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HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

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Elvina e João. A muçulmana e o seminarista que encontraram o amor em Fátima

Elvina é da Crimeia e foi muçulmana. João é português e foi seminarista. Fátima juntou-os e eles retribuíram: são os donos da pastelaria de onde saem bolos em forma de (sagrado) coração.

Num dia bom, como um 13 de maio, a Casa dos Pastéis de Fátima vende no mínimo três mil pastéis. Um 13 de maio com a presença do Papa Francisco deverá ser ainda melhor, prevê João Dias, de 50 anos, enquanto tira mais uma fornada dos famosos pastéis de nata em forma de coração, que já são um ícone da cidade de Fátima. Por precaução, a casa, discretamente situada no piso subterrâneo do Espaço Fatimae, um pequeno centro comercial junto ao santuário onde abundam lojas de artigos religiosos, tem 17 mil formas prontas a dar resposta à enchente que se espera nos próximos dias.

Ao contrário do que a pacatez do local parece sugerir, a Casa dos Pastéis de Fátima tem uma história surpreendente. Ou melhor, duas. O estabelecimento é o resultado do cruzamento de duas vidas bem distintas, a de João Dias e a de Elvina Kamalyetdinova, sua mulher e dona da Casa dos Pastéis. João e Elvina conheceram-se em 2004. Ele, um ex-seminarista que se tinha perdido em excessos pouo católicos e dívidas, ela, uma tártara muçulmana da Crimeia, com duas filhas nos braços.

João Dias conhece a fundo o segredo dos Pastéis de Fátima e ajuda a mulher, Elvina, na fábrica dos bolos (Fotografia: HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR)

HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Elvina, que nasceu e cresceu educada na religião muçulmana, garante que foi Deus quem a juntou a João. E João, que abandonara o seminário por causa do celibato, acredita que nada nesta história é feito de coincidências. O que os uniu? Fátima e o Sagrado Coração de Jesus. João aponta para as duas telas enormes que cobrem as paredes da pastelaria: “Aqueles dois [Nossa Senhora e o Sagrado Coração de Jesus] são a administração, eles é que mandam aqui dentro. Nós somos só os seus funcionários”.

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Elvina: “Se as russas e as ucranianas podiam ter independência, eu também podia”

Só ela e João sabem o segredo dos pastéis de Fátima (que não está nos ingredientes, mas sim nas quantidades e nas pesagens, garantem). Mas se João sempre sonhou ser padeiro e pasteleiro — nasceu numa família de padeiros e diz que não se sabe se não foi “feito na amassadeira” — Elvina nada sabia de pastelaria até chegar a Portugal, em 2001.

Nascida no Uzbequistão em 1982, Elvina Kamalyetdinova não se diz uzbeque, ucraniana ou russa. É tártara da Crimeia, um povo islâmico nativo daquela península que, no final da II Guerra Mundial, foi deportado pela União Soviética devido a uma alegada colaboração com os nazis. Grande parte dos tártaros foram levados para o Uzbequistão, por ser uma república soviética de maioria muçulmana, em grandes comboios de transporte de cargas sem comida ou bebida e apenas com a roupa que tinham no corpo. Perto de metade dos tártaros morreram ainda antes de chegarem ao destino. Os avós de Elvina não: chegaram ao Uzbequistão, onde se estabeleceram e tiveram filhos. “Foi lá que eu nasci também”, conta ao Observador a dona da Casa dos Pastéis, insistindo na ideia de que “de sangue” é uma tártara. “E isso ninguém me tira.”

Eu estou a contar uma realidade que um ucraniano da minha idade não conta, porque um ucraniano ou russo que vivia na Crimeia viveu sempre num apartamento, com tudo, com luz, com água. Nós é que largámos tudo no Uzbequistão para vir viver para a terra, porque a terra significava muito, porque era pátria.
Elvina Kamalyetdinova

Em 1991, com a dissolução da União Soviética, os tártaros puderam finalmente voltar à sua pátria, a Crimeia, e às suas casas, que encontraram ocupadas pelos ucranianos e pelos russos. “Quando nós voltámos para a Crimeia, voltámos para os campos de milho. O meu pai construiu uma casa, que foi feita de terra e feno, e não tinha chão. Era a terra batida e por cima logo direto o linóleo, que fazia de chão”, recorda. Durante três anos, Elvina viveu sem luz e sem água potável numa casa com dois quartos que não tinham mais de quatro metros quadrados cada. Um para o seu pai, onde era também a cozinha e a sala, e outro para si, a sua mãe e a sua irmã.

“Eu estou a contar uma realidade que um ucraniano da minha idade não conta, porque um ucraniano ou russo que vivia na Crimeia viveu sempre num apartamento, com tudo, com luz, com água. Nós é que largámos tudo no Uzbequistão para vir viver para a terra, porque a terra significava muito, porque era pátria”, conta Elvina, que chegou à Crimeia com 10 anos.

Mas, para Elvina, voltar para a pátria significou perder tudo. “No Uzbequistão vivia num apartamento, tinha tudo em casa, não passava fome”, recorda. “Que tipo de pátria é esta que nos trata tão mal? Não deram trabalho aos meus pais, trataram-me mal na escola porque não tinho roupas, porque se calhar não tomava banho com tanta frequência como eles, porque eu até era melhor aluna do que eles mas eles não gostavam disso. Eu gosto muito da Crimeia, mas não gosto de lembrar como fomos recebidos.”

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Aos 19 anos, Elvina aproveitou uma oportunidade e juntou-se a uns amigos ucranianos que iam viajar para vir para Portugal. “Queria ganhar algum dinheiro, porque queria um carro e queria a minha independência”, conta. “É que eu não queria que chegasse um homem e que mandasse em mim. Se as russas e as ucranianas podiam ter isso, eu também podia. O que me podia acontecer era chegar um rapaz com a mãe, com o pai, com as tias e as primas, trazia um grande dote, e dizia assim para a minha mãe: ‘A sua filha vai casar comigo’. E a pessoa não podia dizer nem ai nem ui”, acrescenta, num português perfeito.

O problema, explica, era da religião. “Eu sentia as restrições à liberdade das mulheres. Uma mulher é sempre uma mulher e isso tem a ver com a religião. As mulheres não podiam ir à mesquita, só os homens. As mulheres, na minha cultura, rezam sempre em casa, não podem fazer o Ramadão quando estão “sujas”, e isso quer dizer quando estão com a menstruação. São mulheres impuras. Desde quando é que a minha natureza faz de mim impura? Significava que tudo o que eu pedia a Deus não era atendido, porque Deus não aceita nada de uma pessoa impura”, explica.

Em 2001, chegou a Portugal. “Vim para o concelho de Ourém, que era onde esses meus amigos vinham trabalhar, e nunca mais de cá saí”, detalha. Durante os primeiros tempos, trabalhou numa padaria como empregada de limpeza, ainda sem falar ou entender a língua. “Houve uma senhora que me ensinou a falar português, porque falava imenso, estava sempre a falar. Ao fim de um mês já entendia o que ela dizia e ao fim de um ano já falava português”, lembra.

As esperanças que trazia da Crimeia, porém, não pareciam corresponder à realidade nos primeiros tempos em Ourém. Casou-se pelo civil e em 2002 tiveram a primeira filha, Catarina. Em 2004, quando engravidou pela segunda vez, a sua vida levou um novo revés. “Ele abandonou-me por completo. Fiquei com a Catarina pequenina e grávida da Sofia e ele desapareceu até hoje. Já passaram mais de 10 anos e ele está desaparecido em combate”, recorda com um riso que só lhe é possível pela distância temporal.

As mulheres, na minha cultura, rezam sempre em casa, não podem fazer o Ramadão quando estão "sujas", e isso quer dizer quando estão com a menstruação. São mulheres impuras. Desde quando é que a minha natureza faz de mim impura?
Elvina Kamalyetdinova

Foi também o nascimento da primeira filha que a levou à conversão ao catolicismo. A senhora que lhe ensinou a falar português “era uma mulher de muita fé”, sublinha Elvina. “Eu ouvia-a a rezar o Pai Nosso, a Avé Maria, mas não ligava muito. Depois quis saber mais. Via na televisão o 12 e 13 de maio e como Ourém é aqui perto às vezes as estradas estavam cortadas, e queria saber porquê.” Quando Catarina nasceu, Elvina quis batizá-la. “A conversa com o padre Fernando Varela foi espetacular, eu também queria saber como era aquilo, e ele convidou-me para ir à catequese, como quem não quer a coisa. Eu fui e apaixonei-me, pronto.”

João: “Tinha as mulheres que eu quisesse. Se me apetecesse eram duas ou três na mesma noite”

Ao mesmo tempo, ali perto, João Dias também passava por um processo de conversão. Ou de reconversão, melhor dizendo. A sua juventude foi passada no seminário, mas no último ano de estudos já tinha decidido que não havia de ser padre. O celibato não era para ele, que gostava tanto de mulheres, e deixou a vocação sacerdotal de lado para abrir uma cadeia de padarias e pastelarias, com sede em Caxarias e com distribuição para mais quatro estabelecimentos.

“Fiz tanta merda até me reconverter”, admite hoje. Durante os primeiros anos após o seminário, João mudou radicalmente de caminho, envolvendo-se frequentemente com prostitutas e endividando-se cada vez mais. “Tinha as mulheres que eu quisesse. Se me apetecesse eram duas ou três na mesma noite”, conta, sublinhando que o dinheiro das padarias ia diretamente para os seus vícios.

Sobre estes tempos fala pouco. Hoje praticante e devoto do Sagrado Coração de Jesus, prefere contar a história da sua reconversão. “Um dia eu ia ter com um umas miúdas que um tipo em Leiria tinha arranjado, e ao vir de Caxarias e passar por Fátima vi a torre da Basílica. Pensei, naquele momento, que ia ter com miúdas pouco mais velhas que a minha filha, e que se eu morresse naquele dia só morria um tipo porreiro. Não me chegava”, recorda. Já nem seguiu para Leiria.

Os Pastéis de Fátima prontos a comer e as formas com o crucifixo (Fotografia: HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR)

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Dirigiu-se de imediato ao Santuário de Fátima, lavado em lágrimas, sem perceber bem o que lhe estava a acontecer. Parou o carro e partiu o telemóvel à entrada do espaço, como sinal de rompimento com a vida anterior. Depois, seguiu para o meio do recinto e ajoelhou-se em frente à imagem de Jesus, onde ficou a chorar. “Uns minutos depois, tocam-me no ombro. Era um padre amigo meu, que já me conhecia há muito tempo, e que me viu ali assim. Ficou a conversar comigo no meio do santuário até depois das três da manhã e ajudou-me a orientar a minha vida”, conta.

Daquele dia em diante, João mudou radicalmente. Mas a conversão não chegou para resolver todos os problemas. As dívidas que acumulou ao longo de anos de excessos continuavam a persegui-lo. “Comecei a receber umas cartas de um advogado, tinha muitas dívidas”, conta. Teve de entregar os bens todos que herdou do seu pai para pagar as garantias, mas nem assim escapou. Hoje, é insolvente e tem tentado pagar todas as dívidas que ainda tem. Na altura, contudo, ainda conseguiu manter as suas padarias em funcionamento.

“Depois disto, não me digam que é tudo coincidência”

Foi nesta altura que as vidas de Elvina e João se cruzaram. Grávida e com uma filha de dois anos ao colo, Elvina, que entretanto tinha sido contratada por uma das padarias da cadeia de João, dirigiu-se ao patrão para lhe pedir ajuda. “Pedi-lhe trabalho, mais horas, porque precisava de dinheiro para comer”, recorda Elvina. “Ele foi o meu S. José. Nunca me deixou em maus lençóis”, acrescenta.

A partir desse momento, os dois começaram a aproximar-se. “Não posso dizer que nos apaixonámos. Foi Deus Nosso Senhor que nos uniu e o nosso amor foi crescendo a três: eu, ele e Deus”, diz Elvina, que recorda as longas conversas sobre a fé com um João já convertido. Casaram — primeiro pelo civil e depois, quando João conseguiu a nulidade do seu primeiro casamento, na igreja de Caxarias. Aí é que foi o escândalo. “O João foi um dos primeiros a casar novamente pela Igreja. Foi um choque na aldeia, todos diziam que o padre tinha casado o João duas vezes”, lembra Elvina.

Não posso dizer que nos apaixonámos. Foi Deus Nosso Senhor que nos uniu e o nosso amor foi crescendo a três: eu, ele e Deus.
Elvina Kamalyetdinova

Até que um dia chegou o inevitável: a padaria de Caxarias, último reduto do “império” do pão que João tinha construído, ia ser vendida em hasta pública. Restava-lhes uma opção: ou tentavam comprá-la ou mudavam de vida. Escolheram mudar.

“Um dia íamos rezar o terço e jantar em casa de uns amigos e ele, por acaso, naquele dia, tinha o portão fechado, mas costumava estar sempre aberto. Enquanto esperava que ele o abrisse, vi que o portão tinha dois corações com um crucifixo desenhados e pensei ‘é assim que vão ser os pastéis'”. Foi depois deste dia que decidiram juntar as suas paixões e criar um pastel de nata em homenagem à sua devoção em comum: o Sagrado Coração de Jesus. E instalaram-se em Fátima até hoje. Como explica João Dias, “não há nada como ir dormir à noite, cansado do trabalho, e adormecer a ouvir a procissão das velas”.

Sobre o pastel, muito haveria a dizer, mas, como qualquer bolo famoso, tem o seu segredo. João conta apenas que a receita leva farinha, leite, açúcar e ovos. “Um pastel habitualmente leva aromas ou açúcar para disfarçar o sabor das farinhas. Mas este não leva nada disso. O segredo está na quantidade, na pesagem e na adaptação que nós fizemos do pastel de nata”, explica o pasteleiro, que ajuda a sua mulher, a gestora do negócio. “Só nós dois sabemos o segredo, e agora um novo pasteleiro que estamos a formar”, garante.

A "administração" da fábrica, o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria, que vigiam permanentemente a cozinha (Fotografia: HENRIQUE CASINHAS/OBSERVADOR)

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A Casa dos Pastéis arrancou com uma produção reduzida – apenas com 500 formas. Mas a fama dos pastéis de Fátima aumentou e hoje já são precisas 17 mil para dar resposta aos pedidos constantes. E quando os pastéis apareceram pela primeira vez na televisão, foi preciso chamar a família toda para vir ajudar no dia seguinte. “Passámos o mês de agosto inteiro só com 500 formas, mas entretanto um senhor conseguiu arranjar maneira de nos fazer mais formas iguais”, explica.

Hoje, o casal vive dos pastéis da sua devoção e já desistiram de acreditar em coincidências. A última aconteceu no ano passado, quando João, sentado numa das mesas da Casa dos Pastéis com uma cliente, descobriu que a estátua que está no centro do recinto do Santuário de Fátima, junto à qual chorou intensamente no dia da sua conversão, é na verdade uma estátua do Sagrado Coração de Jesus. “Eu não sabia, achava que era só uma estátua normal de Jesus. Mas depois fui lá confirmar e de facto é mesmo o Sagrado Coração de Jesus, de quem eu era tão devoto. Depois disto, não me digam que é tudo coincidência.”

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