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“Eles, “nós” e uma bola: “A Game of Secrets” é o filme da vida dos Football Leaks

Está disponível na HBO o documentário que nos lembra que há várias maneiras de ver o futebol, há derrotados que nunca vão ser campeões e há líderes que estarão sempre no topo da classificação.

Em 1970, Manuel Freire teve o maior êxito da sua carreira ao adaptar o poema “Pedra Filosofal”, escrito em 1956 por António Gedeão, para canção – um êxito tão grande que Freire viu-se obrigado a cantá-la durante décadas em programas de fim de semana à tarde, mesmo quando estava a apresentar um novo disco. Não deve ter havido um único português nascido entre 1950 e 1980 que não tenha cantado (ou ficado envergonhado ao ver os olhos dos pais ficarem marejados de emoção ao cantarem):

“Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E que sempre que o homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança”

Exercícios de semiótica de poesia, por mais fascinantes que sejam, têm pouco em comum com (por exemplo) química orgânica – nesta podemos ter certezas por via empírica, na primeira ficamo-nos pelas interpretações. Será que a intenção última das palavras escritas por Gedeão e das cantadas por Freire era a mesma? O poema original parece mais ingénuo que a conotação política com que Freire o cantou – mesmo que (curiosamente) as palavras sejam exatamente as mesmas.

Duas delas chamam à atenção, pelo menos desde a saída do documentário “A Game of Secrets”, dedicado aos Football Leaks (HBO Max), para um conjunto de documentos relacionados com negócios de futebol, alguns deles de contornos obscuros. A primeira é “Eles”; a segunda é “bola”; ambas estão em pano de fundo em “A Game of Secrets”.

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Quem são “Eles” na frase “Eles não sabem nem sonham (…)”? Na versão de Manuel Freire seriam as pessoas que promoviam a ditadura; na de Gedeão talvez fossem todos os reacionários, aqueles que estão contra o prazer e a alegria; mas “Eles”, por norma, tem um tom conspirativo: “Eles” são os maus, os que controlam, por trás de uma cortina, os outros (que somos nós).

[o trailer de “A Game of Secrets”:]

No poema e na canção, a bola colorida está “Entre as mãos de uma criança”; no documentário não chega a estar nos pés de ninguém – porque o documentário, tal como os Football Leaks, não é sobre futebol, mas sobre a possível corrupção que assola esse (chamemos-lhe) negócio, bem como sobre as reais intenções de Rui Pinto, que está a ser julgado pelos leaks e se assume como whistleblower – o documentário não o pinta nem de preto nem de branco, deixando no ar a hipótese de primeiro o suposto hacker (ou membro de um grupo de hackers) ter agido por dinheiro e posteriormente por justiça.

No documentário há uma frase de um jornalista que se relaciona com o parágrafo anterior: era suposto que o futebol fosse um jogo em que cada equipa (e respetivos jogadores) tivesse(m) uma relação com a comunidade local, numa simbiose escapista identitária, mas algures pelo caminho tornou-se uma forma de gente obscura (“Eles”) lavar dinheiro, com o beneplácito das instituições que, supostamente, deviam velar pela integridade do jogo.

Isto é uma forma de separar a árvore (o caso em tribunal contra Rui Pinto) da floresta (o estado moral do futebol), algo que na sua neutralidade o documentário opta por não fazer. A mais valia do documentário está na extrema organização da informação – além de ouvirmos intervenientes como Nélio Lucas (que dirigia a Doyen, a empresa que supostamente Rui Pinto “hackeou”, sendo que Pinto preferiu não participar no documentário) e jornalistas que acompanharam o caso.

É que o que é contado de forma linear e límpida no documentário tem a vantagem do tempo, que permite organizar os acontecimentos, categorizá-los, dividi-los em caixinhas; na altura não foi assim: em 2015 alguém colocou num website cópias de contratos de contornos (supostamente) obscuros – eram os primeiros leaks do que veio a ser conhecido como Football Leaks; continuaram a aparecer às pinguinhas; entretanto, uma espécie de dump de milhões de páginas com milhares de contratos foi parar às mãos de jornalistas, em particular do Der Spiegel e do New York Times, que procuraram levar a investigação o mais longe possível, o que resultou numa sucessão de escândalos.

A árvore é Rui Pinto e os seus alegados crimes; a floresta é o estado do futebol – e aqui regressamos à bola nos pés da criança: gostamos de futebol pelo prazer que nos dá desde miúdos; a nossa memória dos primeiros chutos, dos primeiros jogos de rua, é pura e de puro prazer; o nosso pai ou tio leva-nos aos jogos do clube da terra – podemos ser do Benfica ou do Porto ou do Sporting, mas nunca deixaremos de ser da Ovarense.

Pelo meio, a PJ abriu um processo de corrupção desportiva contra o Benfica (o famoso caso dos emails lidos pelo diretor de comunicação do Futebol Clube do Porto), e um jornalista português descobriu, nas páginas do processo, o nome do presumível hacker que obtivera os emails do Benfica – Rui Pinto. Rapidamente a polícia juntou 2 + 2, seguiu os familiares de Pinto até Budapeste (onde este se encontrava) e, com a ajuda da polícia húngara, prendeu-o e extraditou-o, estando Pinto hoje a aguardar julgamento em lugar desconhecido, protegido pela polícia e com necessidade de usar colete à prova de balas. Para quem gosta de súmulas que vão de A para B para C e assim sucessivamente, sem tomarem partido, “A Game of Secrets” é o ajudante ideal para organizar os eventos do Football Leaks, como se fosse uma Mari Kondo do hacking do futebol obscuro.

Não sabemos como Kondo se safaria no meio do mato, mas é hora de separar a árvore da floresta: Rui Pinto está acusado de 90 crimes; Messi, Ronaldo e Mourinho (entre outros) foram acusados de fuga fiscal (graças aos Football Leaks) em escândalos que duraram dois dias, até passarem um cheque e continuarem a ser idolatrados enquanto máquinas de golos (ou, no caso de Mourinho, construtor de muros em frente à própria baliza); Manchester City e PSG, que contornaram as regras do Fair-Play financeiro da UEFA através de injeções de capital disfarçadas de patrocínios, escaparam miraculosamente incólumes (isto depois de o City ter sido inicialmente condenado, e posteriormente ilibado, de uma forma que deixou a maior parte dos adeptos de futebol atónitos); quanto à Doyen, a empresa gerida por Nélio Lucas, e que Rui Pinto alegadamente hackeou com um simples esquema de phishing, deixou de existir – os seus donos, os irmãos Arif que, segundo a Interpol, criam empresas para lavar dinheiro da máfia russa (sendo que um deles é amigo de e teve negócios com Donald Trump) por aí andam, já sem Doyen, mas com outras empresas (vieram dos minérios, expandiram, mantêm-se no desporto).

A árvore é Rui Pinto e os seus alegados crimes; a floresta é o estado do futebol – e aqui regressamos à bola nos pés da criança: gostamos de futebol pelo prazer que nos dá desde miúdos; a nossa memória dos primeiros chutos, dos primeiros jogos de rua, é pura e de puro prazer; o nosso pai ou tio leva-nos aos jogos do clube da terra – podemos ser do Benfica ou do Porto ou do Sporting, mas nunca deixaremos de ser da Ovarense. Vemos os jogadores do nosso clube e, além do simples prazer visual, temos um empenho identitário: aquele jogador é o que poderíamos ser e projectamo-nos nele; a nossa equipa vence, o que significa que a nossa identidade vence.

Olhemos para os Football Leaks e o seu resultado: Rui Pinto em tribunal, escondido e com colete à prova de balas (sempre um sinal de que estamos a lidar com pessoas idóneas); todos os outros seguiram

Agora olhemos para os Football Leaks e o seu resultado: Rui Pinto em tribunal, escondido e com colete à prova de balas (sempre um sinal de que estamos a lidar com pessoas idóneas); todos os outros seguiram a sua vida tranquilamente (embora possivelmente alguns tenham uma arma no bolso, não vão cruzar-se com Rui Pinto na rua).

Tomemos um caso aparentemente anódino, o do regresso de Pogba ao Manchester United – o agente de Pogba, o falecido Mino Raiola, recebeu 41 milhões de euros pela transferência – de que forma é que isto se justifica? O Manchester United é hoje uma máquina global de fazer dinheiro, mas é um clube com imensa implantação local; só que pertence a uma família americana, os Glazers, que raramente estiveram em Manchester. Qual a relação destes 41 milhões com a comunidade? Podemos, à luz de tudo o que sabemos dos Football Leaks, presumir que muitos destes negócios servem de lavagem de dinheiro e que muita gente do meio fecha os olhos porque lhe cai algum no bolso? Esses 41 milhões podiam ser – digamos – 36 e os 5 restantes terem sido usados na comunidade?

Cada um terá a sua opinião sobre o que motivou Rui Pinto – no documentário é lembrado que anos antes ele tirara dinheiro de um offshore (devolvendo tudo menos 23 mil euros) e que propôs parar com os leaks a troco de dinheiro (ele defende-se, em imagens cuja origem desconhecemos, dizendo que isso era apenas uma forma de ver até onde a Doyen estava disposta a ir, quão grave seria o que ele estava a expor).

Pessoas mais binárias tenderão a rotular Pinto como um hacker que queria dinheiro e disse ser whistleblower quando foi preciso; aqueles que veem o mundo como uma miríade de gradações de cinzento colocarão a hipótese de (por exemplo) ele ter começado por querer dinheiro mas, ao ver a dimensão do que descobrira, resolver mesmo expor o que chama de podridão do futebol.

O que quer que a justiça decida em relação a Rui Pinto, continua por explicar como é que estados podem ser donos de clubes (PSG e Manchester City), como é que estes dois clubes que tão explicitamente quebraram as regras do fair-play financeiro (já para não dizer que mascararam contas) escaparam impunes, para onde vai parar o dinheiro das comissões?

Separando a árvore da floresta, temos de um lado um rapaz que entrou no servidor de uma empresa, eventualmente com a intenção de a extorquir, e que acabou por revelar uma série de negócios aparentemente obscuros; e, do lado da floresta, onde antes tínhamos clubes ligados às comunidades, hoje temos jogadores e treinadores que fogem ao fisco, clubes que são pertença de multi-milionários que nunca foram à terra em questão e que mentem acerca dos valores pagos por jogadores, agentes que recebem verbas incompreensíveis em termos financeiros; e que por trás disto tudo estão pessoas que polícias de várias partes do mundo desconfiam serem lavadores profissionais de dinheiro cuja origem são máfias (russas, em particular).

O que quer que a justiça decida em relação a Rui Pinto, continua por explicar como é que estados podem ser donos de clubes (PSG e Manchester City), como é que estes dois clubes que tão explicitamente quebraram as regras do fair-play financeiro (já para não dizer que mascararam contas) escaparam impunes, para onde vai parar o dinheiro das comissões, porque é que as pessoas por trás destas empresas intermediárias escapam sempre entre os pingos da chuva. Independentemente do que acontecer a Rui Pinto, não parece haver tribunais à espera dos irmãos Arif nem ninguém disposto a batalhar contra os regimes por trás do PSG e do Manchester City.

Talvez eles saibam que o sonho não comanda a vida, e que a bola nos pés de um jogador só tem valor quando televisionada e o jogador for transferido para outro clube com milhões a circular por onde só eles sabem. Talvez eles saibam que quando se gere um estado que lapida até à morte homossexuais, comprar um clube de futebol, enchê-lo de dinheiro de todas as formas possíveis e imaginárias, de maneira a comprar as maiores estrelas, ajude a lavar um bocadinho a imagem do mencionado estado.

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