meu, mas por sorte ou por graça, permite-me em momentos destes olhar para cima.
E em Timor, olhava muito para cima? Há muito sofrimento naquele
povo, há muita carência apesar de haver também muito espirito de partilha, mas olhou
muitas vezes para cima?
Não olhava com revolta, por dois motivos: um por esta certeza que eu estava onde devia estar, e por outro porque o sofrimento é a circunstância lá e, portanto, face à morte de um filho, ou uma história terrível do tempo dos indonésios, etc., a reação deles e a forma de viver não é como cá quando as
vivemos. Quando chegava lá ouvi uma história de “a minha mãe fizeram-lhe isto e
aquilo, não sei quê e etc.”, e eu ficava totalmente…
Estamos a falar de violações e de matar pessoas, mães à frente dos filhos, filhos à frente das mães, estamos a falar disso.
De tudo isso, que na altura ouvíamos muito ainda na primeira pessoa. E quem estava ali aflito era eu, não era quem me contava, e de facto quando é circunstância tudo isto, também a pessoa
passa a viver com naturalidade. E à décima ou à vigésima história que eu ouvia isto, já
compreendia muito melhor o tom tranquilo com que me relatavam estas histórias.
Pois, não de banalidade mas de capacidade de superação.
Sim e, portanto, não me lembro de nessa altura de me revoltar, de todo. Até porque quem me contava não era revoltado tipicamente.
precisa que o outro me peça desculpa para eu lhe perdoar. Perdoo porque se não for assim a revolta tem uma dimensão que não permite quase continuar a viver. Quer dizer face ao mal que lhes foi feito, quem não perdoar está tramado para o resto da vida
Conheci uma mãe de 11 filhos a quem morreram os 11 filhos, enterrou 11 filhos, ficou cega e nunca teve uma revolta, e isso é impressionante, não é? São pessoas que são monumentos, aliás nós portugueses, crentes ou não crentes, sentimos também sempre no povo timorense que são verdadeiros monumentos de coragem, da resiliência.
E de perdão, que foi uma coisa que eu aprendi muito lá. Neste sentido do perdão que não
precisa que o outro me peça desculpa para eu lhe perdoar. Perdoo porque se não for assim a revolta tem uma dimensão que não permite quase continuar a viver. Quer dizer face ao mal que lhes foi feito, quem não perdoar está tramado para o resto da vida porque vai viver…
Amarguradíssimo e com um sentido de revolta.
Precisamente. Isto aprendi muito lá e eu também escrevo sobre isso no livro, depois de um relato de uma história terrível que vivemos lá também…
Quer contar?
Era uma mulher que nos contou que quando era criança o pai estava preso e foi à prisão visitar o pai e ela enfim, foi mais uma vez totalmente… a pessoa olha para aquela mulher e pensa, “como é possível estar uma mulher aqui à minha frente serena a contar-me esta história”?
Ou seja, ela foi violada?
Teve experiências desse estilo sim e…
Para poder ver o pai, não era?
E o pai acabou por morrer e, enfim, e não voltaram a ver o pai, e eu
tinha aquela mulher à minha frente a contar-me isto e, no fim, despediu-se de mim, de
nós, com um sorriso… A pessoa não compreende isto, isto é um mal de uma dimensão que se não vier seguido, mais tarde ou mais cedo, de uma atitude de perdão a quem fez este mal, a ela, à família, ao pai, a todos, não consegue seguir com a vida. E ela conseguiu.
Pois e isso leva-nos também ao fim da II Guerra Mundial e aos conflitos que se eternizam, o conflito do Médio Oriente e aos comités de perdão em África, na África do Sul, em Timor, que ajudam as pessoas a perdoar e a resgatar a sua própria vida, porque quando vivemos no azedume e na amargura do não perdoar, e do tentar pagar de volta, é uma escalada, e quem morre em vida são as pessoas que não perdoam. Agora tudo isto dito é uma coisa, aplicado com autenticidade, com verdade, é outra e isso é muito impressionante.
É muito impressionante e claramente que são duas coisas diferentes. Mas não tem de acontecer ao mesmo tempo o decidir perdoar e o perdoar. Podem ser dois momentos diferentes e o decidir já é bom, porque é o princípio do caminho.
E agora que tem três filhos, que é pai e que tem certamente uns pequenos conflitos entre irmãos, que é fatal e é assim que eles crescem, como é que ensina o perdão em sua casa?
As crianças replicam aquilo que veem, portanto, nós tentamos em casa viver
dando o exemplo que queremos que eles sigam. Os dois mais velhos zangam-se, pegam-se, até estão numa fase especialmente má nisso. Estamos sempre a dizer “pede desculpa ao mano”, não sei que mais, etc. “vai lá ter com ele”, tudo isso que acho que em termos práticos temos de fazê-lo, mas acho que incentivamos de facto um bom clima em casa.
Voltando à Matilde Trocado, sua mulher, que encena e escreve os musicais. Não somos um país com tradição de musicais mas a Matilde tem conseguido trazer isso para a nossa cultura, ou seja, ela tem conseguido fazer musicais extraordinários, muito bonitos com alcance, com mensagem, também não é só boa música e boa performance, também com mensagem, isso é um trabalho que vocês fazem a dois, apoia-a muito nisso? Porque há bocado dizia “estamos aqui e isto é para durar, é para
ficarmos um com o outro, um pelo outro?”. É muito bonito ouvir mas gostava de saber
como é que isso se aplica no concreto.
Concretamente, os artistas têm um cérebro que funciona de forma muito diferente e
muito mais genial do que as outras pessoas, pelo menos comparando comigo.
E a veia artística não vem das 9 às 6, pode vir à meia-noite. Ou a
dormir.
Pois pode, pois pode, ou à hora dos banhos, sim pode vir. Mas sim, já houve casos mais concretos de projetos em que trabalhámos juntos, eu produzi um musical que ela fez mas foi um…
Qual deles?
Um que se chamava “O Quadro” que foi ali no Auditório de São João de Brito, mas foi uma experiência que até correu muito bem. Hoje em dia não trabalho com ela até porque muitas vezes os processos de ensaios são a desoras e portanto, tenho que depois estar eu em casa mais a compensar e etc.
Cobrir a retaguarda.
Mas a verdade é que foi um aprendizagem esta profissão que ela tem que é uma… a Matilde não gosta que eu diga isto mas acho que está para vir um encenador de musicais que se compare com ela cá em Portugal.
Isso é muito bonito, é justo.
Parece bem, parece bonito mas não digo porque gosto dela, digo porque acho isto. A verdade é que esta profissão também já foi fruto de dificuldades no relacionamento porque não é óbvio conseguir acompanhar um processo de ensaios em que a Matilde durante dois meses não consegue jantar em casa, etc. Mas a verdade é que também isso foi uma aprendizagem para nós, que temos vindo a fazer,
e passa muito também por depois eu acabar por estar com as pessoas… Na minha profissão entro de manhã, saio à tarde e “até amanhã”. Eles não: os atores e os encenadores abraçam-se todos e adoram- se todos e vão todos fazer programas juntos e etc, e, portanto, também faz parte eu acabar por tentar acompanhar isto.
E é interessante porque isto leva-nos ao princípio da nossa conversa, que era a aprendizagem de estar pelo outro, estar pelo outro, simplesmente estar. E isso às vezes é difícil fazer no casal, em família, seja entre pais e filhos, seja entre casais convencionais, recasados, o que quer que seja é difícil estar pelo outro, não é?
É, claramente na vida de todos os dias, é. E ter o foco no outro e isso é tão difícil que hoje em dia olhamos para os números dos casamentos e vemos qual é a realidade. Sim, é super difícil mas é necessário.
E talvez seja esse o segredo da longevidade, essa fidelidade, esse
compromisso, não só ao amor mas ao compromisso de estou aqui por ti.
Sim, temos exemplos, felizmente, à nossa volta fantásticos disso.
Se pudesse trazer aqui alguém, morto ou vivo, nacional, internacional do outro lado do mundo, quem é que trazia?
Ah, se estamos a falar do meu livro, eu traria duas pessoas de quem falo e que me impressionaram muito, um que já morreu, o padre Chico, que foi das pessoas mais incríveis que conheci na vida, e mais simples, e mais despojadas, e o Amir, que é o menino que está aí na capa do livro comigo. Quase nunca falei com ele, e quem ler o livro vai perceber isto, ele não falava comigo, falou uma vez e marcou-me brutalmente.
Então vou deixar o suspense. O livro chama-se “Em Timor: Histórias
de um casal em missão” é publicado pela Sete Mares e vale mesmo a
pena ler, porque aprendemos muito. Ficamos a conhecer a realidade
timorense, a realidade de uma comunidade que se dedica a outra comunidade e
ficamos com a história do Amir, que eu também não vou contar.