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Elisa e Marcela: as duas espanholas que há mais de 100 anos casaram pela Igreja e fugiram para o Porto

Elisa e Marcela casaram-se numa igreja em Espanha em 1901. Perseguidas pela polícia, refugiaram-se no Porto e conquistaram o apoio da população. O primeiro filme sobre as duas estreia a 7 de junho.

Em 1901, mais de 100 anos antes de o casamento entre pessoas do mesmo sexo ter sido legalizado em Espanha, duas mulheres conseguiram o impensável — enganaram um padre e casaram-se numa igreja da Corunha perante um pequeno grupo de testemunhas. A mais velha, Elisa, vestiu-se de homem, disse chamar-se Mario e inventou para si toda uma nova biografia; a mais nova, Marcela, disse ter-se apaixonado pelo primo da melhor amiga, cujas feições faziam em tudo lembrar as dela. Descobertas pelos habitantes da localidade onde moravam, Dumbría, e denunciadas à polícia, foram obrigadas a deixar o seu país e a refugiar-se a vários quilómetros de distância, no Porto. Viveram tranquilamente durante cerca de um mês na cidade portuguesa, até que a sua verdadeira identidade, mais uma vez descoberta, as atirou novamente para as manchetes dos jornais. Em agosto de 1901, não se falava de outra coisa.

Detidas durante cerca de um mês no Aljube, uma extensão da prisão lisboeta no Porto, Elisa Sánchez e Marcela Ibeas conseguiram, talvez contra todas as expectativas, conquistar o carinho da população, que se uniu para angariar fundos que permitissem melhorar a sua vida e pedir a sua libertação. Quando esta finalmente chegou, no final de agosto, Elisa e Marcela não perderam tempo em agradecer o carinho dos portuenses — escreveram uma carta, publicada no Jornal de Notícias, em que afirmaram não serem dignas de tanta atenção. Mas os portugueses achavam que eram e, em janeiro de 1902, as duas mulheres voltaram às páginas dos jornais — Marcela, que se dizia ter chegado ao Porto grávida, deu à luz uma filha. Cansadas da atenção, pública, partiram no verão desse ano para a Argentina. O que lhes aconteceu depois de terem atravessado o Atlântico permanece, até hoje, um mistério.

Por mais que o tivesse desejado, a história do seu amor proibido nunca foi esquecida. Elisa e Marcela são hoje, 118 anos depois, um símbolo de resistência e coragem, e também da luta pelos direitos LGBTI. Em Espanha, foi criado um prémio com o seu nome, destinado a distinguir iniciativas que defendam os direitos dos homossexuais. O trabalho de investigadores como Narciso de Gabriel, autor da mais completa obra sobre a vida de Elisa e Marcela, tem também ajudado a manter a história das duas primeiras mulheres a casarem em Espanha viva. Mais recentemente, a notícia de um filme produzido pela Netflix voltou a trazer Elisa e Marcela aos jornais. A longa-metragem, realizada por Isabel Coixet, vai estrear a 7 de junho em mais de 100 países através da Netflix, a tempo do aniversário daquele que ficou conhecido como o “casamento sem homem”.

[O trailer de “Elisa y Marcela”:]

Uma amizade mais forte do que a distância

A história de María Elisa Sánchez Loriga e Marcela Gracia Ibeas começou em 1885, quando se conheceram na Escuela Normal de Maestras, onde se formavam, na Corunha, as professoras primárias. Elisa, que teria cerca de 20 anos, era filha de Manuel Sánchez, que há muito tinha morrido, e de María Loriga Landeira, que depois da morte do marido, em 1869, tinha casado com um professor inglês, o sr. Dodds. Tinha nascido em Burgos, na atual província de Leão e Castela. Marcela, com pouco mais de 18 anos, era a única filha do capitão Manuel Gracia, do regimento de Múrcia, e de Marcelina Ibeas, que viviam na Calle del Mercado, na Corunha, onde tinha crescido.

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A forte amizade que desde logo as uniu foi relatada pelo La Voz de Galicia no primeiro artigo que publicou sobre as duas mulheres, a 22 de junho. De acordo com o jornal galego, esta terá provocado o desagrado dos pais de Marcela que, a determinada altura, decidiram enviá-la para Madrid. Não se sabe o que terá incomodado Manuel e Marcelina, mas o certo é que, durante algum tempo, Elisa e Marcela permaneceram afastadas. Só se voltaram a encontrar já depois de terem terminado os estudos, quando Elisa trabalhava numa escola em Calo, no concelho de Vimianzo, e Marcela em Couso, uma aldeia localizada entre a Corunha e a Finnisterra, na Costa da Morte. O afeto que sentiam uma pela outra permaneceu igual, e as duas tornaram-se novamente inseparáveis.

Dois anos depois do reencontro, Marcela, já mestra superior, foi colocada numa outra localidade — Dumbría, no concelho de Finnisterra —, onde assumiu o cargo de professora na escola dirigida por Victoriano Lois. Elisa foi com ela. Como não tinha emprego, costumava ajudar nas lidas da casa onde viviam, junto ao estabelecimento de ensino. Os seus modos bruscos não cativaram a simpatia da população, que lhe pôs a alcunha de “o civil”. Também a mãe de Marcela continuava a não ser capaz de gostar de Elisa Sánchez, cuja presença não conseguia suportar. A determinada altura, Marcelina Ibeas terá deixado a Corunha, estabelecendo-se em Santiago de Compostela. Não participou mais na vida da filha. Antes disso, porém, teve um último encontro com Elisa, numa altura em que a amizade das duas já se teria transformado em algo mais.

Perseguidas pela polícia espanhola, Elisa e Marcela refugiaram-se no Porto, onde viveram pacatamente durante cerca de dois meses até a sua história ser descoberta

Elisa Sánchez visitou Marcelina ao final da tarde de um dia de maio de 1901. Disse-lhe que precisava de falar com ela em nome da filha. A mulher, não reconhecendo de quem se tratava, recusou-se a recebê-la. Irada, disse-lhe: “Pois fique a saber que agora sou eu que não quero falar consigo”. Questionada meses depois sobre este breve encontro, a mãe de Marcela admitiu ao La Voz de Galicia que não tinha percebido quem lhe tinha batido à porta — Elisa estava vestida como um homem. Não foi a primeira vez que a jovem mulher trocou a saia por um fato. A transformação de Elisa em Mario teria começa, pelo menos, um mês antes, quando esta desapareceu subitamente de Dumbría, onde morava com Marcela. Depois de encenar uma zanga com a amiga, fez as malas e disse aos vizinhos que ia emigrar para Cuba em busca de fortuna. Elisa nunca mais voltou.

Casaram-se na Corunha e nem o padre desconfiou

A farsa que levaria ao casamento de Elisa e Marcela começou oficialmente a 30 ou 31 de abril (o La Voz de Galicia não soube especificar o dia certo), quando a primeira, vestida de Mario, se apresentou na paróquia de San Jorge, na Corunha, e pediu ao pároco que a batizasse. A história que o sr. Cortiella ouviu foi a mesma que Elisa repetiu dezenas de vezes depois disso: chamava-se Mário Sánchez, era corunhês, mas tinha vivido praticamente a vida toda em Londres, para onde tinha sido levado aos 8 anos de idade — uma biografia inspirada num primo que tinha morrido num naufrágio. Por causa da crença religiosa do pai, que era ateu, nunca tinha sido batizado. Como tencionava casar-se em breve, pedia ao sr. Cortiella que o batizasse. O padre aceitou, e Elisa, então Mario, começou a ter aulas de catequese com o padre e uma tia, Jacoba Loriga, conhecida de Cortiella.

Mario Sánchez foi batizado às três da tarde de 26 de maio de 1901. Levava um fato escuro e um chapéu branco com uma faixa negra. A madrinha foi a tia Jacoba e o padrinho um jovem empregado da sacristia, Manuel Prado. “Nada havia nela que desse a entender o seu verdadeiro sexo”, declarou o La Voz de Galicia a 22 de junho. A 8 de junho, casou-se com Marcela na mesma igreja paroquial de San Jorge. Apenas um pequeno grupo de convidados assistiu à cerimónia. Manuel Hermida, funcionário do Crédito Gallego, foi o padrinho e Ricarda Fuentes, viúva do sr. Sánchez, um comandante reformado, e a vizinha da mãe de Marcela, foi a madrinha. As testemunhas foram Heliodoro Rey, sacristão, e uma outra viúva, Francisca, vizinha de Ricarda. As despesas foram pagas pelo padrinho, um parente afastado de Elisa, que o tratava por “tio”, e o copo de água realizado em casa da madrinha, para onde o grupo se deslocou depois da boda para tomar chocolate. A ata foi registada pelo funcionário municipal Manuel Castelo.

O padre, o mesmo que tinha batizado Mario uma semana antes, não desconfiou de nada. A maioria dos convidados também não foi capaz de encontrar nada de estranho na história de Mario, um primo de Elisa que todos diziam ser muito parecido com ela. A própria madrinha não fazia ideia do que se passava. Ricarda Fuentes foi convidada para a boda quando Elisa e Marcela se deslocaram até à Calle del Mercado para convidar Marcelina Ibeas para o casamento. Mas Marcelina não estava em casa — tinha ido para Santiago de Compostela para ser operada, segundo relatou o La Voz de Galicia —, então acabaram por convidar Ricarda para madrinha.

Com o padrinho, a história foi diferente. Em entrevista ao jornal galego, Manuel Hermida admitiu que sabia que Mario não era Mario, mas sim Elisa. Tinha sido a própria, que tinha visto vestida com roupas de homem pela primeira vez em 1900, que lhe tinha revelado tudo: “Disse-me que tínhamos estado todos enganados em relação ao seu sexo, pois era um homem. Contou-me tudo em relação ao novo batismo, que ignorava por completo. Revelou-me também que se ia casar (…). Pediu a minha ajuda; pediu-me que fosse padrinho do casamento”, relatou Manuel, replicando a versão que seria repetida várias vezes pelo casal depois da sua prisão em Portugal — que Elisa era hermafrodita e que não era mulher como todos sempre julgaram.

“Disse-me que tínhamos estado todos enganados em relação ao seu sexo, pois era um homem (…). Revelou-me também que se ia casar. Pediu a minha ajuda; pediu-me que fosse padrinho do casamento.”
Manuel Hermida, padrinho de casamento de Elisa e Marcela, ao “La Voz de Galicia”

O casal passou dois dias na pensão Concubión, na Calle de San Andrés, regressando a 10 de junho a Dumbría, onde Marcela continuou a dar aulas. Elisa foi apresentada aos vizinhos como Mario, mas ninguém acreditou. Para eles era óbvio que Mario Sánchez era Elisa e não o seu primo de Inglaterra. O escândalo não tardou — a população rodeou a casa onde as duas moradas e exigiu a saída de Elisa e o padre teve de intervir. Varela Bolón pediu ao marido de Marcela que abandonasse a localidade. “Senão, entrego-te à Guardia Civil.” Deu-lhe um dia.

É difícil dizer quando é que Elisa, vestida como Mario, saiu de Dumbría. O que é certo é que, perto do final do mês de junho, já não se encontrava na localidade corunhesa. Marcela continuou a trabalhar com normalidade depois da partida da companheira, mas também ela acabou por ceder à pressão da população e abandonar a região. Quando o correspondente do La Voz de Galicia, Alejandro Barreiro Noya, visitou o local, encontrou a escola fechada. “A professora foi-se embora”, disseram-lhe. O seu relato saiu a 29 de junho de 1901. O casal esteve dois anos em Dumbría.

O paradeiro das duas mulheres permanecem incerto durante várias semanas. A 30 de junho, o mesmo jornal noticiou que Elisa Sánchez teria comprado, na estação da Corunha, um bilhete de comboio para Tui. Marcela teria seguido para Burgos e aí apanhado um comboio com destino à mesma localidade do conselho de Pontevedra para onde teria ido a companheira. As duas teriam a cidade do Porto, onde uma delas teria família, como destino, segundo conseguiu então apurar o La Voz de Galicia. “Não podemos assegurá-lo”, alertou, no entanto, o diário galego, acrescentando que, na segunda-feira seguinte, seriam ouvidas várias testemunhas, entre elas um oficial municipal, o sr. Castello. O caso tinha chegado às mãos da polícia.

O artigo de 30 de junho de 1901 do La Voz da Galicia vinha acompanhado por uma reprodução do retrato de Elisa e Marcela, hoje famoso, que José Sellier, um fotógrafo espanhol de origem francesa que ficaria conhecido por ser o pioneiro do cinema em Espanha, tirou no seu estúdio na Corunha no dia do casamento. Na fotografia, as duas surgem vestidas de negro e com uma expressão de tranquilidade; Marcela, com um véu preto na cabeça, agarra o braço de Elisa, de fato e pose masculina. A imagem, dada a conhecer pela primeira vez pelo jornal galego, correu o mundo. Em Madrid, a sua publicação no Nuevo Mundo fez especial furor — no dia em que saiu, o semanário ilustrado vendeu 19 mil exemplares. A 14 de julho, o La Voz da Galicia deu conta da sua publicação nos jornais La Refôrme (Bruxelas), Le Matin, Le Gaulois (Paris) e The Morning Leader (Londres). Em Lisboa, apareceu, a 18 de agosto, no O Século, no mesmo dia em que saiu, no Porto, no Jornal de Notícias.

O caso foi descoberto e a polícia chamada a intervir. Mas como?

Entre o casamento de Elisa e Marcela, a 8 de junho de 1901, e a sua chegada ao Porto, alguma coisa fez com que a história do “casamento sem homem”, como ficou conhecida, se espalhasse e chegasse às páginas dos jornais. No artigo de 22 de junho, o primeiro publicado pelo La Voz de Galicia, o jornal admitia não saber ao certo como é que o caso se tinha descoberto. O padre Cortiella, que se encontrava então num retiro espiritual em Santiago de Compostela, teria recebido uma denúncia anónima. Para esclarecer a situação, te-se-ia mandado chamar Mario e um médico, Antonio Deus, a quem teria cabido examinar o noivo. Ter-se-ia então concluído que o marido de Marcela Ibeas era, afinal, uma mulher.

Esclarecido o sexo do noivo, ficava por explicar o motivo do casamento. Na Corunha, circulavam rumores de que Marcela estava grávida de um jovem médico. Elisa, a quem estava ligada por uma forte amizade e nada mais, ter-se-ia disfarçado de homem e casado com ela para ocultar o que teria acontecido. O problema com esta versão era que, segundo apurou o La Voz de Galicia, a mulher não apresentava quaisquer sinais de gravidez. O que era certo era que as duas tinham desaparecido da região e a polícia, que a 23 de junho admitiu não saber do seu paradeiro, tinha avançado com algumas diligências. Em causa poderia estar o uso de uma falsa identidade, um crime previsto pelo Artigo 346 do Código Penal de Espanha que podia ser punido com pena de prisão ou com o pagamento de uma multa que podia chegar às 1.250 pesetas. A pena podia ser mais grave caso se apurassem “maiores responsabilidades”, explicou o mesmo jornal. A 26 de junho, o juiz de instrução da Corunha deu ordem para que se tentasse descobrir onde estavam Elisa e Marcela. Em Espanha, “o assunto” era “objeto de todas as conversas”.

A primeira página do La Voz de Galicia de 30 de junho de 1901, que reproduziu, pela primeira vez, o retrato de Elisa e Marcela. O título “Un matrimonio sin hombre” (“Um casamento sem homem”) ficou famoso

Apesar dos esforços levados a cabo pela polícia espanhola, foi só a 17 de agosto que se soube com certeza o paradeiro das duas mulheres: “Telegramas do Porto recebidos neste jornal dão conta da detenção de Elisa Sánchez e Marcela Gracia Ibeas, realizada naquela capital. As detidas foram submetidas a um interrogatório”, anunciou o La Voz de Galicia, adiantando que as autoridades portuguesas tinham informado o cônsul espanhol no Porto do sucedido. Este, que teve oportunidade de olhar para os documentos que Elisa trazia consigo — uma cédula de identidade e uma carta de residência passada pelo Consulado espanhol em nome de Mario José Sánchez Martinez, vendedor ambulante —, pôde rapidamente comprovar que eram falsos, um crime também previsto pela lei portuguesa. Marcela, que tinha a documentação em dia, argumentava que não havia razão para ser levada para a prisão. Mas havia — era cúmplice da companheira.

No dia seguinte, o capitão do comando da Guardia Civil de Vigo, que tinha partido rumo ao Porto após ter recebido um telegrama que o informava da detenção das duas mulheres, pediu ao comissário da polícia portuguesa que lhe entregasse Elisa e Marcela. Não teve sorte. Este negou-se a fazê-lo até que recebesse uma ordem de extradição o Governo português, que nunca chegou a aparecer. Salvador Millan regressou a Espanha dois dias depois de mãos a abanar.

Como se soube que Mario (ou Pepe) era afinal Elisa

As duas mulheres viveram pacatamente como marido e mulher na cidade do Porto durante cerca de dois meses. Marcela terá sido a primeira a chegar, a 27 de junho de 1901. Depois de regularizar a sua situação no Consulado de Espanha, ter-se-á instalado numa pousada, A Mesquita, que ficava na Rua do Bonjardim, mudando-se depois para a hospedaria de D. Josepha Lopes, nos números 115 a 116 da Praça da Batalha. Foi aí que arranjou o primeiro emprego, ajudando Josepha nas lides domésticas.

Elisa, que chegou depois ao Porto, começou por trabalhar numa alfaiataria pertencente a Ramon V. Lopes, na Rua da Batalha, onde ganhava 160 reis por dia. Considerando que o salário era baixo, terá abandonado o emprego pouco tempo depois. Os seus tempos livres começaram a ser passados nos cafés portuenses na companhia dos toureiros espanhóis na cidade e que a conheciam por Pepe. Um deles, Raphael Palano, garantiu ao Jornal de Notícias que há muito que Elisa tinha o hábito de se vestir com roupas de homem. O espanhol tinha-a conhecido há mais de três anos à porta de um café na Calle d’Alcolá, em Madrid, onde se encontrava na companhia de outros homens. Reconheceu-a assim que se cruzou com ela no Porto.

Os toureiros espanhóis apresentaram-na a “diversos indivíduos, que se comprometeram a arranjar colocação em qualquer escritório em virtude da sua bela caligrafia”, relatou o Jornal de Notícias. Uma dessas pessoas foi o co-proprietário do Café Lisbonense, José Nogueira, a quem Elisa pediu colocação por intermédio do toureiro Llaverito. Apesar de sensibilizado pelas dificuldades por que Elisa passava (a espanhola costumava vender “lenços com iniciais e monogramas primorosamente bordados a seda”, que dizia “ser trabalho da sua esposa”), Nogueira disse-lhe que não tinha trabalho para ela. “Se se tratasse de uma mulher, eu mesmo lhe dava arrumo para tratar das roupas brancas do café e do restaurante”, admitiu-lhe. A espanhola disse que isso também era conveniente, e que a sua mulher podia tratar disso. “Ficou então combinado que Marcela aparecesse ao outro dia para encetar as suas novas funções e o próprio sr. Nogueira é o primeiro a confessar que nunca viu uma mulher mais expedita na faina caseira.” Marcela começou a trabalhar no Café Lisbonense a 14 de agosto de 1901.

Enquanto Marcela tratava da roupa e Elisa passava as tardes nos cafés, as autoridades espanholas continuavam as buscas. Desconfiando que as duas pudessem tentar fugir para o Porto e que daí apanhassem um navio para o Brasil, o capitão da Guardia Civil de Vigo pediu aos agentes da polícia repressiva de emigração clandestina capturassem as duas espanholas se elas aparecessem em Portugal. O círculo ia-se fechando, e não tardou até que a verdadeira história de Mario e Marcela fosse conhecida.

“Os dois indivíduos citados, não podendo reter o que tinham ouvido, foram prevenir a polícia na pessoa do guarda n.º 119, e a Generosa o cabo (…). Como não quero tristes honras que não me pertencem, peço-lhe a fineza de assim restabelecer a verdade.” 
Ramon V. Lopes, sapateiro, em carta ao “Jornal de Notícias”

Os relatos são contraditórios, mas parece que o verdadeiro sexo de Mario terá sido revelado por galegos residentes no Porto, nomeadamente por uma rapariga chamada Generosa, que era casada com um sapateiro da Rua do Cativo, Manoel, com quem Elisa, aparentemente, se dava. Segundo relatou o Jornal de Notícias a 18 de agosto de 1901, tudo terá começado quando “Elisa, ou Pepe, disse a alguém que a tal Generosa nada devia à Providência em formosura”. O insulto acabou por chegar aos ouvidos da galega que, furiosa, garantiu que haveria de por tudo em pratos limpos com o Pepe. “Ora, há dias estava a Generosa a conversar com uma rapariga aragonesa, que era visita em casa do alfaiate Ramon, e passando a Elisa, a aragonesa que a viu, afirmou à Generosa que ela não era homem, mas sim mulher, pois a conhecia muito bem.”

Generosa não podia ter ficado mais satisfeita com o que ouviu. Ainda determinada a vingar-se de Pepe, decidiu denunciá-lo à polícia. “E assim o fez, contado tudo ao guarda n.º 119 da Judiciária”, que, acompanhado pelo cabo Lebreiro, começou a seguir Elisa e Marcela, “vindo a concluir que a Elisa podia ser uma Pepa mas nunca um Pepe”. Numa outra versão, contada ao Jornal de Notícias por Ramon, teria sido o sapateiro Manoel, acompanhado por outro Manoel, que fornecia comida ao alfaiate e que tinha um estabelecimento no n.º 40 da Rua da Batalha, a denunciar Elisa à polícia. Os dois homens teriam informado o guarda n.º 199 , Jerónimo Augusto Antunes, depois de terem ouvir a história da boca da aragonesa. A galega Generosa teria alertado o cabo Labreiro, “sendo esses dois agentes que realizaram a captura das duas denunciadas”, escreveu Ramon, numa carta publicada no diário portuense a 23 de agosto de 1901.

O relato do sapateiro foi contrariado na edição seguinte do jornal por Manoel Mendez Leal, um dos Manoeis envolvidos no caso. “Nenhum deles deseja a responsabilidade da denúncia de Elisa e Marcela”, explicou o Jornal de Notícias, sem referir, porém, de que Manoel se trataria. “E nós não queremos perder tempo com casos de consciência alheia. Portanto, pomos ponto no assunto.”

Um “caso sensacional”: a prisão das duas espanholas

Na manhã de 16 de agosto de 1901, o cabo Labreiro, “que ultimamente” tinha ficado classificado “no concurso para chefe”, acompanhado pelo guarda Antunes, deslocou-se até à hospedaria de D. Josepha e pediu para falar com Mario. Quando este apareceu, “usava chapéu branco e ademanes de espanhol, como os toureiros, botas de lona amarelo-escuro, quase novas e muito catitas”. Depois de ver os seus documentos, e também os da mulher, o cabo da Judiciária pediu-lhe que o acompanhasse ao Comissariado. Mario recusou-se argumentando que não tinha nada para fazer na polícia — tinha os papéis em dia. Labreiro explicou-lhe então que “havia desconfianças de que ele era ela”, relatou o jornal lisboeta O Século no dia seguinte, no artigo “Caso sensacional. Prisão de duas espanholas”.

Determinada a não deixar cair o disfarce, Elisa tentou convencer o polícia da Judiciária de que estava errado, mostrando-lhe a certidão de batismo obtida na Corunha. Labreiro não se deixou enganar. Segundo O Século, “respondeu ser-lhe fácil provar o que dizia, pois não havia motivo de receio de um homem se mostrar a outro homem. Trocadas estas palavras, declarou ela ser efetivamente mulher e pediu que não a perseguissem, pois que o seu disfarce não encobria intenção criminosa”.

Enquanto isso, o 119 tinha ido ao Café Lisbonense buscar a mulher de Mario, que estava ali a trabalhava desde dia 14. “Está aqui uma mulher espanhola chamada Marcela?”, perguntou Jerónimo Augusto Antunes ao co-proprietário do estabelecimento. “Está, é a que trata das roupas brancas da casa”, respondeu-lhe José Nogueira. “Preciso de lhe falar.” O sr. Nogueira foi então chamar a mulher, sem que tivesse conseguido perceber junto do guarda o que é que se passava. Quando lhe disse que “um polícia lhe desejava falar, a pobre mulher empalideceu horrivelmente. Mais tarde é que ele soube o que ocorria e ainda hoje se espanta da ingenuidade com que tomou por homem a valer a Elisa. O caso não é para menos, confesse-se”, comentou o Jornal de Notícias, que, apesar dos comentários jocosos, típicos da escrita jornalística da época, se colocou sempre do lado das duas mulheres.

Primeira página do Jornal de Notícias de 17 de agosto de 1901, onde se reproduziu o retrato do casal tirado no dia do seu casamento e dado a conhecer pelo galego La Voz de Galicia

Elisa, de 32 anos, e Marcela, de 29 anos, foram levado para a prisão do Aljube, uma extensão da cadeia lisboeta na cidade do Porto, localizada onde fica atualmente o Museu Militar, na Rua do Heroísmo. Ficaram na ala destinada às mulheres, mas em celas separadas “por causa da pasmaceira”. A polícia estava desconfiada de que os documentos de Elisa (em nome de Mario José ou José Mario, conforme as fontes) tinham sido forjados a partir de outros, fornecidos por um vendedor ambulante. Além da documentação falsa, pesava sobre a espanhola o crime de “andar vestida de homem”, explicou o jornal O Século. As autoridades tencionam ainda nesse dia obter as primeiras declarações das detidas, mas o comissário geral da polícia, Adriano de Morais Carvalho, decidiu adiar a audiência para o dia seguinte.

Elisa ainda pediu aos repórteres que “não fizessem grande alarido do caso por causa da família de Marcela, um dos parentes da qual diz ser o preceptor do jovem rei Afonso XIII” de Espanha. De pouco lhe valeu: “O caso é tão extraordinário, tão único, que não é possível calá-lo e deixar de descrevê-lo com todos os seus interesses pormenores”, admitiu o Jornal de Notícias. A edição de 17 de agosto do diário portuense esgotou. O seu retrato com Marcela apareceu em todos os jornais no dia seguinte.

Duas “desgraçadas” mais dignas de “lástima do que do rigor implacável das leis”

A notícia de que as mulheres que se tinham casado na Corunha estavam detidas no Aljube espalhou-se rapidamente pelas ruas do Porto. Uma multidão de curiosos juntou-se em frente à cadeia e não arredou pé durante todo o dia. Elisa e Marcela, que deviam ter sido ouvidas nesse sábado pelo comissário geral da polícia, acabaram por permanecer na prisão. Adriano de Morais Carvalho achou prudente adiar a sessão para o dia seguinte, 18 de agosto, uma segunda-feira.

Percebendo finalmente que Elisa e Marcela não apareceriam naquele dia no Comissariado Geral, os repórteres do Jornal de Notícias decidiram descer da Batalha e encaminhar-se para o Aljube. Foram encontrar as duas mulheres sentadas, a “certa distância uma da outra”, em cadeiras de palhinha, na capela. O espaço, sujo, tinha “um simulacro de altar, pintado a tinta de óleo”. Nas paredes, havia pequenas prateleiras, onde estavam duas ou três imagens de santos, uma delas sem cabeça. Tinham passado a noite numa cela daquele piso, mas nenhuma parecia ter dormido. Estavam pálidas e tinham “profundas olheiras”. Vestiam ainda as mesmas roupas com que tinham sido detidas: Marcela, de blusa clara e saia preta, tinha a cabeça coberta por uma manta escura; Elisa estava de casaco e colete preto, calças aos quadrados e calçava sapatos amarelos; da bolso da camisa saía-lhe um lenço de seda branca, preso por um alfinete rematado com uma pequena conta de vidro preto.

A entrada dos jornalistas causou inquietação. “Marcela fitou-nos duma maneira resignada, como uma criatura disposta a todas as surpresas”, relatou o Jornal de Notícias. Elisa mostrou-se desconfiada, mas os repórteres não se deixaram intimidar. Meteram conversa, e procuraram esclarecer a história do “matrimónio fingido” que fazia manchete nos jornais. Foi esta última que acabou por explicar os motivos que levaram ao casamento na Corunha: “Uma mulher é constantemente vítima de perseguições. A maledicência também não descansa um momento, então dei esse passo para que ela tivesse ao lado um homem que a defendesse”, disse, repetindo a história que já tinha contado à polícia por altura da sua detenção.

“Uma mulher é constantemente vítima de perseguições. A maledicência também não descansa um momento, então dei esse passo para que ela tivesse ao lado um homem que a defendesse.”
Elisa Sánchez ao "Jornal de Notícias"

Segundo Marcela, Elisa seria hermafrodita. “Foi essa circunstância que nos decidiu a contrair o casamento, porque a lei admite matrimónios nessas condições”, explicou. Um dos jornalistas mostrou-se incrédulo, questionando como é que “no colégio espanhol” haveria “algum artigo que” sancionasse “semelhante sacrilégio”. “Se não têm outra defesa para as autoridades judiciais do seu país, então estão arranjadas”, exclamou. Marcela tentou insistir, mas o repórter não se deixou convencer. De facto, mais tarde, depois de realizados vários exames, viria a comprovar-se que Elisa não era hermafrodita como dizia ser, mas mulher. “Desgraças! Coisas que se metem na cabeça das mulheres e que fazem com aquelas não raciocinem”, acabou por admitir Marcela. “A verdade é que sou uma desgraçada. Fui descendo, descendo, até cair na lama! O que mais me custa é a vergonha que nos espera na Corunha, porque sou conhecida por toda a gente, desde um extremo ao outro… Sou de boa família, meu pai era oficial superior da Guardia Civil.”

A verdade talvez fosse um pouco mais complexa. No número anterior, o Jornal de Notícias deu a conhecer uma outra versão do caso de Elisa e Marcela: esta última estaria grávida, e teria sido essa gravidez que teria motivado o casamento. “Será isto a verdade?”, questionava o diário portuense a 17 de agosto. “Não o sabemos. O que nos consta é que parece que a Marcela se acha, efetivamente, ao estado que aludimos. O que é evidente no fundo de toda esta história é que um grande e caloroso afeto as liga uma à outra.” As duas mulheres conheciam-se há 12 anos tinham vivido “sempre” juntas. Quando lhes foi colocada a hipótese de aguardarem separadas pelo julgamento, empalideceram. Marcela declarou: “Separarmo-nos? Antes o ataúde!”.

Elisa Sánchez e Marcela Ibeas foram consecutivamente interrogadas nos dias seguintes. Transformadas em vedetas pelos jornais nacionais, eram seguidas todas as manhãs até ao Comissariado Geral por uma multidão. O número de pessoas que começou a reunir-se diariamente em frente à cadeia era de tal forma elevado que, a 21 de agosto, a polícia mandou vir um carro para as levar. “Ainda assim a multidão seguiu esbaforidamente o carro, aumentando um enorme grupo, que também se encontrava à porta do Governo Civil e que receberam com chocarreiras chufas as tristes protagonistas da comédia do casamento simulado que, por este alvoroço numa terra estrangeira, calculam a receção que as espera no seu país, quando para ali forem enviadas”, escreveu o Jornal de Notícias. Insultada e humilhada, ao chegar ao Comissariado, Elisa implorou que a deixassem mudar de roupa. Vestia ainda roupa de homem.

As duas mulheres foram ouvidas em tribunal a 21 de agosto. Elisa foi acusada de “usar fatos impróprios do seu sexo, de estar indocumentada e de ter feito uso dum certificado de nacionalidade passado em nome de Manoel Alberto Martinez, documento que se verificou estar viciado”. Apesar de inicialmente ter insistido que todos os seus papéis eram legais, Elisa acabou por admitir que a cédula de identidade que tinha em sua posse não era sua. Às autoridades, e também aos jornalistas do Jornal de Notícia, explicou que a tinha encontrado por mero acaso acaso, quando durante um passeio, uma rajada de vento fez com que caísse aos seus pés. “Levantou-o do chão e vendo a natureza do documento, meteu-o na algibeira”, relatou o jornal, comentando: “Uma verdadeira história da carochinha!”. Marcela foi considerada cúmplice “no disfarce da companheira, não ignorando que se tratava de mulher”.

Elisa e Marcela estiveram presas na antiga Cadeia da Relação do Porto, no Campo dos Mártires da Pátria

O juiz informou-as de que os delitos de que eram acusadas admitiam fiança, e José Nogueira, o co-proprietário do Café Lisbonense que tinha dado emprego a Marcela, prontificou-se a pagar as despesas. O drama de Elisa e Marcela parecia estar prestes a chegar ao fim, mas a alegria das duas mulheres desapareceu rapidamente, com a entrada do agente Machado, da polícia repressiva da emigração. Machado leu em voz alta um telegrama enviado de Pontevedra, no qual se pedia que, caso fossem libertadas, fossem entregues ao cônsul espanhol ou colocadas na fronteira. Elisa estava a ser alvo de um processo judicial em Espanha. As duas mulheres desataram num pranto, e o juiz declarou que teriam ainda de passar oito dias na prisão.

No final da sessão, foram levadas para a Cadeia da Relação do Porto — a mesma prisão onde o escritor Camilo Castelo Branco tinha cumprido pena por um caso amoroso e escrito Amor de Perdição, em 1861 — para cumprirem a pena. À porta do tribunal, no Largo de S. João Nova, estava ainda um pequeno aglomerado de pessoas. Os insultos repetiram-se mais uma vez, e as duas mulheres precisaram da ajuda dos três polícias que a tinham acompanhado para conseguirem entrar no carro.

A situação em que se encontravam era precária. Marcela já tinha sido obrigada a vender “vários objetos para prover a sustentação das duas”. Em conversa com o Jornal de Notícias, lamentou a sua sorte: “Quando eu agora principiava a obter com o meu trabalho os necessários meios de subsistência, vem esta fatalidade torturar-me para sempre a vida! Quem me dera morrer!”. Elisa não estava mais animada. Tinha medo de que, uma vez em Espanha, as autoridades a condenassem a uma pena pesada por ter enganado um padre e que fosse maltratada quando chegasse à Galiza. “Quando há dias a entrevistamos no Aljube e ela respondeu abruptamente às nossas perguntas (…), pareceu-nos que era essa a única preocupação da pobre que, afinal, é mais digna de lástima do que do rigor implacável das leis”, comentou o diário portuense.

“Quando eu agora principiava a obter com o meu trabalho os necessários meios de subsistência, vem esta fatalidade torturar-me para sempre a vida! Quem me dera morrer!”
Marcela Ibeas ao "Jornal de Notícias"

Os jornalistas do Jornal de Notícias não eram os únicos que se tinham deixado comover com a história de Elisa e Marcela. Numa altura em que a homossexualidade era encarada com tanto preconceito, os moradores da cidade do Porto não pensaram duas vezes e colocaram-se imediatamente do lado das duas mulheres. A pouco e pouco, começaram a surgir várias iniciativas populares que tinham por objetivo melhorar as suas condições de vida na cadeia. José Rodrigues, dono de uma relojoaria e ourivesaria na Rua do Bonjardim, foi um dos primeiros a agir. Rodrigues, que era fotógrafo amador, tinha tirado um retrato das espanholas quando estas estavam no Aljube. Decidiu colocar a fotografia à venda e doar-lhes todos os lucros. O Jornal de Notícias também começou a aceitar donativos, que diariamente fazia chegar às duas detidas. Estes surgiam na redação muitas vezes acompanhados por cartas de apoio. Uma delas foi escrita por D. Zulmira Marques, que vivia na Régua e que enviou mil réis:

“Sr. redator do Jornal de Notícias,

Tendo lido no seu popular e humanitário jornal que as duas espanholas presas na cadeia dessa cidade carecem de meios de subsistência e concordando plenamente com a opinião de v. em não as julgar mais dignas de ‘lástima do que severidade’, julgando-as umas desgraçadas como muitas outras que por ai vagueiam, sem darem margem a que a polícia as torne assim aparatosamente populares — calculando o quanto lhes será negra e triste a forma por que pagam uma leviandade de mulheres sem tino, junto aqui mil réis pedindo a v. a fineza de os fazer entregar às infelizes Elisa e Marcela”.

Uma tabacaria na Rua Chã também tomou a iniciativa de aceitar doações, assim como o Café Lisbonense, onde foi também iniciada uma recolha de assinaturas para “um pedido de indulto a favor das duas desgraçadas, que vai ser enviado ao Ministro da Justiça do reino vizinho”. Esta reuniu cerca de 500, de portugueses mas também de espanhóis residentes no Porto. Houve, contudo, quem se tentasse aproveitar da onda de solidariedade portuense. A 24 de agosto, o Jornal de Notícias, que acompanhou ao pormenor todo o caso, deu conta do surgimento de “um ou dois intrujões que, batendo às portas”, pediam “esmola para as presas” para depois ficarem com o dinheiro. “Quem os denunciar à polícia pratica uma ação meritória, que muito aplaudiremos. Aí fica o aviso para inutilizar as manobras desses cavalheiros de indústria.”

Passados oito dias, e não havendo razões para as manter detidas ou para as extraditar, uma vez que estavam apenas em causa pequenos delitos, Elisa e Marcela foram finalmente libertadas. A ordem foi emitida pelo juiz do 1.º distrito criminal. Uma multidão seguiu a saída das duas mulheres da cadeia da Relação, não com insultos, mas com um silêncio solene. “Muitas dúzias de pessoas as viram meter no carro, mas silenciosamente, uma nota de piedade imprensa nas fisionomias”, relatou o Jornal de Notícias. Depois de o veículo arrancar, o “numeroso agrupamento explodiu num caloroso viva às duas mulheres”.

Uma das poucas fotografias que se conhecem de Elisa e Marcela, tirada durante a sua estadia em Portugal

Na noite de 30 de agosto, Elisa e Marcela, acompanhadas por José Nogueira, deslocaram-se até à sede do Jornal de Notícias para agradeceram toda a ajuda prestada durante o tempo que estiveram detidas. Numa carta que deixaram, dirigida ao diretor do diário e assinada em nome das duas, admitiram estar muito gratas pela “atenção” e cuidados de que foram alvo durante o tempo na prisão:

“Sinto que a nossa pouca expressão é fria e pouco demonstrativa do nosso sincero afeto e eterno agradecimento pelo comportamento e atenção que as nossas pequenas e insignificantes pessoas não merecem; por isso lhe pedimos que acomode nas páginas do jornal que tão dignamente dirige a mais sincera expressão do nosso eterno agradecimento em relação a si, às autoridades e aos corpos sociais, assim como aos proprietários do Café Lisbonense, em especial ao Sr. Nogueira, que, como a imprensa sabe, procurou ajudar a estas pobres desgraçadas, as quais careciam de todo o apoio por se encontrarem fora de seu país, e que fora dele encontraram o apoio das autoridades, dos diretores dos estabelecimentos que por desgraça tivemos de frequentar e do povo em geral, tanto espanhol como português.

Espero, apreciável amigo, que esta carta mal redigida manifeste a nossa imensa gratidão para com todos os indivíduos, incluindo a D. Rodrigues, que hoje nos fez entregar 17 mil réis, resultantes das fotografias”.

Elisa Sánchez e Marcela Ibeas passaram os primeiros tempos em casa do co-proprietário do Café Lisbonense, que se disponibilizou para as receber por não terem para onde ir. Mais tarde, mudaram-se para o Hotel Gibraltar, na Rua da Batalha. Viviam de “costuras, bordados e outras prendas manuais”, segundo O Primeiro de Janeiro, e o tempo foi passando com grande tranquilidade. Até que, no início do ano seguinte, o nome das duas espanholas voltou a aparecer nos jornais. Em Espanha, o La Voz de Galicia noticiou a 11 de janeiro de 1902, citando o El Imparcial: “As célebres espanholas Marcela e Elisa que casaram na Corunha, refugiando-se depois no Porto, continuam a viver juntas. Há poucos dias, Marcela teve uma menina”.

A filha de Marcela nasceu a 8 de janeiro de 1902. Dizia-se que o pai era um jovem de Dumbría, a localidade onde tinha dado aulas antes de fugir para o Porto, mas isso nunca se veio a confirmar. A 12 de janeiro, o La Voz de Galicia referiu “uma história de amor em que Marcela foi a heroína”, mas não avançou com mais pormenores além daqueles que já se conheciam — que Elisa, para livrar a amiga da vergonha e do escândalo, se tinha oferecido para se casar com ela. “Ninguém estranharia, acreditando que se tratava de um homem, que Marcela, sua esposa, tivesse um filho. Assim o fizeram, e não foi há muito tempo, enquanto as duas comiam em casa do co-proprietário do Café Lisbonense, que Elisa-Mario disse: ‘Pronto, seremos pais. A minha mulher está grávida’”, relatou o jornal galego.

O nascimento da criança veio confirmar o boato, dado a conhecer pelo Jornal de Notícias meses antes, de que Marcela Ibeas estava grávida. Seria a história das duas espanholas o que elas realmente diziam ser, uma tentativa de esconder um facto embaraçoso? Narciso de Gabriel, o maior especialista no caso, cujo trabalho exaustivo de investigação inspirou o filme de Isabel Coixet, não coloca de lado esta hipótese. Contudo, em entrevista ao La Voz de Galicia este ano, o professor catedrático de História sugeriu uma outra hipótese — a de que a gravidez de Marcela poderá ter sido deliberada e “pensada conjuntamente pelas duas mulheres, que se calhar queriam ter descendentes”. Durante as suas pesquisas, Gabriel tentou entrar em contacto com uma família de Dumbría a que o tal jovem poderia pertencer. Ninguém o atendeu. “Não querem falar do assunto”, admitiu.

A partida para a Argentina

No verão de 1902, Elisa e Marcela voltaram a partir. Talvez motivadas pelo escândalo que o nascimento de uma criança tinha provocado no Porto, as duas mulheres atravessaram o Atlântico em direção à Argentina. Nunca mais voltaram à Península Ibérica. A primeira chegou a Buenos Aires a 15 de junho, segundo dados do Centro de Estudos Migratorios Latinoamericanos, e terá tomado o nome de María. A segunda de Carmen. Depois da viagem, o rumo das duas mulheres perdeu-se. O que se sabe hoje da vida de Elisa e Marcela do outro lado do Atlântico é sobretudo fruto da especulação. Os dados são poucos. Narciso de Gabriel relatou em Elisa y Marcela. Más allá de los hombres que as duas foram vistas, pela última vez, por volta de 1904, dois anos depois de terem chegado à capital argentina.

Segundo Gabriel, que passou mais de 15 anos à procura de informações em arquivos, bibliotecas e consulados, Elisa Sánchez ter-se-á casado com um comerciante dinamarquês, Christian Jensen, a 30 de setembro de 1903. Ela tinha 40 anos e ele 65. O casamento não terá durado muito, uma vez que Jensen terá descoberto o que tinha acontecido em Espanha em 1901 e a terá denunciado ao juiz da união conjugal. Este terá ordenado um exame para determinar se Elisa (ou melhor, María) era homem ou mulher. O marido teria dúvidas sobre o seu sexo, que mais uma vez não se confirmaram — três médicos concluíram, como já tinha acontecido antes, que Elisa era uma mulher. O casamento foi anulado cerca de um ano depois.

Depois disso, algumas fontes referem que ter-se-á matado, atirando-se ao mar em Veracruz, no México, em 1909. Foi isso que relatou uma edição de 1909 do Nuevo Mundo de Madrid, que garantiu, por essa data, que o corpo encontrado no porto mexicano era o de Elisa. Contudo, Narciso de Gabriel, que entrou em contacto com o consulado de Veracruz e com o Ministério dos Negócios Estrangeiros, não conseguiu encontrar nenhum documento que provasse que o que foi escrito em Madrid era verdade. Não há certezas de nada. Outras fontes referem que terá vivido até 1940 e que nunca terá saído da Argentina. Terá morrido de cancro.

Sobre Marcela Ibeas nada se sabia além de que teria servido como criada — até agora. A publicação de uma nova edição do livro de Gabriel em Espanha com o título Elisa y Marcela. Amigas y amantes, em maio deste ano, permitiu avançar com novas hipóteses para o que terá acontecido à espanhola e à sua filha depois de ambas terem chegado à Argentina.

Uma bisneta chamada Norma

Foi quando viu a fotografia de Elisa e Marcela, que tem sido usado para ilustrar a maioria dos artigos sobre a estreia do filme produzido pela Netflix na imprensa internacional, que Norma Graciela Moure decidiu entrar em contacto com Narciso de Gabriel. “Quando vi a fotografia da minha bisavó e cliquei na notícia, não sei descrever o que senti. Fiquei gelada. Não sabia dessa história”, recordou ao La Voz de Galicia. A argentina está convencida de que Marcela é a mãe da sua avó, María Enriqueta Sánchez, e que esta seria a filha que tinha dado a luz no Porto, em janeiro de 1902, antes de partir para Buenos Aires no verão desse mesmo ano. “Quando me envia as imagens que conservava em sua vasa, em Buenos Aires, fiquei surpreendido”, admitiu o autor ao La Voz de Galicia. “Era uma fotografia do pai de Marcela com a sua avó, feita por José Sellier na Corunha, e um retrato de Marcela, sozinha, do corunhês Manuel López Cao, que tinha o seu estúdio na Calle de San Andrés, muito perto do de Sellier”.

Foi José Sellier que tirou o famoso retrato do casal no dia do seu casamento e foi na Calle de San Andrés, na Corunha, que as duas mulheres passaram os primeiros dias de casadas. Além desta fotografia, Gabriel admitiu conhecer apenas uma outra, tirada no Porto, antes da partida do casal para Buenos Aires, sendo que haveria pelo menos mais duas — a que foi tirada na prisão do Aljube por José Rodrigues, relojoeiro e fotógrafo amador portuense, e um retrato de Elisa a olhar para o Porto através das grades da prisão. De Marcela e da sua filha não se conhece nenhuma imagem.

Norma Graciela Moure, que vive em Buenos Aires, a mesma cidade para onde as duas espanholas fugiram em 1902, contou ao La Voz de Galicia que não chegou a conhecer a avó. María Enriqueta Sánchez terá chegado à capital argentina, proveniente de Cádiz, a 24 de setembro de 1904, de acordo com o registo das autoridades locais. “A minha mãe contou-me que a minha bisavó tinha nascido em Castela-a-Velha [região que já não existe com este nome], que estava a ser procurada em Espanha e que teve de fugir com a minha avó, Enriqueta, para a Argentina devido a essa situação”, relatou. De acordo com o livro de Narciso de Gabriel, por altura da sua fuga para a capital argentina, Marcela e Elisa ainda estariam a ser perseguida pela Justiça espanhola.

Norma só percebeu que havia alguma coisa de errado com a história da chegada da sua bisavó e avó à Argentina quando decidiu pedir a nacionalidade espanhola e os dados que recebeu da Junta da Galiza não corresponderam aos da cédula de nascimento da sua mãe. Quando questionou uma tia, que tinha avançado com o mesmo processo, sobre isso, esta disse-lhe que os seus bisavós — que na cédula de María Enriqueta eram Marcela Carmen Gracia e Adolfo Sánchez — tinham sido obrigados a mudar de nome quando fugiram para Buenos Aires. “Como esta versão não me convenceu, não fiz o pedido de nacionalidade”, confessou ao La Voz de Galicia. Como apontou o mesmo jornal, o curioso é que o apelido da avó de Norma seja Sánchez, o mesmo de Elisa. “Em casa sempre se referiram à avó Enriqueta como Sánchez Loriga, mas nos documentos só aparece o apelido Sánchez”, contou ainda Norma. O último apelido de Elisa era Loriga.

Apesar das evidências, não é possível afirmar com toda a certeza que a bisavó de Norma era de facto Marcela Ibeas. “Faltam mais documentos”, afirmou Narciso de Gabriel. A história não deixa, contudo, de se apresentar como a prova mais fiável que o historiador conseguiu encontrar da vida de Marcela do outro lado do Atlântico. Talvez futuras pesquisas venham a revelar aquilo por que Gabriel e os seus leitores há tanto anseiam saber. Passados 118 anos do “casamento sem homem”, a história de Elisa e Marcela parece estar longe de estar encerrada.

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