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Francisco Sá Carneiro e Mário Soares, líderes do PSD e do PS, conversam no hemiciclo
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Francisco Sá Carneiro e Mário Soares, líderes do PSD e do PS, conversam no hemiciclo

Francisco Sá Carneiro e Mário Soares, líderes do PSD e do PS, conversam no hemiciclo

Eleitores de Abril vs Capitães de Abril: as eleições de 25 de Abril de 1975

Na nossa democracia, os “eleitores de Abril” foram tão importantes como os “capitães de Abril”: impediram outra ditadura, tão anti-democrática e tão repressiva como a anterior. Ensaio de Rui Ramos.

Passam este sábado 45 anos de um 25 de Abril tão importante como o de 1974: o dia, em 1975, em que quase seis milhões de portugueses adultos, de norte a sul do país, de todas as classes sociais, profissões e gerações puderam, pela primeira vez, escolher livremente os seus representantes numa assembleia política, com a garantia de que o seu voto seria devidamente escrutinado. As eleições para a Assembleia Constituinte de 25 de Abril de 1975 são um dos maiores momentos da história de Portugal. Revoluções e golpes de Estado, insurreições e manifestações, tinha havido sempre. Umas eleições livres, com sufrágio universal para homens e mulheres, a que puderam concorrer vários partidos, e cujos resultados nenhum dos participantes contestou – isso nunca tinha acontecido. Literalmente, mudaram a história do país.

Um sistema eleitoral sem precedente

O sistema eleitoral foi definido ainda em 1974 por uma comissão presidida por José Magalhães Godinho. O voto por lista em círculos distritais plurinominais, e o método de representação proporcional de Hondt, para atribuição dos lugares de deputado, já haviam sido usados antes. Mas de resto, tudo era inédito.

As grandes novidades eram quatro: em primeiro lugar, um sufrágio verdadeiramente universal, incluindo todos os cidadãos portugueses com mais de 18 anos, independentemente dos critérios de sexo, habilitações literárias ou rendimentos que, em regimes anteriores, haviam servido para negar o direito de voto à maior parte da população; em segundo lugar, o recenseamento eleitoral obrigatório, que fez o corpo eleitoral subir dos 1.800.000 recenseados de 1973 para 6.231.372 em 1975; em terceiro lugar, o voto em cabines, com boletins entregues pela mesa eleitoral, em vez do voto com listas previamente distribuídas pelas candidaturas, e facilmente distinguíveis entre si pelo tipo de papel ou formato; e, em quarto lugar, a vigilância do escrutínio por representantes das candidaturas com acesso aos cadernos eleitorais. Além disso, todos os candidatos tiveram acesso a “tempos de antena” na televisão e na rádio.

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O MFA proibiu vários “partidos de direita” em 1974 e impediu outros de irem a votos. No entanto, os 16 partidos que acabaram por ser admitidos eram uma representação razoável do leque de opiniões comum nas democracias ocidentais

Finalmente, o país dispunha do mecanismo que tinha faltado a todos os sistemas representativos em Portugal desde o século XIX: um sistema eleitoral que, apesar das imperfeições, produzia resultados geralmente aceites como genuínos. Até aí, a democracia tinha sido frequentemente concebida como a dissolução do indivíduo em movimentos de massas. Agora, pôde emergir outra ideia de democracia: um regime representativo fundado no voto individual de todos os cidadãos, defendidos, pelo secretismo do voto, contra as manipulações e coacções do poder.

Não quer dizer que não tivesse havido condicionamentos. As candidaturas foram reservadas aos partidos, e para obter o estatuto legal de partido foi necessário apresentar 5000 assinaturas no Supremo Tribunal de Justiça. O MFA proibiu vários “partidos de direita” em 1974 e impediu outros de irem a votos. No entanto, os 16 partidos que acabaram por ser admitidos eram uma representação razoável do leque de opiniões comum nas democracias ocidentais, desde o centrismo do CDS até ao maoísmo da UDP, embora os partidos à direita tivessem de fazer vénias ao socialismo imposto pelo poder militar.

As eleições que ninguém se atreveu a cancelar

Como se chegou aqui? Eleições livres para uma Assembleia Constituinte tinham sido um dos compromissos do Movimento das Forças Armadas a 25 de Abril de 1974. Correspondiam à tradição das forças armadas em Portugal, geralmente relutantes em assumir responsabilidades de governo indefinidamente e sempre ansiosas, como se vira na transição para o Estado Novo no princípio dos anos 1930, em trespassar o poder, com certas garantias, a protagonistas civis. Por outro lado, satisfaziam também o interesse inicial de todos os partidos políticos, quando ainda não era claro quem iria predominar: através de eleições livres e com um sistema proporcional, poderiam pelo menos garantir um lugar nas instituições. Acontece que, na Primavera de 1975, quase onze meses passados sobre o golpe de 1974, muita coisa mudara.

Existiam certamente facções do MFA comprometidas com a causa do pluralismo e da democracia. Mas existiam também facções do MFA que rejeitavam a “democracia burguesa”, em nome de totalitarismos soviéticos ou autoritarismos terceiro-mundistas. Ora, eram precisamente estas que predominavam desde o golpe de 11 de Março de 1975, quando se reforçou a influência da clique militar à volta do primeiro-ministro Vasco Gonçalves, alinhado com o PCP. Chegou a pensar-se que as eleições para a Assembleia Constituinte seriam adiadas.

O cancelamento das eleições não era uma hipótese impossível. Em 1974, o MFA deixara no ar a ideia de que haveria eleições, não apenas no Portugal europeu, mas em todos os territórios sob administração portuguesa. No chamado “ultramar”, porém, os partidos armados que tinham combatido pela independência recusaram eleições livres e concorrenciais, e reivindicaram um simples trespasse de poder, argumentando que a guerra lhes dera um mandato para governar que dispensava consultas à população. Na Guiné, em Moçambique ou em Angola passou-se assim, no meio de ajustes de contas e de guerras civis, de uma ditadura para outra ditadura. No fim, só no Portugal metropolitano se realizaram eleições. Porque é que foi possível, num país submetido a uma autocracia militar de influência comunista, haver eleições democráticas e livres?

O PCP esperava que o barulho que os seus activistas, protegidos pelo MFA, faziam nas ruas impressionasse os eleitores, convertendo-se em votos. Em segundo lugar, o PCP e os seus satélites militares trataram, entre o 11 de Março e as eleições, de assegurar-se que os resultados eleitorais não afectariam a relação de forças que lhes era favorável.

Em grande medida, pelo peso de um dos grandes compromisso da revolução, como Vasco Lourenço notou na Assembleia de 11 de Março: “É uma coisas que toda a população vai começar a perguntar, é se há eleições ou não há eleições”. Obviamente, a preocupação não estava nos murmúrios populares, mas na eventualidade de uma ruptura e de um confronto, se por acaso o programa do MFA fosse violado dessa maneira. Mesmo os gonçalvistas e o PCP não se sentiam suficientemente seguros para se atreverem a tanto num país da NATO e cuja economia, depois da adesão à EFTA em 1960 e do acordo comercial com a CEE em 1972, já estava relativamente integrada na Europa ocidental. O objectivo do PCP era exercer influência através de um governo militar, não o de proclamar imediatamente um regime de tipo soviético, provocando a resistência interna e internacional. Tinha ainda o que julgava ser algumas garantias contra possíveis riscos eleitorais.

Em primeiro lugar, o PCP esperava que o barulho que os seus activistas, protegidos pelo MFA, faziam nas ruas impressionasse os eleitores, convertendo-se em votos. Em segundo lugar, o PCP e os seus satélites militares trataram, entre o 11 de Março e as eleições, de assegurar-se que os resultados eleitorais não afectariam a relação de forças que lhes era favorável. Tentaram isso por duas vias. A primeira foi a chamada “institucionalização do MFA”: fosse qual fosse o resultado das eleições, o novo Conselho da Revolução, onde dominava a chamada “esquerda militar”, continuaria a mandar no país. A outra via foi o “pacto MFA-partidos”, que obrigou quase todos os partidos concorrentes às eleições a aceitar a direcção do MFA. Desse modo, muito do que a Assembleia Constituinte era suposto vir a decidir, já estava, em Abril de 1975, decidido por arbítrio do poder militar: por exemplo, a estatização da banca e de outros sectores da economia, ou um regime político onde órgãos escolhidos pelos militares, como o Conselho da Revolução, limitariam a soberania de órgãos eleitos pelos cidadãos. Mas nada seria assim – graças aos eleitores de 25 de Abril de 1975. O sistema de sufrágio universal, directo e secreto, com proporcionalidade, provocou um terramoto na revolução.

“Capitães de Abril” e “Eleitores de Abril”

As eleições destruíram um dos grandes obstáculos mentais à democracia e à liberdade em Portugal: as teorias dos que, à direita e à esquerda, explicavam que Portugal era um país pobre e ignorante, e por isso destinado a oscilar entre ditaduras de direita e de esquerda, conforme quem estivesse no poder. Era o que muitos sábios, nacionais e estrangeiros, tinham esperado e continuavam a esperar: depois de Salazar, viriam os comunistas. Mas em 1975, depois de anos de autoritarismo conservador e com os revolucionários marxistas a ocupar o Estado, a televisão e os jornais, o país não mostrou nostalgia autoritária, não partilhou o zelo revolucionário, nem ficou em casa, amedrontado ou indiferente. Em vez disso, votou, e votou maciçamente: 91,7% dos 6.231.372 recenseados compareceram. Das eleições de 25 de Abril de 1975, ficou a imagem das longas filas de eleitores em frente das escolas onde funcionavam as secções de voto.

Além de votar, o eleitorado votou decisivamente. Dos 16 partidos concorrentes, cinco receberam 88,9% dos votos: PS, PPD, PCP, CDS e MDP. Poderia dizer-se que eram os partidos que estavam mais próximos do poder militar (tirando o CDS, os outros tinham feito parte dos Governos Provisórios, e o próprio CDS estivera representado no Conselho de Estado). Mas, desde o 11 de Março, o poder militar não favorecia os partidos que defendiam um regime político democrático de tipo ocidental. Foram, porém, esses partido que os eleitores preferiram: o PS, o PPD e o CDS elegeram 213 em 250 deputados, apesar da pressão das facções do MFA alinhadas com o PCP e a extrema-esquerda. O PS foi o mais votado, com 37,9% dos votos (116 deputados), o PPD veio a seguir, com 26,4% (81 deputados) e o CDS, em quarto lugar, teve 7,6% (16 deputados).

[Veja aqui os resultados das eleições de 1975 a nível nacional e por distrito]

O PCP estava então no auge do seu poder em Portugal, através da influência que exercia na clique dominante do MFA. Gabava-se ainda dos seus 100 mil militantes, e das suas manifestações e comícios. Controlava os sindicatos, muitos organismos estatais, quase toda a grande imprensa e a televisão, e, em aliança com o MDP, a maioria das comissões administrativas das câmaras municipais. Mas nada disso o poupou ao embaraço de uma votação modesta: 12,5% (30 deputados). O seu avatar, o MDP, não foi além dos 4,5% (5 deputados). A direcção do PCP declarou-se vítima dos “caciques reaccionários” da província. Mas nunca conseguiu explicar porque é que mesmo em Lisboa o PCP não passou dos 15,8%. A extrema-esquerda, apesar do seu ascendente em quartéis e universidades, não elegeu mais do que um deputado (da UDP). Na madrugada de 26 de Abril de 1975, depois de uma longa noite televisiva, o país descobria que os orientadores ideológicos dos militares revolucionários, aqueles cujas bandeiras assombravam as ruas, eram, afinal, uma minoria no país.

A partir daí, o choque foi inevitável. Animados pelos resultados eleitorais, PS, PSD e CDS moveram-se para sacudir o jugo do PCP. Em Março de 1975, dias depois do golpe do dia 11, um Álvaro Cunhal triunfante recebera Mário Soares, gracejando com Carlos Brito, conforme este conta nas suas memórias: “Vem pedir batatinhas”. Permitiu-se, então, ser “muito duro” e “ameaçador”. Em 19 Julho de 1975, porém, Mário Soares estava na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, à frente de uma gigantesca manifestação que o PCP não conseguira impedir, a exigir a demissão de Vasco Gonçalves. As multidões que saíram à rua no Verão de 1975 para contestar a hegemonia comunista sabiam, desde as eleições de 25 de Abril de 1975, que representavam a maioria. Tudo mudara com as eleições. O PCP deixara de poder falar em nome da “classe trabalhadora”, quanto mais do “país”. A 6 de Agosto, com o Documento dos Nove, uma parte da própria esquerda militar renegava a “teoria leninista da vanguarda revolucionária”, isto é, a influência do PCP. Em Setembro de 1975, a composição do novo VI Governo Provisório já reflectiu os resultados das eleições (4 ministros do PS, 2 do PPD e apenas 1 do PCP). Para o PCP e a extrema-esquerda, a consciência de que eram uma pequena minoria, apesar de todo o poder que tinham exercido através do MFA em 1975, foi certamente uma das razões para que, a 25 de Novembro de 1975, evitassem arriscar tudo numa guerra civil.

A 28 de Novembro de 1975, Francisco Sá Carneiro, regressado à liderança do PPD, arrumava assim a ideia do MFA como “motor da revolução” e “representante do povo português”: “É perfeitamente claro que, depois das eleições de 25 de Abril de 1975, o motor da vida política portuguesa são os partidos políticos, e entre eles avultam os dois maiores partidos, o PS e o nosso. Esses é que são os verdadeiros representantes do povo português que lhes deu o seu voto. Os militares, apesar do seu papel histórico, não podem pretender ignorar essa realidade, que é uma realidade política e nacional fundamental”. As eleições de 25 de Abril de 1975 criaram uma legitimidade eleitoral que acabou por corroer e finalmente destruir a legitimidade revolucionária e o socialismo receitado pela Constituição. Nos anos seguintes, foi através de eleições – como as de 1979 e de 1980, que deram vitórias à AD, ou a de 1987, que resultou numa maioria absoluta ao PSD de Cavaco Silva – que os condicionamentos políticos e económicos do PREC foram gradualmente desmantelados. Mas sem todos os cidadãos que, a 25 de Abril de 1975, saíram de casa para votar, talvez não tivesse sido assim.

As eleições de 25 de Abril de 1975 criaram uma legitimidade eleitoral que acabou por corroer e finalmente destruir a legitimidade revolucionária e o socialismo receitado pela Constituição. Nos anos seguintes, foi através de eleições – como as de 1979 e de 1980, que deram vitórias à AD, ou a de 1987, que resultou numa maioria absoluta ao PSD de Cavaco Silva – que os condicionamentos políticos e económicos do PREC foram gradualmente desmantelados.

O MFA derrubou a ditadura salazarista e desmantelou as suas estruturas repressivas. Sem o MFA, não teria havido recenseamento eleitoral e eleições. Mas só com o MFA, como se viu durante o PREC, não há certeza de que não tivesse havido outra ditadura, tão anti-democrática e tão repressiva como a anterior. Por isso, os “eleitores de Abril” foram, nesta história, tão importantes como os “capitães de Abril”.

As raízes profundas da democracia

As eleições tiveram ainda outros efeitos na cultura política portuguesa. Para começar, revelaram um país plural e complexo, como nunca havia sido imaginado pelos políticos em Portugal. Em 1975, todos contavam com diferenças entre ricos e pobres, ou entre cidades e campos. Ninguém esperava o tipo de clivagens territoriais revelado pelas eleições. A primeira análise da distribuição especial do voto foi feita por Jorge Gaspar e Nuno Vitorino no livro As Eleições de 25 de Abril. Geografia e Imagem dos Partidos, publicado em 1976. À parte o PS, todos os partidos eram regionais. Nenhum partido à direita do PS vencera em concelhos a sul do Tejo; e nenhum partido à esquerda do PS vencera em concelhos a norte do Sistema Central. Era como se houvesse um país da direita, a norte, e um país da esquerda, a sul.

O mapa eleitoral de 1975 não surpreendeu quem conhecia o livro Portugal, o Atlântico e o Mediterrâneo, publicado em 1945 por Orlando Ribeiro, professor de Geografia da Universidade de Lisboa. Até então, Portugal tinha sido concebido, pelos vários regimes e partidos, como um país homogéneo e de que, portanto, um partido político podia pretender ser o único representante. Ao contrário de outros países europeus, a população falava toda a mesma língua e tinha a mesma religião. Eram reconhecidos, por demasiado óbvios, contrastes entre o norte e o sul, entre o interior e o litoral, ou entre cidades e campos. Mas o costume era não lhes atribuir maior relevância do que a do pitoresco local (como nos contrastes regionais) ou do temporário desnível de progresso (como na diversidade entre cidades e campos). Orlando Ribeiro foi o primeiro a perceber que oposições de paisagem e de clima em Portugal, desenhadas de norte para sul, se articulavam com variações sociais e culturais, para formar países diferentes, divididos pela cordilheira central: o “Portugal atlântico”, a norte, com as suas montanhas, povoamento disperso e lavoura em pequena escala, e o “Portugal mediterrâneo”, a sul, com as suas planuras, cidades e latifúndios. Orlando Ribeiro invalidava assim qualquer discurso geral sobre o país que não contemplasse a sua pluralidade irredutível.

Era fácil traduzir o voto de 1975 simplesmente em termos de prática católica (mais alta a norte do que a sul), da percentagem de proprietários na população dedicada à agricultura (também mais alta a norte do que a sul), e da emigração para países da Europa ocidental (mais uma vez, predominante a norte). Era nesses termos, aliás, que a explicação era mais directa: pequenos proprietários católicos, sob influência do clero e despertos para a prosperidade que ofereciam as economias de mercado da Europa ocidental, resistiram à esquerda comunista a norte do país. Mas a profundidade dessas opções era maior, tal como, dez anos depois de 1975, explicou o historiador José Mattoso no seu livro Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal, 1096-1325.

O livro de José Mattoso é muito mais do que um estudo erudito da formação do reino de Portugal na Idade Média. É a mais importante reflexão alguma vez publicada sobre as origens de Portugal. No entanto, o seu ponto de partida está precisamente nas eleições do Portugal democrático, a começar pelas de 25 de Abril de 1975. O primeiro capítulo abre com esta frase: “A população portuguesa que olha com curiosidade os mapas publicados pelos jornais depois de cada acto eleitoral já se habituou a verificar, sem surpresa, a repartição dos votantes em dois grandes blocos, cujas fronteiras coincidem, grosso modo, com a divisória estabelecida pelas montanhas que prolongam o Sistema Central”.

O que José Mattoso demonstra a seguir, tomando o livro de Orlando Ribeiro como ponto de partida, é que a divisão eleitoral de 1975 correspondia a áreas historicamente diferenciadas, não só com diversos níveis de prática religiosa, mas também com diferentes sistemas de parentesco, de tecnologias agrícolas, e de características fonéticas e lexicais. Nada disto, aliás, singulariza Portugal: noutros países europeus, as opções eleitorais contemporâneas também assentam em contrastes históricos análogos.

José Mattoso transformou, com Orlando Ribeiro, a nossa maneira de ver o país. Portugal fora até então discutido como uma essência fora do tempo. Mattoso abordou-o como um processo histórico. Para “identificar” o país, em vez de o tentar retratar como uma personalidade única e fixa, estudou a “oposição” e a “composição” de identidades diferentes através do tempo. Até então, todos os regimes, mesmo os mais liberais, haviam encarado as diferenças políticas como efeitos ilegítimos de atraso ou de importação, destinados a serem passados a ferro pela ideologia ou pela técnica. Em 1975, percebeu-se que direita e esquerda podiam corresponder a uma diversidade fundamental, que fazia com que a direita prevalecesse a norte e a esquerda a sul. Em 1985, dez após as primeiras eleições democráticas, Identificação de um País ajudou a compreender como a democracia portuguesa não era simplesmente a importação de um modelo em vigor no Ocidente na segunda metade do século XX. Era mais do que isso: um regime que, na medida em que fosse capaz de dar expressão política a um pluralismo fundamental da sociedade portuguesa, estava enraizado no passado, em estruturas culturais e sociais seculares, que dizem respeito à economia rural, aos sistemas de parentesco e às práticas religiosas.

Nos últimos anos, desapareceram as antigas sociedades rurais. As migrações, a escolarização, e a televisão uniformizaram o país. Mas as grandes divisões políticas são ainda visíveis a cada eleição ou referendo: quarenta e cinco anos depois das primeiras eleições, o PSD e o CDS continuam a ser sobretudo partidos do norte, e o PCP e o BE, enquanto herdeiro da extrema-esquerda de 1975, sobretudo partidos do sul.

É neste sentido que as eleições de 25 de Abril de 1975 definiram a questão da democracia em Portugal: já não se tratava, como alguns ainda pensaram até então, de encontrar o representante único da vontade de uma nação homogénea, mas de fundar um regime onde a pluralidade sócio-cultural do país se pudesse transformar em pluralismo político e em alternância pacífica no poder. Tanto a ditadura salazarista como as facções revolucionárias do MFA tinham encarado a diferença como um defeito. O sucesso do actual regime democrático não depende apenas de ter-se conseguido ancorar, desde a entrada na CEE em 1986, em instituições internacionais. Depende, acima de tudo, da sua capacidade de reconhecer que os portugueses têm vários objectivos e várias identidades, decorrentes da sua história. É esta a base em que deve assentar a cultura democrática em Portugal.

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