Perdido num canto de um condomínio de luxo está um quarto minúsculo de empregada doméstica. É aí que uma mulher negra, Eunice, e a filha, Mabel, vivem, trabalham, lutam contra injustiças ou aceitam o que a vida lhes deu. Podiam ter muitos outros nomes que espelham uma realidade no Brasil que continua a ser comum. Por isso, Eliana Alves Cruz quis dar o papel principal a uma classe que raramente tem protagonismo ou voz e construiu a história de Solitária em torno delas.
Publicado em Portugal através do projeto literário À/Parte, a obra junta temas de racismo, diferenças sociais, solidão, revolta, isolamento, discriminação e superação. Como se não bastasse, tudo é abalado por um crime inspirado em factos verídicos [AVISO: a entrevista pode conter spoilers sobre a narrativa] tão avassalador que muda o rumo de todas as vidas que se cruzam no tal condomínio de luxo para sempre.
Solitária é um livro curto, uma decisão propositada da autora nascida no Rio de Janeiro, para que também as empregadas domésticas pudessem e quisessem lê-lo. A escrita é simples mas consegue transmitir dureza e beleza numa medida desenfreada, muitas vezes na mesma cena.
Vencedora do Prémio Jabuti (entre outros) em 2022, com o conto A Vestida, Eliana Alves Cruz foi jornalista (e ainda é) durante a maior parte da sua vida. Publicou o primeiro livro depois dos 50 anos, achou que o sucesso se devia a sorte de principiante, mas agora, aos 58, é um nome estabelecido na literatura brasileira. Falámos com a autora sobre Solitária, o legado da própria família que a fez começar a escrever e a mudança de um bairro pobre e negro para um de classe média e branco que a confrontou com um sentimento de não pertença desde cedo.
Como é que esta mãe e esta filha surgiram?
O trabalho doméstico é algo muito naturalizado no Brasil. Tenho um primeiro livro, chamado Água de Barrela, que é uma história ficcionalizada da vida da minha própria família, desde o século XIX em África até 2015, quando terminei de escrever. Nele há uma personagem, a Dodó, que é um caso clássico do que acontece no Brasil: uma menina que mora numa cidade pequena no interior, que vai trabalhar para casa de pessoas na capital e que fica ali, quase num sistema quase escravizado, basicamente até morrer. Eu tive essa tia e quando a minha família fala sobre ela é com muita mágoa. As pessoas que leem Água de Barrela e que também têm essas personagens nas suas vidas, ou que foram empregadas domésticas, ficam com muito dó, querem entrar no livro e resgatá-la. Portanto, já estava no meu radar escrever uma história em que uma empregada doméstica fosse a protagonista.
Estamos em 2024, ainda há Eunices e Mabels abafadas em apartamentos de luxo ou sente que mudou alguma coisa desde que escreveu o livro?
É só uma atualização da tecnologia porque, de resto, é o legado de mulheres negras, mulheres periféricas, e isso vai passando de geração em geração. Ainda que, quando olho para a minha adolescência ou para a geração da minha mãe e das minhas avós, vejo que caminhámos. Mas, aqui no Brasil, só em 2005 é que uma nova lei conferiu às empregadas domésticas o status de trabalhadoras. Ou seja, carteira assinada, descontos, férias, seguros, desemprego. Isso causou uma certa rutura, abalou a nossa organização social.
Nesta história, a família que emprega a Eunice faz parecer que ela é da família, mas só quando interessa. É uma espécie de poder psicológico?
Claro, é uma artimanha que vem da época da escravatura. Você é quase da família para quê? É para não ter direitos, você não paga um salário à sua avó nem dá férias à esposa. Trazer essa pessoa para o seio familiar é uma forma de escamotear direitos. Mexer com esse universo é sempre muito incómodo. Posso recuar até à pandemia, altura em que, no Brasil, o trabalho doméstico foi considerado serviço essencial. Então, enquanto artistas ou influencers faziam lives, era comum vermos lá atrás uma menina a limpar ou a fazer uma feijoada. Aquilo dava-me uma angústia, sabe? Pensava: aquela pessoa não tem família? Como é que vai voltar para casa? Está confinada ali?
Para Solitária acabou por se inspirar numa história verídica também, que ficou conhecida como Caso Miguel.
O que aconteceu foi que uma empregada doméstica estava em casa da patroa, desceu para cuidar dos cães e deixou o filho uns 10 minutos sob o olhar da patroa. A patroa, muito aborrecida e muito entediada por o menino não parar de perguntar pela mãe, colocou-o no elevador, apertou o andar de cima, o garoto subiu, caiu do nono andar e morreu. Aquilo estraçalhou-me porque achei que era muito explicativo das nossas realidades sociais. Assim nasceu Solitária. Achei que estava na hora de escrever a história de uma empregada doméstica, que na literatura muitas vezes nem nome tem.
Nunca são personagens principais?
Exato, mas eu queria que tivessem um nome, que fossem protagonistas e pudessem finalmente contar o que sentem, quem são. Criei então esse universo do Golden Plate [o condomínio onde decorre a ação], que é um microcosmos de Brasil, ou seja, você tem uma elite que é dona dos imóveis, que emprega essas pessoas, e tem todo um universo de pessoas que gravitam à volta: o porteiro, o jardineiro, a empregada, a ama, o cuidador de idoso. São todos trabalhos subalternizados no Brasil e que aqui estão no papel principal.
No livro percebemos que estes patrões também têm uma história, um motivo para serem e agirem assim, mas a Eliana escolheu não lhes dar voz. Apesar disso, essa densidade nota-se, mesmo sendo um livro curto.
O meu editor, no Brasil, perguntou-me se eu não queria aumentar o livro, contar mais coisas. É verdade que estas pessoas não são o que são à toa, têm um historial, mas optei por ser muito enxuta nesta história porque queria que as pessoas do trabalho doméstico lessem. Queria que a Eunice lesse e a Eunice não tem o hábito da leitura. Se vir um livro demasiado grande, vai ficar intimidada. Queria que fosse um livro simples e direto, para que ela conseguisse ler e sentir.
O que é o projeto À/Parte?
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Nasceu da vontade de duas mulheres, Ana Pimentel e Sara do Ó, e foi pensado no último ano e meio. “A Sara tinha esta vontade de criar dentro da Ó Capital um projeto que usasse as histórias, os livros, para criar um impacto positivo na vida das pessoas. Que as retirasse da agitação do dia a dia, da indiferença, e lhes devolvesse um lugar de acolhimento. E eu queria o mesmo. Numa fase de maior desencantamento com o jornalismo, era entre os livros que me via a trabalhar”, explica Ana Pimentel, que foi jornalista e editora no Observador.
O fator que diferencia o À/Parte no mundo literário é único em cada obra. “Temos um critério editorial e está logo na nossa assinatura: editamos histórias que nos movem. Histórias reais ou de ficção que provoquem o leitor, que o inspirem ou desafiem. Deixamos esse critério evidente na nota editorial que existe em cada livro. E deixamos a nossa experiência de leitura na badana, para que o leitor saiba porque apostamos naquela obra.”
Além disso, em Solitária e nos outros livros do À/Parte, a história não tem de terminar na última página. “Cada um tem um marcador com um QR Code que leva os leitores para experiências paralelas à leitura.” A viagem de Solitária, por exemplo, faz-se com música.
Em Solitária tem personagens subjugadas, cujos direitos são ignorados, onde as mulheres são alvo de violência. Como olha para a história que criou e para a realidade?
O que aconteceu nos EUA é um bom paralelo. O teatro norte-americano estava a configurar-se já há algum tempo. Para o norte-americano médio e para a classe média brasileira, ou talvez até portuguesa e europeia, uma figura como a Kamala Harris na cadeira da presidência do país mais poderoso do mundo, seria too much [demasiado]. A Eunice, a Mabel, eu, você em alguma medida, porque você é mulher, embora seja mulher branca e europeia, sofre todas as questões que a atravessam no machismo. Nós sempre seremos o outro para alguém, para o mundo que domina. Voltando aos temas do livro, acho que falam de pessoas que precisam manter-se caladas, é necessário manter o silêncio para que os privilégios sejam perpetuados para quem os tem. Por isso, este livro, e tantos outros que abordam essas questões, são tão incómodos. Por isso é que existe essa tentativa de supressão de direitos nos Estados Unidos e no mundo todo.
Diz que a sua literatura se baseia em perguntas. A sua escrita serve de terapia? É um processo doloroso?
Às vezes escrevemos coisas que precisamos deitar cá para fora, acho que o Água de Barrela foi esse exercício, o de contar uma história que não via na literatura brasileira sobre uma família como a minha e tantas outras que devem ter sido semelhantes. Foi muito terapêutico porque no processo de escrita eu entendi-me, entendi que lugar ocupo neste mundo, no país, enfim, na minha própria família. Por outro lado, há também o processo da dor e temos de encará-lo, não há como suprimir isso. Acho que a literatura, para mim, foi a forma que encontrei para encarar esses abismos. O próprio caso do Miguel, o menino que inspirou Solitária, estava muito distante de mim. Eles viviam no Ceará, no nordeste do Brasil. Eu e a Mirtes, a mãe, somos pessoas completamente diferentes mas há algo que nos une, um traço comum, e por isso aquilo dilacerou-me. Escrever o livro foi também um processo doloroso porque me vi como mãe, vi ali o processo das minhas familiares mais velhas que já estiveram nesse lugar tão subalterno de empregada doméstica e lavadeira. Também é um exercício de empatia e de distanciamento.
A Eliana fala em escolas e universidades, o que a torna uma referência como escritora e como mulher negra. Olhando para trás, para a sua infância e juventude, faltaram-lhe estas referências?
Não havia. Para mim, o Machado de Assis era um homem branco. Lembro-me de, na minha adolescência, haver uma nota com a figura dele e parecia um barão do café. Só descobri que ele era negro já quando era adulta. Não me lembro de, na faculdade, ter lido uma autora negra. Comecei a descobrir sozinha, talvez graças ao meu pai, que era muito atento, mas tudo fora do Brasil. A Alice Walker, a Maya Angelou.
Se não tinha estas referências, algo parecido consigo que a guiasse, o que é que a inspirou ou foi decisivo no seu percurso?
Acho que somos feitos das nossas ausências, mas também de uma comunidade. Sou um caso muito sui generis porque o meu pai, com todas as precariedades de ter nascido e sido criado numa favela, era um grande leitor. Estudou, conseguiu fazer a Universidade Federal de Direito e conseguiu colocar-nos noutro patamar. A educação é um valor inegociável na minha família. O meu pai adora poesia, cresci com Fernando Pessoa. Colecionava fascículos do Círculo de Leitores e, graças a isso, li Gabriel García Márquez, Érico Veríssimo, Alex Haley. Isso ajudou-me a questionar se eu própria não teria uma história para contar.
Teve uma infância muito feliz, apesar de pobre, e as coisas complicaram-se quando o seu pai começou a ganhar melhor e se mudaram para um bairro de classe média. Complicou-se porque não pertenciam ali?
Acho que foi nessa época que descobri que dinheiro não traz felicidade. Éramos pessoas pobres, muito pobres até, mas os meus pais e os meus avós não deixaram que percebêssemos isso, essa ficha caiu muito depois. A minha avó aquecia água para eu tomar banho numa bacia, mas só muito mais tarde percebi que não tínhamos água quente. Éramos uma família muito grande, com união e afeto. Quando o meu pai passou num concurso para advogado do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico, fomos para um bairro de classe média, que é a Tijuca, e foi a primeira vez que me vi negra, foi a primeira vez que entendi que a minha cor de pele era uma questão. Claro que sabia que era negra, mas ali percebi que o meu destino se alteraria pela forma como era tratada e encarada. As coisas complicaram-se e a minha mãe morreu aos 46 anos, com um enfarte fulminante. Acho que as pressões que sentia ali influenciaram. O meu pai também acabou logo com o nosso encanto. Um dia disse-nos: “Vocês estão aqui porque a escola é melhor, o bairro é menos violento, mas entendam que não são daqui. As pessoas apenas vos toleram”. Essa foi uma frase que me perseguiu desde a pré-adolescência até à vida adulta. Percebi tanto a realidade política, quanto a social e racial nessa mudança de bairro.
Foi aí que nasceu o gosto pela literatura, como uma forma de refúgio?
Sou disléxica e a minha mãe, que era professora do ensino básico, percebeu cedo. Fiz um tratamento e aí o meu cérebro começou a organizar melhor as coisas e a aproximar-me da leitura. E o meu pai fazia com que lêssemos muito. Pensava que um dia também podia ser eu a escrever. Mas depois acontece a vida, os filhos, as contas para pagar e os sonhos são adiados.
O jornalismo surgiu dessa necessidade de ter uma carreira que pagasse as contas?
Eu queria estudar história, mas a minha mãe avisou-me que ia acabar numa sala de aulas e os professores ganham muito pouco. Mal sabia ela quais eram os salários dos jornalistas. Acabei a estudar jornalismo e comecei a trabalhar no desporto. Fiquei anos a trabalhar numa confederação de desporto como responsável de comunicação. Viajava imenso e um dia percebi que estava exausta, tive um colapso e o médico mandou-me tirar um mês de férias para descansar a sério. Foi aí que comecei a fazer pesquisa para aquilo que seria o Água de Barrela. Escrever um livro passou a ser uma fuga nessa altura da minha vida em que as coisas não estavam muito fáceis. Quando terminei, senti um vazio. Inscrevi-me num concurso nacional e ganhei, foi aí que tudo começou realmente. Ainda sou jornalista, mas sou mais escritora hoje.
Sofreu do síndrome de impostor de que muitos escritores falam? O Prémio Jabuti, por exemplo, fez com que isso mudasse?
É um processo doloroso. Tive síndrome de impostor, pensei que era sorte de principiante. Foi algo de que me fui apropriando aos poucos. Quando ganhei o Prémio Jabuti, já me achava escritora, mas não uma escritora capaz de ganhar o Jabuti. Fui para a cerimónia com o meu marido só para curtir o momento, beber um copo, aplaudir os colegas. Não estava minimamente à espera de ganhar.
Quando é que percebeu que tinha realmente leitores do outro lado?
Acho que ainda tenho essa insegurança. Até hoje, quando vou a um evento, digo: “Não vai encher, não vai muita gente”. Felizmente, as redes sociais são um termómetro que nos diz o contrário. As pessoas marcam-me em publicações e mandam mensagens. Fico muito feliz de ver a quantidade de pessoas que têm lido o livro em Portugal e que se têm sentido impactadas. É engraçado como é que um ambiente tão artificial, o online, nos aproxima das pessoas nos mais variados cantos do mundo. Isso dá-me uma alegria enorme, mas também uma grande responsabilidade. Se não fossem as redes sociais nunca saberia que sou lida. Assim, é como se me conseguisse ver no meio de uma multidão.