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Ricardo Castelo/Observador

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Em Canelas dá-se outra missa, mas não a outra face

Em novembro de 2014 a mudança de padres fez-se com cenas de violência, acusações de mentiras, ameaças, corrupção e até queixas de abusos sexuais. Em vez de unir, a religião continua a dividir Canelas.

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São 09h55 de uma manhã de domingo e há um aglomerado de gente na zona industrial de Canelas, em Vila Nova de Gaia. São quase todos idosos e aguardam animados à porta de um armazém. “É preciso chegar cedo para conseguir um lugar sentada!”, explica uma das presentes. Alguém de fora que ali passe dificilmente vai conseguir decifrar o mistério, de tão improvável. Mas, na freguesia, todos sabem que, às 10h30, o interior daquele armazém se transforma na igreja de Roberto Carlos, o padre afastado pela Diocese do Porto a 2 de novembro de 2014, num clima de protestos e insultos que colocaram a freguesia nas capas dos jornais pelas piores razões.

A missa marca o reencontro com o padre Roberto após um mês de férias. “Há um ano que é assim, está sempre cheio”, explica outra das fiéis, contrariando a ideia de que, por ser o aguardado regresso do pároco, a multidão é maior. À mesma hora, outra multidão de canelenses está a caminho da Igreja Paroquial de Canelas, onde outro padre vai dar a missa dita “oficial”, apadrinhada pela Diocese do Porto. Poucos quilómetros separam os dois locais. Muitas divergências, também.

“Prefiro vir a esta por causa do padre Roberto. Estamos a lutar pela justiça.” A mulher, que prefere não se identificar, é de Viseu mas tem casa em Canelas, e esclarece que nada tem contra a Diocese do Porto. A sua luta é contra “os caciques da freguesia“. “As pessoas que estão aqui são as sérias. Os outros é que gostam de comer e beber à custa da freguesia”, completa uma amiga que está ao lado. Na hora de explicar de quem falam, todas se retraem. O mesmo acontece quando lhes perguntamos o nome. Afastam-se. “Eu nem sou daqui”, justifica uma senhora, de fio dourado ao pescoço com a cruz de Cristo.

O armazém é da Associação Uma Comunidade Reage, criada por Miguel Rangel para apoiar o padre Roberto, após o afastamento ditado pelo Bispo do Porto. © Ricardo Castelo/Observador

Ricardo Castelo/Observador

Cronologia dos acontecimentos de 2014

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24 de junho: Roberto Carlos anuncia na missa que vai ter de deixar Canelas por ordem do Bispo do Porto. A população organiza protestos e Miguel Rangel cria o movimento Uma Comunidade Reage, em defesa do padre.

30 de junho: Cerca de três mil pessoas concentram-se numa vigília no adro da igreja de Canelas, empunhando velas e faixas com mensagens de apoio ao pároco.

Agosto ou setembro: Padre Roberto envia uma carta ao Bispo do Porto, deixando claro que “se estas situações não terminarem muita gente será igualmente ‘queimada'”.

Setembro: Roberto Carlos anuncia que não vai aceitar assumir as vigarias de Lousada ou Marco de Canaveses, que lhe foram propostas, e que não sairá de Canelas enquanto não se fizer justiça. Envia também uma carta ao Bispo onde menciona um escândalo de abusos sexuais a menores ocorrido em 2003, encontros homossexuais de padres num ginásio em Gaia e sacerdotes que custearam abortos de bebés que seriam seus.

Novembro: O Bispo reencaminha a carta com a denúncia de abusos sexuais e aborto para o Ministério Público. Roberto deixa definitivamente a Diocese e Albino Reis assume. Os protestos continuam à porta da igreja e em vigílias. Os apoiantes de Roberto Carlos prometem só parar quando for feita justiça.

Às 10h10, a porta do armazém abre-se. O espaço é amplo e simples, em madeira, com vários compartimentos no andar de cima que se supõe terem sido escritórios. Não há água benta à entrada, como nas igrejas. Nas paredes laterais, em vez de santos ou vitrais, estão colunas de som e um extintor. As cadeiras brancas, de esplanada, são rapidamente ocupadas. O altar tem uma pequena mesa, coberta por um corporal verde e duas velas. Atrás há uma cruz de madeira com Jesus pregado e um projetor com a frase “O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava falido”. À frente, uma estátua de mármore com a Sagrada Família, oferecida à Uma Comunidade Reage (UCR) pelo padre Roberto, conta Miguel Rangel, o fundador da associação. Foi no dia 24 de junho de 2014, quando Roberto Carlos anunciou, na missa, que estava a ser chantageado pela Diocese do Porto e que seria obrigado a deixar a paróquia, que Miguel Rangel decidiu criar um movimento de apoio.

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Devia ter sido dia de festa, dedicado a São João, santo padroeiro de Canelas, mas ficou “transtornado”, diz ao Observador. “Eu ia sempre à missa e levava os meus filhos à catequese, o padre Roberto é um amigo.” Um amigo que faz bem o seu trabalho, de acordo com o dirigente. “Durante oito anos conseguiu fazer aquilo que a igreja não consegue, que é unir as várias faixas etárias, dar a oportunidade a toda a gente para poder estar na igreja e olhar para todos de uma forma igual. É um padre por vocação e não um mero funcionário da Diocese.”

Logo que pôde, formalizou o movimento e nasceu a associação UCR. Miguel Rangel tem sido, desde esse dia, o principal impulsionador dos protestos. Logo após o anúncio de Roberto Carlos, centenas de pessoas manifestaram-se contra a saída do pároco. Dias depois, três mil pessoas juntaram-se para uma vigília de protesto. Um abaixo-assinado “com 5.700 assinaturas foi entregue na Diocese”, recorda. De nada adiantou. No dia 27 de outubro, a Diocese do Porto informa definitivamente o sacerdote de que o seu último dia na paróquia é 2 de novembro. No dia 3, o novo padre, Albino Reis, estreia-se a celebrar um funeral e a resolver um atraso no pagamento aos funcionários, já que o padre Roberto estava ausente. “Riscaram-me o carro, tentaram tirar-me da viatura e linchar-me em praça pública“, recorda Albino Reis. Valeu a presença da GNR. Uma semana depois, na missa de domingo, teve de ser escoltado pelas autoridades para chegar à igreja, num cenário muito pouco católico. Canelas abre telejornais e põe o país a discutir o que se está a passar na freguesia de 13 mil habitantes.

A primeira missa de Albino Reis foi no dia 9 de novembro de 2014. Foi insultado por uma população em fúria e rasgaram-lhe o casaco. © Lusa

JOSE COELHO/LUSA

Roberto Carlos Nunes Sousa, 41 anos de vida e dois sem paróquia destinada, nunca foi verdadeiramente embora e há um rebanho de 400 fiéis que o segue na homilia semanal. Antes de ele chegar, o porta-voz da Comunidade do Adro sobe ao palco, onde já está o coro, para dar as boas-vindas aos jornalistas do Observador. “Podem escrever, fotografar, filmar, entrar e sair, que nós não temos nada a esconder”, diz, antes de anunciar os vencedores de um sorteio de uma máquina de café. A forma legal que Miguel Rangel arranjou para que o padre Roberto pudesse dar ali as missas foi criar a Comunidade do Adro. “A associação cede o espaço à Comunidade, embora sejamos a mesma pessoa”, explica. Quanto ao armazém, cuja porta se abriu a 7 de novembro de 2015, “alguém o comprou e cedeu-nos a título de comodato“. Não se fala em nomes, que o benfeitor quer permanecer no anonimato. O padre Roberto garante que não foi ele, Miguel Rangel idem.

A hora já vai tardia, mas o porta-voz ainda aproveita para lembrar uma sessão de esclarecimento que ali aconteceu a 14 de outubro, onde terão sido mostrados “documentos comprometedores daquilo que eram as intenções da Diocese” para com o padre Roberto. É a primeira referência de muitas sobre as alegadas injustiças cometidas pela paróquia, pela Diocese e pelo “grupo de caciques” a que se referia uma das senhoras à entrada.

Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido

Pai Nosso

Às 10h44, com 14 minutos de atraso, anuncia-se a entrada do padre Roberto. As pessoas levantam-se e batem palmas à passagem do pároco vestido com uma batina branca e uma casula verde por cima. “Bom dia, família”, diz, quando chega ao altar, com a voz ampliada pelo microfone na lapela. As palavras sagradas ainda vão ter de esperar porque, após um mês fora, aparentemente o sacerdote traz muita conversa para pôr em dia. “Na minha ausência, muitos cães começaram a ladrar. As águas estavam muito paradas“, ironiza, referindo-se a boatos que terão existido do outro lado da barricada sobre o motivo e a duração da sua partida. “Eu não andei fugido. Bem queriam!”

O padre Roberto passa grande parte da homilia a recordar as injustiças de que se diz alvo, diretamente e através das leituras. © Ricardo Castelo/Observador

Ricardo Castelo/Observador

Na assistência estão maioritariamente idosos. Participam nas orações, acompanham o coro e a voz afinada de barítono do padre com nome de cantor. Mas ele parece decidido a voltar ao assunto que o persegue há dois anos. Segue de forma mais indireta: “Jesus está vivo mas há chagas que continuam abertas”, “Deus é incorruptível”, “a fé é uma união profunda”. O discurso contra o outro une e a união faz a força. Esse discurso torna-se mais óbvio à medida que a cerimónia avança. “Já me tentaram diminuir, ameaçar, impedir de ver Jesus”, relembra à plateia. Repete o que já disse na comunicação social no passado — que um bispo lhe disse que, se ele não fizesse determinada coisa, “haveria consequências”. Mais: “Um bispo que me tenta comprar, corromper. E quando uma pessoa diz não, não, não, quero lá saber das consequências! Quando dizemos sim à corrupção, ficamos cegos e não vemos Jesus.”

Pausa no monólogo para dar os parabéns a Fernando e Rosa, que celebram 25 anos de casados. O padre convida-os a subir ao altar e oferece-lhes um coração vermelho de peluche. Na ponta oposta à do palco, num canto do primeiro andar, está um peluche de um panda gigante. Miguel Rangel explica-nos que, nas missas da igreja, Roberto costumava levar alguns pandas pequeninos em peluche para oferecer às crianças que respondessem corretamente a algumas questões. A UCR não pode ter catequese, porque não é reconhecida pela Diocese e as crianças não podem progredir nas comunhões. Mesmo assim, há pais — como o próprio Miguel — que têm ali as suas crianças, num grupo de jovens.

Os aniversariantes do mês recebem de presente um coração, comprado pelo próprio padre. © Ricardo Castelo/Observador

Ricardo Castelo/Observador

Hóstia há. E o ofertório, em que as pessoas contribuem com o que quiserem para dentro de uma das três caixas que vão passando pelas cadeiras, também. A missa termina às 12h15, depois de menções a missas de Sétimo Dia e de o padre ter oferecido corações a todas as pessoas que fizeram anos em setembro. No primeiro domingo de novembro, dará os parabéns e os presentes aos aniversariantes de outubro, que são chamados ao palco. Enquanto o padre Roberto está no altar, Miguel Rangel sobe ao palanque para repetir um apelo feito pelo porta-voz da Comunidade do Adro no início. “É muito importante a presença de todos na segunda-feira”, 31 de outubro, véspera do Dia de Todos os Santos. A ideia é tirarem uma fotografia de grupo e, quanto maior for o grupo, melhor.

Relembram-se também as pessoas de que, no dia 1 de novembro, às 09h00, vão poder rumar ao cemitério com o padre Roberto. “O cemitério é civil, é da junta de freguesia, não é de mais ninguém“, frisa, antecipando possíveis discussões com apoiantes da missa convencional. A foto acabou por ser uma vigília na praça, com cânticos e cartazes de apoio ao padre Roberto. “O senhor Bispo tinha vindo a Canelas e ouvia o povo”, comenta uma senhora, à saída do armazém-igreja. Não vai ele a Canelas, vai uma fotografia dos seus habitantes para o Bispo.

Roberto é elegante. Depois de tirar a casula, na sua sala do primeiro andar, veste um blazer azul claro, com a camisa a condizer. “A paz constrói-se com justiça”, reage, à questão que quer saber qual o ambiente que se vive na freguesia. Uma vez que o padre se considera injustiçado, conclui-se, portanto, que não. Ainda não há justiça em Canelas.

Ninguém separe o que Deus uniu

Mateus 10:9

A passagem de Albino Reis pela freguesia foi curta e, em setembro, após 22 meses de serviço, regressou a Vilar do Andorinho, onde estava anteriormente. Trocou com o Padre Manuel Lopes, que deixou a freguesia vizinha, após 13 anos em Moçambique, para se instalar agora em Canelas. Manuel Lopes prefere não falar com o Observador porque, explica, Canelas ainda não está em paz e as palavras podem piorar a situação. Que foi bastante má. “Era impossível alguém ir à celebração da eucaristia com a movimentação que se fazia do exterior”, recorda Albino Reis, sobre os primeiros meses. “As pessoas tinham medo de ir à missa. Iam a outros lados ou ficavam em casa, não havia ambiente.”

Há amigos que deixaram de se falar e familiares divididos. Miguel Rangel chegou a ter discussões acesas com a irmã, que pertenceu ao grupo de jovens e continua na paróquia, e com o irmão, que não frequenta a igreja. “Nunca chegamos a ficar de relações cortadas”, clarifica. Mas conhece casos onde isso aconteceu e dura até hoje. “Dois irmãos deixaram de se falar porque um não ia à igreja, outro ia e defendia o padre Roberto”, começa por contar. O primeiro passou então a ir à missa à Igreja para ver se era insultado à saída pelos apoiantes da UCR, que na altura faziam protestos à saída da igreja. “Numa das missas a que ele assistiu, viu que uma das pessoas que ia ao lado dele dirigiu um insulto a quem estava cá fora, na manifestação”, e mesmo assim nunca compreendeu porque é que o irmão estava ali a apoiar o padre Roberto daquela forma. “Ainda hoje não se falam.”

Este domingo, a homilia incluiu uma missa de sétimo dia de um dos associados da UCR. A família, “que há uns tempos não entraria cá”, também foi. “Isto antes não era possível”, assinala o responsável. Miguel aceita que não se concorde com os protestos frequentes que aconteceram no final de 2014 e em 2015. Contudo, tinham de lutar. “Não aprovo, mas compreendo. Estamos a falar de uma massa humana difícil de controlar, que se viu roubada de uma pessoa que estimava”, justifica.

Quem não se ajoelhar e não adorar a estátua será atirado na mesma hora para uma fornalha acesa

Daniel 3:6

O que deu cabo da paz que reinava em Canelas foram “politiquices” e “corrupção”. “Eu tornei-me persona non grata para algumas pessoas, porque não compactuei com o que elas queriam: uma estátua de homenagem ao padre Gabriel, pároco de Canelas durante 28 anos”, afirma Roberto Carlos. Por um lado, não queria uma estátua de 1,90 metros de altura dentro da igreja, quando nem os santos tinham semelhante destaque. Por outro, a obra da escultora Margarida Santos estava orçamentada em 20 mil euros. Na primeira questão, a diocese deu razão ao pároco, conta. A segunda é que foi mais problemática. “Começaram a usar o meu nome para angariar dinheiro junto das pessoas“, queixa-se. Em 2014, o desemprego no concelho de Vila Nova de Gaia era muito elevado e o pároco não achou bem fazer-se um peditório de 20 mil euros a gente que passava por dificuldades, ainda por cima para uma estátua.

Na sala do padre Roberto está um desenho do seu rosto, santos e objetos para procissões. © Ricardo Castelo/Observador

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Como não podia impedir o peditório, recusou associar o seu nome à iniciativa. “Era vergonhoso andar a apelar para pessoas carenciadas e, ao mesmo tempo, pedir dinheiro para isto”, sublinha. O movimento pela estátua terá continuado a apelar às doações usando o nome do padre Roberto e este partiu para uma declaração pública: “Atenção, andam aí a pedir dinheiro em meu nome e isso é mentira”. A partir daqui, o sacerdote queixa-se de ter sido coagido a participar, tanto na recolha como na futura inauguração. Do vigário geral, padre António Coelho, diz que o aconselhou a “não criar problemas a essa gente”. D. Pio, Bispo Auxiliar, terá feito o mesmo. E se em janeiro conta que era tido como padre exemplar, em junho é chamado pelo Bispo D. António Francisco dos Santos para mudar de paróquia. A justificação oficial da Diocese é “rotatividade normal”.

Não tem nada a ver com rotatividade“, recusa imediatamente o sacerdote. “Até porque, se fosse, a própria diocese cairia em contradição e incoerência, porque há padres para quem não há rotatividade, foi só uma desculpa.” Em janeiro de 2014 recebeu a visita canónica do Bispo Auxiliar, D. João Lavrador. “E quando são essas visitas, nós somos avaliados. Passei com distinção, elogios não faltaram. Até me estavam a preparar para assumir outra paróquia ao lado, a de Gulpilhares, em simultâneo.”

Ao contrário da população, que é rápida a culpar o tal grupo de canelenses influentes, “alguns deles paroquianos” mas que, na hora de explicar de quem falam se retraem e dizem não saber nada, ou até que nem são da freguesia, Roberto Carlos diz nomes. “O cabecilha era o [Francisco] Barbosa da Costa, ex-deputado do PSD.” Acusa-os de fazerem pressão na Diocese e de andarem a espalhar boatos sobre si e sobre a sua sexualidade. Na carta de junho, que pôs a freguesia em alvoroço, o Bispo do Porto propôs ao padre Roberto que assumisse as vigarias de Lousada ou Marco de Canaveses. “Até as rotatividades são simbólicas. Um padre novo começa no interior e chegar às paróquias da cidade é subir na hierarquia. Nunca acontece sair de uma zona urbana ou semi-urbana para ir para Baião ou Marco de Canavezes”, conclui, com um riso.

Também se queixa que D. Pio o ameaçou. “‘Roberto, aquela estátua vai ser posta. E é bom que estejas presente’. Está na gravação.” Gravação? O padre aponta para o seu iPhone. Não só diz que gravou a conversa sem ter dado conhecimento prévio ao bispo auxiliar, para se proteger de futuras ameaças, como atesta que já mostrou o áudio a outras pessoas e que “vai ser mandado para aí”. Para onde? “Para o Bispo, para ele ouvir”, responde, enigmático.

Não nos deixeis cair em tentação

Pai Nosso

O Observador enviou várias perguntas ao Bispo D. António Francisco, mas não obteve resposta. Há, no entanto, um comunicado datado de 14 de novembro de 2014 que dá a versão da Diocese. O Bispo relata que recebeu o pároco no dia 11 de julho e, ao verificar que sua proposta de o colocar noutra paróquia tinha sido bem acolhida, “nem a comunidade estava serena para acolher a decisão”, mostrou-se disposto a adiar a mudança, separando-a das nomeações a fazer em julho, para data posterior quando as condições fossem mais favoráveis.

“Passados alguns dias, recebi uma carta sua a comunicar-me a decisão de cessar o múnus de Pároco em Canelas, no dia 8 de setembro”, pode ler-se, com a agravante de que Roberto só permaneceria pároco caso o Bispo “pedisse pública desculpa à comunidade de Canelas pelos danos causados, demitisse o Senhor Vigário Geral, Padre António Coelho de Oliveira, e desautorizasse expressamente o Senhor Bispo Auxiliar, D. Pio Alves de Sousa”.

Em setembro, o Bispo informa ter recebido outra carta do padre a comunicar-lhe “que tinha decidido permanecer em Canelas”. Na carta, o Bispo identifica “uma ameaça de revelação de um caso grave de comportamento de um sacerdote, acontecido em 2003. Não conheço o sacerdote que o Padre Roberto refere. Não é sacerdote da Diocese do Porto. Mesmo assim, dada a gravidade do caso denunciado, dei a conhecer a sua carta, de imediato, às autoridades competentes.”

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Roberto Carlos só vai parar quando se fizer “justiça” © Ricardo Castelo/Observador

O padre Roberto dá a sua versão: a comissão da estátua terá tido conhecimento de um caso de abuso sexual a um menor, ocorrido em 2003, que o envolvia, mas como denunciante. “Denunciei aos meus superiores e só não fiz queixa na polícia porque a vítima não quis. Pouca gente sabia desse caso e preparavam-se para me fazer passar pelo abusador, a qualquer momento podiam sair notícias de que eu tinha cometido abusos, acabavam com a minha reputação.” Justifica, assim, a carta que enviou ao Bispo onde refere o tema, mas nega que tenha sido uma ameaça, como o Bispo referiu no comunicado. “Eu é que fui ameaçado, tinham-me dito que eu ia ter problemas!” O que eu escrevi foi: estão tão preocupados comigo, e não se preocupam com coisas bem mais graves? Isto não é uma ameaça.”

O Observador teve acesso à carta em que o padre comunica a D. António Francisco dos Santos que decidiu permanecer na Paróquia de Canelas após a data que lhe tinha sido imposta para a saída, 8 de setembro. Ao longo das três páginas, o sacerdote nunca refere a questão da estátua. Queixa-se, sim, de acusações que soube terem sido feitas contra si ao Núncio Apostólico, “de que seria homossexual e que viveria com um homem” e de “heresias” ditas por si no renovamento carismático.

Depois, menciona saber de “padres que às terças-feiras de manhã cedo encontram-se num ginásio gay em Gaia”, outros que “aproveitam as folgas de domingo à tarde e segunda-feira para visitas a bares e saunas gay em Vigo e noutros lugares da Galiza, bem perto da fronteira logo a seguir à ponte em Vila Nova de Cerveira”. Outros “oferecem carros e presentes luxuosos aos seus amantes”. Refere também “padres que sustentam amantes e os filhos, e outros que pagaram os abortos dos seus próprios filhos”. Foi a primeira vez que o padre denunciou esses assuntos à Diocese.

Aponta também na carta as difamações de que andaria a ser alvo, e que mencion na conversa com o Observador, avisando que, se as difamações não cessarem, tornará público o caso de abuso sexual. “Não irei permitir qualquer atitude difamatória ou ofensiva do Pe. António Coelho que me possa prejudicar, caso contrário tornarei pública a situação de encobrimento de abusos sexuais de menores realizados pelo Pe. Abel Maia“, pode ler-se na mesma carta. O Bispo enviou as informações ao Ministério Público, que abriu um inquérito à prática de abusos sexuais e aborto. Em julho de 2015, ambos os processos foram arquivados, por prescrição e “ausência de indícios”.

Miguel Rangel dirige a associação Uma Comunidade Reage. © Ricardo Castelo/Observador

Ricardo Castelo/Observador

No passado dia 14 de outubro, a UCR organizou uma sessão de esclarecimento pública nas suas instalações, para apresentar “atas e gravações de reuniões com cónegos que estavam a representar o Bispo, e que provam os motivos do afastamento do padre Roberto. “Eles tinham dúvidas, eu esclareci e eles até me pediram desculpas”, conta Roberto. Em abril de 2015, a associação teve várias reuniões com dois cónegos “mandatados por D. António Francisco dos Santos para tentarmos negociar a situação de Canelas”, recorda Miguel Rangel, que diz ter ouvido a gravação áudio com a chantagem de D. Pio, “em que ele de uma forma muito clara diz: Roberto, esta homenagem é importante, tem de ser feita. Se não estiveres presente, arranjamos uma solução para Canelas. Eu tenho muita pena que seja assim.'” Mais tarde, Roberto acusa o Bispo de tentar comprar o seu silêncio, referindo-se à oferta de remuneração por parte do tribunal eclesiástico, mesmo estando o sacerdote sem paróquia. “Não quero nada”, diz.

“É pena que o padre Roberto vá para as reuniões com um gravador escondido. É escabroso, não se faz”, reage o padre Albino Reis. “Eu não estou a gravar sem informar a pessoa que estou a gravar a conversa. Mas se tem gravações, que as mostre fora desse grupo, que faz um bocadinho de concorrência aos visionários: ouvem e veem muita coisa que ninguém mais ouve nem vê.” A gravação nunca foi mostrada ao Observador. Os únicos documentos mostrados foram cinco e-mails enviados por Miguel Rangel para os cónegos, Álvaro Mancilha e Jorge Cunha, com a ata de cinco reuniões. As atas foram escritas pela UCR e não mostram se houve respostas por parte dos cónegos.

“O padre Roberto promove fanatismo religioso”, acusa Albino Reis. “Há maneiras de desempenhar um trabalho pastoral numa paróquia que fanatiza as pessoas, torna as pessoas dependentes, sobretudo quando estas formas tocam nas fragilidades das pessoas”, afirma, comparando ao método a que recorrem as igrejas pentecostais. “Há padres na Igreja Católica a fazer o mesmo. O certo é que isso arrasta multidões.”

A gravação nunca foi mostrada ao Observador. Os únicos documentos mostrados foram cinco e-mails enviados por Miguel Rangel para os cónegos, Álvaro Mancilha e Jorge Cunha, com a ata de cinco reuniões. As atas foram escritas pela UCR e não mostram se houve respostas por parte dos cónegos.

Mas houve mais informações a circular nessa época, que o e-mail não refere. “O padre Roberto não vivia na casa paroquial em Canelas, mas sim com um ‘amigo’ em Mafamude”, conta ao Observador uma fonte, que prefere não ser identificada. “A estátua foi uma desculpa para encobrir os problemas.” Ao Observador, o padre Roberto não responde a questões pessoais. Nem onde vive neste momento — diz só que não vive em Canelas –, nem como obtém meios de subsistência para sobreviver, uma vez que, afirma, as missas que dá na UCR são gratuitas. Limita-se a dizer que não precisa do dinheiro da associação. “Eu é que meto aqui dinheiro“, afirma. Miguel Rangel conta que todos os objetos que o padre Roberto compra, como os corações para oferecer aos aniversariantes, são pagos do seu bolso. Refere, no entanto, que, por vezes, a comunidade organiza alguns eventos, como piqueniques, onde se reúne algum dinheiro que oferecem ao pároco. “Já me deram e eu não precisava”, confirma Roberto. “Às vezes as pessoas querem fazer uma coisa e ficam zangadas se não aceitar, percebe? É como quando se dá uma prenda.”

Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei

João 13:34

Dois anos passaram. As várias páginas de Facebook de uma e de outra fação continuam ativas e descontentes com o outro lado, mas a situação da freguesia está mais calma. No dia 1 de novembro, a UCR e o padre Roberto homenagearam os mortos no cemitério sem tumultos e, à tarde, tudo correu ordeiramente para a visita da paróquia. O apelo que Miguel Rangel e a Comunidade do Adro fizeram tão ativamente na missa para que as pessoas se juntassem no adro e tirassem uma fotografia juntou muitos apoiantes e será enviada ao Bispo.

canelas padre

© www.facebook.com/naotemaiscanelas

Albino Reis, que foi missionário na América Latina, em contextos de muita violência e dificuldades, resume os 22 meses que passou em Canelas como “uma missão como outra qualquer”. “Eu tenho muito trabalho, nunca fui para lá para tomar conta da paróquia, fui, sim, para socorrer uma situação.” Sai porque considera que os ânimos estão mais calmos.

Miguel Rangel não entende porque é que o Bispo “ainda não pediu desculpa a esta população”. Recusa ter de ser ele a dar um passo atrás, porque o exemplo tem de vir de cima, da Diocese. “Se não é explicado o afastamento é porque alguma coisa ainda está por explicar e saberemos mais cedo ou mais tarde”, afirma. Gostavam de ver o padre Roberto de volta à paróquia, claro, mas o responsável pela UCR não desgosta da rotina atual, no armazém-igreja. “Só queremos uma explicação sobre o afastamento.”

“Eu não desobedeci ao Bispo, porque ele mandou-me sair e eu saí”, clarifica Roberto. “Se o Bispo me dissesse que precisava de mim noutra diocese, claro que tinha de aceitar. Só que ele nunca me deu uma razão válida para eu sair.” Enquanto não tiver a sua justificação, ou enquanto não for recolocado na paróquia de Canelas, Roberto Carlos não deixará de lutar “pela verdade e a justiça”. E duvida que isso alguma vez aconteça. “Voltar a pôr-me lá é admitir o erro”, diz. Sair pelo seu próprio pé? Isso é que não. Mesmo se ajudasse a apaziguar amigos e familiares que se deixaram de falar. “Aí a culpa é da Diocese, eles é que provocaram isso, não fui eu.

– “Jesus não diz para dar a outra face?”, perguntamos.

– “Mas Jesus também pegou no chicote e expulsou os vendilhões do templo dos corruptos”, argumenta o padre.

Assim sendo, Roberto Carlos ficará num limbo, em que pertence à Diocese mas não tem paróquia; em que celebra homilias que concorrem com a missa do padre nomeado pela Diocese — e onde aproveita para acusar a instituição e alguns dos seus membros de mentir e de o ameaçar. Enquanto a divisão permanecer, os canelenses não mais se amarão uns aos outros, como mandam as palavras do profeta que todos os domingos se reúnem para celebrar.

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