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Clive Mason/Getty Images

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Ele pensou por nós e enganou-nos a todos

Há dois anos perdeu no Stade de France, disse aos jogadores que voltariam ali para jogar a final do Europeu. Nós não sabíamos disto. Só sabíamos o que ele dizia, e desconfiámos de Fernando Santos.

Mãos atrás das costas, postura de pensador, um caminhar pausado, com os olhos focados no chão. Andou assim a passear uns bons 15 minutos, lá longe, à volta do campo principal de Marcoussis. O primeiro treino da seleção estava a começar. Os jogadores aqueciam as pernas e ele afastado estava, a aquecer a mente. Foi passear sozinho, ninguém tentou dar-lhe companhia, aquilo era mais hábito do que ocasião. Ele ditou o caminho e o tempo, pisou o relvado já quando as rabias e os meiinhos andavam a ser feitos. É a primeira coisa que me vem à cabeça quando vou buscar memórias de Fernando Santos neste Europeu. O selecionador a pensar, sozinho.

A segunda é o homem feliz e espontâneo de Marselha. A seleção tinha acabado de resolver um problema aos pontapés. Foram cinco, todos com a bola parada a 11 metros, ninguém falhou. Os penáltis punham-no a ele e aos jogadores nas meias-finais. E a nós, jornalistas, que os esperávamos na zona mista do Velódrome, lá em baixo, onde todos eles têm de passar para chegarem ao autocarro que os leva dali. O primeiro a aparecer foi Fernando Santos. No final da fila de grades, eu e mais uns colegas damos-lhe os parabéns. Ele sorri, ri-se com ar de quem recebe a melhor notícia do mundo e ouve a melhor anedota de sempre. Estica a mão, é ele que força o passou-bem. Diz-me “muito obrigado”.

No final da fila de grades, eu e mais uns colegas damos-lhe os parabéns. Ele sorri, ri-se com ar de quem recebe a melhor notícia do mundo e ouve a melhor anedota de sempre. Estica a mão, é ele que força o passou-bem. Diz-me “muito obrigado”

Entre e antes destes momentos houve o senhor de palavra, com a voz grave, grossa, talvez pela segurança que mete em cada coisa que diz. Há dois anos, quando a federação se livrou da catástrofe do Mundial com um abrir de porta a Paulo Bento — que ainda foi a tempo de perder, em casa, contra a Albânia –, apareceu este homem. Anteviu-se outro imbróglio. Este era o treinador respeitado, com bom olhado de muita gente, caía no goto da maioria, mas o homem que tanto gosta de pescar trazia uma pescadinha de rabo na boca.

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Contestou um árbitro no Brasil, falou o melhor inglês que pôde, garante que não o ofendeu. As palavras valeram-lhe uma expulsão com a Grécia que valeu oito jogos de suspensão com Portugal. Fernando estava condenado a começar por ser tão ausente como ausente. O banco foi espaço interdito para ele e as pessoas duvidaram. Falou-se e inventou-se e problematizou-se sobre um castigo que o impedia de estar no sítio onde quase todos os treinadores dizem que, mal a bola começa a rolar lá dentro, pouco podem fazer dali. Há berros que se disparam, indicações que se dão, nervos que explodem, mas o calor que aquece quem joga tapa os ouvidos a quem deve ouvir.

Foto: FRANCISCO LEONG/AFP/Getty Images

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Faltaria sempre a figura do líder no banco, mas o Fernando parecia inabalável. Despreocupado com tudo isso. No dia em que sentou o rabo na cadeira que o apresentou como novo selecionador, em Lisboa, contou que, nos anos em que passou na seleção grega, os jogadores sabiam uma palavra em português. “Ganhar”. Como qualquer um, ele não o conseguiu fazer sempre e vai com quatro empates e seis derrotas além das 14 vitórias em 24 jogos com a seleção. Nenhum jogo perdido apareceu quando havia algo em jogo. Quando foi a valer, ninguém foi melhor que a seleção no resultado.

No primeiro dia, sem um treino, um jogo, uma vista de olhos de perto nos jogadores, disse que ia estar no Europeu. A seleção estava mais fora do que dentro, nessa altura. Quando confirmou o que disse, esticou-se mais um pouco. Fez lembrar os miúdos que estão a ser ameaçados pelos pais com um raspanete e, maldita adrenalina, ousam contrariar. Ou maldita confiança. Ou maldita crença. Porque Fernando Santos acredita muito nele próprio e no que leva os jogadores a acreditarem.

Disse que ia ao Europeu para chegar à final e ganhá-la. Não era arrogância, era ambição. Era meter na cabeça de toda a gente — do jogador, dos técnicos, dos jornalistas que escrevem, do adepto que desconfia, da dona de casa que não quer saber patavina de futebol — a mesma ideia. Todos ficaram a pensar no mesmo. Era para o bem, muitos levaram o mal. Que era ambição a mais, coisa desmesurada, objetivo a mais para tanta tradição a menos e desconfiança que o português leva dentro quando são estas coisas.

Disse que ia ao Europeu para chegar à final e ganhá-la. Não era arrogância, era ambição. Era meter na cabeça de toda a gente -- do jogador, dos técnicos, dos jornalistas que escrevem, do adepto que desconfia, da dona de casa que não quer saber patavina de futebol -- a mesma ideia.

O sorteio deu um grupo que todos julgámos pelos nomes e vimos como fácil. Fernando avisou que não era, tenham calma. Com maior ou menor dificuldade antecipada, Portugal tinha e devia acabá-lo com nove pontos e sobreviveu-o apenas com três e com um trio de empates. O selecionador, ousado, refrisou a meio o objetivo e garantiu o que já tinha prometido à família. Só voltava a 11 de junho para casa, no dia seguinte à final do Europeu. Era impossível não desconfiar.

A seleção jogava à cautela, organizada como nunca, com pouco risco e demasiada prudência para o risco a que estávamos habituados. Portugal, o país pequeno mas grande em futebolistas, sempre quis fazer peito, bater o pé, dominar os outros, mostrar o que somos, ganhar pela finta, pelos pés, pela técnica que temos a mais para tantos golos a menos. Nós, jornalistas, entre colegas que andam em França, suspirávamos. Víamo-nos a ir para casa mais cedo. O resto da Europa também. Líamos jornais e capas com “aborrecido”, “nojento” ou “pouco” escritos a letras grandes.

O salto para a final apareceu na cabeçada de Ronaldo e no pé esticado por Nani numa segunda parte. Mostrou-nos como o homem que preferia “dois pássaros na mão do que um a voar” e que afirmara “não ser maluco” tinha razão. Estamos na final. E afinal ele nunca nos enganou, nós é que nos enganámos.

Os portugueses vão passando e são desviados para o lado bom da força do sorteio por alguém chamado Tartason. O islandês que marca um golo no último minuto do derradeiro jogo deles, na fase de grupos, e deixa Portugal em terceiro. O bom no meio do mau de acabar nesse lugar foi a seleção evitar França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Espanha para se encontrar com a Croácia, a Polónia e o País de Gales.

Encontrou-os com empates, à cautela, à retaguarda, a anulá-los primeiro e a atacá-los depois, até vencer os galeses ao fim de 552 minutos a empatar contra toda a gente. O salto para a final apareceu na cabeçada de Ronaldo e no pé esticado por Nani numa segunda parte. Mostrou-nos como o homem que preferia “dois pássaros na mão do que um a voar” e que afirmara “não ser maluco” tinha razão. Estamos na final. E afinal ele nunca nos enganou, nós é que nos enganámos.

Julgámos à pressa e fomos rápidos a esticar o dedo ao selecionador que deitou cá para fora o que muitos guardam lá dentro. Fernando Santos disse que pretendia ganhar, ser campeão europeu, chegar à final. Insistiu com a ideia para que toda a gente a enfiasse na cabeça. Não é por acaso que muitos são os treinadores e jogadores que, em público, são resfriados nos objetivos. Não revelam o que se fala no balneário. É normal, isso dá pressão, cria expectativas, deixa quem assiste em posição de lhes cobrar algo. Mas ele fê-lo, os jogadores seguiram-no, a federação também. Puxaram por nós e nós a duvidar.

Foto: Alex Livesey/Getty Images

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Isto aconteceu porque Fernando Santos é um líder. Eu não o sabia, fiquei a saber por Luís Roquete, o senhor que foi seu adjunto no Estoril, onde tudo começou, e se fartou de o dizer. Parecia não ter palavras que chegassem para descrever o carisma, a postura, a voz, a forma como diz as coisas, como acerta, como dá o exemplo. Podemos sempre desconfiar de quem fala dos melhores amigos e só diz bem, mas não aqui. Paulo Mendes disse-me o mesmo, ou Paulinho, como Fernando e o futebol lhe chamam. Na cave de uma pizzaria de Paris e nas ruas da cidades, conversámos sobre o selecionador que em tempos o treinou e que agora tem como amigo. Para sempre.

Não gravei nem escrevi coisas que ele me disse à confiança, pérolas de um homem, histórias fora do futebol que mostram muito sobre o que Fernando leva para dentro dele. É uma pessoa que sempre abriu a porta a Paulinho, que não liga às horas, que engana pelo ar carrancudo que tem, mas que não é, que é honesto, sincero e verdadeiro com todas as pessoas com as quais lida. Não é por acaso que a cada entrevista que se faz a amigos ou conhecidos de Fernando Santos, a palavra líder tenha sempre mais contagem que outras.

Isto aconteceu porque Fernando Santos é um líder. Eu não o sabia, fiquei a saber por Luís Roquete, o senhor que foi seu adjunto no Estoril, onde tudo começou, e se fartou de o dizer. Parecia não ter palavras que chegassem para descrever o carisma, a postura, a voz, a forma como diz as coisas, como acerta, como dá o exemplo

E honesto foi coisa que ele pareceu ser em Marcoussis, em uma das conversas a que fui, entre ele e nós, jornalistas. Sorriu, brincou quando teve de ser, respondeu ao que lhe perguntámos, não falou sobre coisas e explicou porquê, não as evitou. É muito raro isto acontecer, ainda mais quando me dizem que estas conversas, privadas e tranquilas, partem muito da iniciativa do selecionador. Bem me dizia Luís Roquete que ele “adora falar sobre futebol”.

O futebol que, no domingo, o fará voltar ao sítio onde tudo começou para ele e para nós com ele na seleção. Fernando Santos estreou-se com Portugal no Stade de France, estádio onde um 2-1 o fez arrancar com uma derrota. Eram os franceses que estavam no relvado, muitos dos que jogarão a final contra os portugueses. Foi nessa dia, contou há dias, que disse aos jogadores e lhes meteu na cabeça a ideia de que, dois anos volvidos, estariam ali, de volta, a jogar a final do Europeu. Enganou-nos a todos, disto não sabíamos.

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