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© Pascal Ito / Flammarion

© Pascal Ito / Flammarion

Emma Becker, autora de "A Casa": "Fui paga para escrever os meus livros. É o sonho de qualquer jovem escritor"

Durante 2 anos, Emma Becker foi prostituta em Berlim. O relato quase jornalístico que pensou que ia escrever transformou-se numa coisa diferente quando chegou à Casa: um retrato das relações humanas.

Quando foi publicado em França, A Casa deu que falar. A razão não foi tanto a obra em si, mas o processo que a autora, a escritora franco-alemã Emma Becker, seguiu para a escrever: durante mais de dois anos, Becker trabalhou em duas casas de prostituição em Berlim. A autora queria escrever sobre o mundo da prostituição, sobre o qual leu quando era jovem e pelo qual se deixou fascinar. “Estava mesmo interessada e fascinada pela profissão, por esse mundo, porque em França temos muitas obras sobre isso”, admitiu Becker numa conversa por telefone com o Observador. Esses trabalhos são, na sua grande maioria, escritos por homens que não sabem, e nem podem saber, quais as exigências da profissão. A autora queria oferecer uma “perspetiva feminina da prostituição”: “Queria mostrar qual era a perspetiva de uma trabalhadora do sexo em oposição à perspetiva a que temos sempre acesso, que é a perspetiva dos homens”, explicou.

Becker não estava, contudo, interessada em fazê-lo adotando uma abordagem jornalística, com recurso a entrevistas. Queria escrever um livro honesto, na primeira pessoa, e foi por isso que optou por encontrar trabalho num bordel em Berlim, primeiro no Carrossel (nome fictício), um mau exemplo do negócio da prostituição na capital alemã, e depois na Casa (também um nome fictício), que dá nome ao livro. Foi na Casa, lugar que na sua opinião devia servir de exemplo a todos os bordéis pela humanidade com que as trabalhadoras eram tratadas, que Becker descobriu o tom certo para o seu trabalho de ficção. Mais do que uma descrição do dia a dia numa casa de prostituição ou das dificuldades e particularidades de um trabalho — que, para a escritora, não deixa de ser como outro qualquer, mas que o preconceito impede que seja socialmente aceite –, A Casa transformou-se num retrato inesperado das relações humanas.

Na entrevista com o Observador, a escritora admitiu que trabalhar como prostituta durante dois anos foi “uma experiência rica, fascinante e humana”, que ultrapassou “o facto de se ser mulher ou homem”. “É este sentimento de que as pessoas estão apenas a tentar aproximar-se umas das outras e a tentar sentir-se menos sozinhas. Provavelmente porque esse sempre foi o meu problema também. Dentro do meu próprio regime pessoal, isto faz todo o sentido.”

A Casa, o romance auto-ficcional de Emma Becker sobre o trabalho numa casa de prostituição em Berlim, foi publicado pela Casa das Letras

Porque é que quis escrever sobre o trabalho numa casa de prostituição e porque é que achou importante passar por essa experiência?
Tinha-me mudado de Paris para Berlim. Estava a terminar o meu segundo livro [Alice, sem edição portuguesa], que ia ser publicado. Nunca tinha vivido do dinheiro que fazia com os meus livros, tive sempre outros trabalhos em paralelo. Servi às mesas, trabalhei numa florista. Em Berlim, apercebi-me que podia ser o que quisesse, porque os meus pais não estavam por perto. Não tinha de justificar como é que gastava o meu tempo. Um dia, estava a andar pela cidade e vi uma casa com uma luz vermelha e apercebi-me que era uma casa de prostituição. Depois lembrei-me que aqui [a prostituição] é legal e surgiu a ideia de ter esse trabalho para tentar escrever sobre ele. Estava mesmo interessada e fascinada pela profissão, por esse mundo, porque em França temos muitas obras sobre isso. [Há] tanta arte e outras coisas culturais que têm prostitutas, casas de prostituição, clientes e esse género de relação entre homens e mulheres, mas os livros são sempre escritos por homens. Queria saber qual era a perspetiva feminina da prostituição, do trabalho sexual. Queria mostrar qual a perspetiva de uma trabalhadora do sexo em oposição à perspetiva a que temos sempre acesso, que é a dos homens. Foi por isso que estava fascinada e foi por isso que decidi tentar fazê-lo. Mas também precisava de encontrar um trabalho. Apercebi-me que era o negócio perfeito, porque podia ser paga e escrever sobre aquilo. No fundo,estava a ser paga para escrever os meus livros, que é o sonho de qualquer jovem escritor. Tudo se alinhou. Claro que sabia que a audiência francesa ia ficar interessada, é um tema que nos interessa, mas queria saber como era a profissão. Não queria escrever um livro com base em entrevistas. Isso qualquer pessoa pode fazer e isso é o trabalho de um jornalista, não de um escritor. Podemos fazer quantas entrevistas quisermos e recolher os detalhes todos que quisermos, mas vamos continuar sem saber como é realmente a profissão, o que ela nos faz à cabeça, à carne, como é que vivemos com o facto de sermos trabalhadoras do sexo. Não queria trabalhar em França, porque em França é muito perigoso.

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Não é legal.
Bem, na verdade, não existe nenhuma lei que proíba as mulheres de venderem o seu tempo para sexo, mas os clientes são penalizados por pagarem por sexo, o que significa que as mulheres também são penalizadas, porque os clientes têm mais poder de decisão. Não queria ter de me esconder ou de mentir em relação ao que fazia. É por isso que nunca o fiz em França. Na Alemanha, onde é legal, podia ser um cidadão como muitos outros e tentar ter esta profissão e ver como era. Se era como os livros escritos por homens a descreviam, se era realmente como os meios de comunicação nos dizem, que a prostituição só pode ser horrível, violenta, perigosa, que as mulheres estão constantemente em perigo, que os clientes são monstros… Queria saber a verdade.

"Os homens podem por muita poesia, fantasia, imaginação. Eu queria a realidade. Os homens não fazem ideia o que é ser penetrada cinco, seis, sete vezes por dia. Como é que podem saber?"

E assim oferecer uma perspetiva que é exclusivamente feminina, contrariamente à dos livros de que falou?
Sim, mas a minha perspetiva enquanto escritora é auto-ficcional. Queria falar sobre o que este trabalho, que tem tanto a ver com ficcionalização e teatro, diz sobre a relação entre homens e mulheres. Entre homens cis e mulheres cis, obviamente que nos dias de hoje dizer homens e mulheres pode parecer um pouco limitado. Para começar, queria saber o que vender ou comprar sexo diz sobre as relações. Claro que ser mulher foi um grande divisor de águas, porque a maioria dos livros que nós, franceses, lemos, foram escritos por homens. Os homens podem por muita poesia, fantasia, imaginação. Eu queria a realidade. Os homens não fazem ideia o que é ser penetrada cinco, seis, sete vezes por dia. Como é que podem saber? Os homens acham sempre que são os primeiros e os últimos.

É curioso que diga isso porque conta muitas histórias de homens que se apaixonam por prostitutas. Esses homens são sempre frágeis.
Acho que não é só no meu livro. Tentei ser o mais honesta possível. O meu objetivo foi também não ser objetiva, foi descrever o que estes homens pareciam. Se parecem frágeis no meu livro, é provavelmente porque me pareciam frágeis. E talvez também por causa do contraste entre o que esperava — homens que pensavam que podiam fazer o que quisessem comigo porque tinham pagado — e a forma como os homens realmente se comportavam comigo num quarto. A maioria das vezes [eram] muito envergonhados, educados, e provavelmente tinham medo por ser eu uma mulher e por ser desejável. Percebe o que quero dizer? Obviamente que os homens são seres frágeis. São feitos de carne. Não conseguem evitar, precisam de fazer sexo, caso contrário ficam malucos. E depois vão a um bordel. Mas a partir do momento em que estão sozinhos, frente a frente com uma rapariga, são apenas rapazinhos. É isso que são sempre, no fim.

Ficou surpreendida com a atitude desses homens no quarto?
Não, não fiquei, tinha uma ideia. A coisa é que em França as pessoas falam da prostituição como se fosse uma coisa onde os homens têm todo o poder e as mulheres estão apenas para ali sentadas a aguentar a situação. E, claro, quando comecei a trabalhar pensei que obviamente ia passar por isso. Foi por isso que pensei que só ia fazer aquilo durante um ano. Mas depois apercebi-me de que, nesse lugar em particular [na Casa], onde os homens iam sempre sozinhos — não era um daqueles lugares onde iam com cinco ou seis homens, o que os faz sentir mais fortes –, a mulher em frente deles não é uma prostituta, é apenas uma mulher. Uma mulher que merece a mesma atenção e cuidado que outra mulher qualquer. Não vou mentir, obviamente que há homens maus ou rudes ou verdadeiros idiotas, mas não diria que correspondem a 95% dos homens [que frequentam bordéis]. Isso é o que a maioria das pessoas pensa ser verdade.

Era isso que também pensava ser verdade?
Sim, claro. Tinha imensos preconceitos.

"Não vou mentir, obviamente que há homens maus ou rudes ou verdadeiros idiotas, mas não diria que correspondem a 95% dos homens [que frequentam bordéis]. Isso é o que a maioria das pessoas pensa ser verdade."

Mas não partiu para o trabalho sem qualquer noção de como as coisas funcionam. Ou partiu?
Existe prostituição em França. Eu própria o fiz quando era estudante e fui paga para fazer sexo, mas não era um emprego, era uma coisa que tinha de fazer às escondidas correndo o risco de ser violada ou morta. Não era a mesma coisa. Não era mesmo a mesma coisa. Não sabia nada sobre como uma casa de prostituição funcionava, e era isso que me interessava. Não estava interessada em trabalhar na rua ou de forma independente, estava interessada no lugar, no bordel. O lugar per se. A casa, os quartos, como é que são partilhados. Trabalhar num lugar assim [uma casa de prostituição] não é provavelmente a solução mais lucrativa. Acho que é possível ganhar mais dinheiro de forma independente, mas para isso é preciso muito tempo, muito investimento pessoal, e, para ser honesta, queria apenas trabalhar num sítio onde chegasse, me dessem o meu cliente e depois me fosse embora. Não era a minha casa, não era o meu número de telefone. Provavelmente teria ganho mais dinheiro de outra forma, mas foi este sistema em particular, o de uma casa de prostituição, que me interessou.

Conheceu mulheres que viviam no bordel onde trabalhavam?
[A Casa] não era o tipo de lugar onde as mulheres vivessem. No primeiro sítio de que falo no livro [o Carroussel], sim, havia algumas mulheres que viviam lá. Acho que isso é indicador de outra mentalidade, porque acho que ninguém quer viver no local onde trabalha se tiver outra opção. Em relação ao primeiro sítio, acho que se podia esperar isso, mas não era um local que fosse bom para as mulheres. Viver lá significava estar disponível 24 horas por dia e sete dias por semana. A Casa não era um sítio onde as mulheres pudessem viver. Se houvesse algum problema, podiam passar lá a noite, mas as marcações só eram feitas entre as 10 da manhã e as 10 da noite. Fora desse horário, não havia ninguém na Casa e ninguém estava a trabalhar.

Tal como noutro emprego qualquer.
Sim, como noutro trabalho qualquer. A dona da Casa alugava-nos o espaço. Havia um valor que era cobrado para cobrir o preço do quarto e havia um valor pelo sexo em si. Éramos também livres para dizermos que queríamos isto por aquilo ou isto pelo outro. Não havia uma tabela que éramos obrigadas a seguir.

FRANCE-LITERATURE-PORTRAIT

Emma Becker nasceu em França e viveu em Paris até se mudar para Berlim, onde escreveu "A Casa" após trabalhar durante dois anos e meio como prostituta

AFP via Getty Images

Falou no primeiro bordel em que trabalhou, o Carroussel, e no segundo, na Casa, e em como eram diferentes um do outro. Podemos dizer que dois sítios representam dois lados do negócio da prostituição em Berlim?
Diria que a maioria dos bordéis em Berlim são semelhantes ao primeiro lugar [o Carroussel]. Conheço apenas três ou quatro sítios que podem ser iguais à Casa. A diferença é que esses lugares são geridos por trabalhadoras do sexo ou antigas trabalhadoras do sexo e não por pessoas que estão apenas interessadas em fazer dinheiro. Pessoas que sabem como é o trabalho e que tratam as funcionárias como seres humanos. Mas há também uma ou duas casas muito famosas em Berlim que têm três mil metros quadrados e os homens são convidados a passar lá o dia ou a noite, têm piscinas…

São mais caras? Para clientes com mais dinheiro para gastar?
Não, não são as mais caras. São uma espécie de Disneyland da prostituição. Infelizmente, o preço e a qualidade não têm nada a ver uma com a outra. A primeira casa de que falo, a que era má, era mais cara do que a segunda [que era boa]. As raparigas eram tratadas como merda. [O preço] não mostra como as mulheres são tratadas.

Isso quer dizer que, apesar da legalidade, a maioria das casas não trata bem as suas funcionárias?
Não diria isso tão taxativamente, mas o facto de a prostituição ser legal em vez de ser descriminalizada significada que é como qualquer outro negócio liberal e que nada os impede de por preços competitivos e ninguém os força a tratar mais gentilmente os empregados do que num restaurante, num bar ou noutro tipo de lugar. Seria injusto dizer que a maioria das casas são más para as mulheres que lá trabalham porque não conheço todos os bordéis em Berlim. Diria que é como em qualquer outro lugar no mundo, onde existem bons estabelecimentos, com pessoas humanas, e maus estabelecimentos, onde somos tratados como merda. Mas penso que a Casa devia ser um modelo para as casas de prostituição em geral. Toda a gente devia ser bem tratada. É uma profissão que devia ser tratada como outra qualquer. Claro que é uma profissão particular. É preciso um grande compromisso pessoal, físico e mental. Estaria a mentir se dissesse que é a mesma coisa que ser empregada de mesa, mas faço sempre essa comparação porque acho que as trabalhadoras do sexo deviam ser tratadas como as empregadas de mesa são — como seres humanos. Isso seria o melhor. As pessoas que fazem as leis deviam perceber que a prostituição existe, existirá sempre, e que a única coisa que se pode fazer é tratar as trabalhadoras do sexo como seres humanos, em vez de as tratar como criminosas ou como vítimas sem voz.

"As pessoas que fazem as leis deviam perceber que a prostituição existe, existirá sempre, e que a única coisa que se pode fazer é tratar as trabalhadoras do sexo como seres humanos, em vez de as tratar como criminosas ou como vítimas sem voz."

A propósito do Carrossel, diz a certa altura no livro: “Esperava que a minha voz humanizasse a realidade da prostituição — porque os livros têm esse poder”. 
Esse foi o momento em que me apercebi que não era uma jornalista e que o meu fascínio pela prostituição vinha da ternura pela menina dentro de mim que tinha lido aqueles livros e que tinha pensado: “Oh, parecem princesas, rainhas”. Tinha essa ingenuidade e percebi que estava cheia de preconceitos e que não sabia nada sobre prostitutas. Trabalhava nesse sítio horrível, onde não tinha clientes porque não havia clientes e as raparigas eram tratadas como carne. Desesperada, estava a pensar: “Bem, a única coisa que posso fazer é pôr ali a minha própria poesia e tentar tornar o livro mais humano”. Depois disso tropecei na segunda casa e apercebi-me que [o livro] não precisava da minha poesia, porque [o sítio] funcionava bem e era bonito o suficiente e tocante o suficiente.

Foi difícil encontrar um equilíbrio entre uma abordagem mais descritiva e uma mais literária?
Quando estava a trabalhar na primeira casa [o Carroussel], era fácil pensar no livro como uma espécie de ensaio jornalístico, porque não sentia que tivesse qualquer ligação com aquelas raparigas. Vinham na sua maioria do leste da Europa e, tal como eu, não falavam alemão. Falávamos num mau inglês. Sentia que não tinham a mesma liberdade que eu. Viviam lá. Não sei se podiam ter fugido como fugi. Era fácil para mim ter um certo distanciamento jornalístico, porque não sentia que fazia parte daquilo.

Sentia-se uma intrusa.
Exato. Estava a tirar uma fotografia, basicamente. Quando descobri a segunda casa, foi quando regressei ao meu eu-escritor, porque podia ser eu própria. Podia ser a parte de mim que era escritora e depois descobri a minha faceta de trabalhadora do sexo e de mulher, que foi muito interessante descrever. Ali não sentia qualquer diferença das minhas colegas. Tinha tido os mesmos trabalhos que elas. Podia ser uma empregada de mesa, mas era uma trabalhadora do sexo. Foi muito interessante descrever que tipo de influência [o trabalho] tinha no meu dia a dia, na minha forma de pensar sobre o modo como os homens e as mulheres interagem.

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O trabalho numa casa de prostituição permitiu a Emma Becker ter material e tempo para escrever o seu novo livro. A escritora tem três romances publicados

AFP via Getty Images

Qual era a principal motivação das mulheres que conheceu? Era o dinheiro? Ou havia outras razões para terem escolhido aquela profissão?
Quem é que não trabalha por causa do dinheiro? Acho que essa é a primeira pergunta que devemos fazer: porque é que uma prostituta haveria de trabalhar por outra coisa que não dinheiro? Percebo que por trás da sua pergunta esteja também se o estavam a fazer de livre e espontânea vontade. Claro que é uma escolha consciente que se faz, porque vamos ter de mentir sobre aquilo que fazemos, seja à família, aos amigos ou ao médico. É um trabalho sobre o qual não se pode dizer abertamente: “Sim, sou uma trabalhadora do sexo”. Quer dizer, poder pode, mas vai revelar-se difícil a certa altura. Acho que a maioria das raparigas que lá trabalhavam faziam-no porque era menos trabalhoso e dava mais dinheiro. [Era] o luxo de ter mais tempo [livre]. Eu tinha mais tempo para escrever, para viver, para fazer o que gosto de fazer, que é escrever, ler, passear, caminhar ao sol. Não é que seja uma fã do trabalho. Como muitas pessoas, gostava de trabalhar o menos possível e conseguir o máximo de dinheiro. Foi uma escolha que fiz. Outras mulheres tinham filhos e tinham mais tempo para eles trabalhando numa casa de prostituição. Outras eram estudantes ou artistas. Era uma boa maneira de fazer dinheiro. Não sei dizer se havia um namorado a dizer que deviam fazê-lo para ganharem dinheiro para ele. Não sei se tinham proxenetas. Mas, por outro lado, não os temos todos? Chamam-se impostos, renda para pagar, miúdos para alimentar… Nesse sentido, todos temos uma espécie de proxeneta. Percebo a sua pergunta, mas nunca ninguém me perguntou porque é que era empregada de mesa quando era empregada de mesa. Fazia sentido que o fizesse para ganhar dinheiro para pagar as minhas coisas. Muitas vezes é isso que vai encontrar por trás da decisão de ser uma trabalhadora do sexo. É o que se chama viver numa sociedade capitalista. Trata-se de ganhar dinheiro para pagar pelas coisas que tornam esta vida suportável.

De ter uma boa vida.
Sim, de ter uma boa vida, ter um bocadinho mais de conforto do que aquele que teríamos com um emprego normal. O que é verdade quando passamos oito horas num lugar como a Casa, de onde saímos com a mesma quantidade de dinheiro que faríamos numa semana a trabalhar numa loja. Claro que entendo que façam essa escolha. Claro que sim. Acho que muitos homens também o fariam se lhes fosse fisicamente possível serem trabalhadores do sexo como as mulheres.

Apesar de o seu livro falar sobre prostituição e descrever como é trabalhar num bordel, não existem muitas cenas explícitas de sexo.
Não, é verdade.

"Fazer da prostituição uma blasfémia é uma hipocrisia quando vemos aquilo com que as mulheres têm de lidar diariamente no que diz respeito ao sexo."

Porquê? Porque optou por focar-se nas relações humanas?
Isso acabou por ser o foco, mas devo dizer que quando comecei a trabalhar pensava que ia encontrar homens com fantasias incríveis, coisas das quais nunca tinha ouvido falar. Pensava que ia escrever cenas escaldantes, mas a verdade é que o sexo naquele contexto, num bordel, é extremamente banal, extremamente comum. É o tipo de sexo que se tem num sábado à noite com o marido ao fim de dez anos de casamento. O que quero dizer com isso é que muitos homens ficam satisfeitos em fazer sexo com uma rapariga de quatro, porque as mulheres deles não fazem disso. Apanhei poucos homens que tinham fantasias que hesitavam partilhar com as namoradas ou algo assim. [O sexo] era desinteressante, não havia nada para escrever sobre isso. O que é interessante, contudo, é como é que duas pessoas que nunca se conheceram, que acabaram de se conhecer para trocarem dinheiro, acabam dentro uma da outra e talvez a ter orgamos — pelo menos uma delas. É fascinante, e achei interessante compará-lo com o sexo que temos de graça, em troca de dinheiro nenhum. Onde é que está a diferença entre o sexo que se tem com um homem que nos pagou e com um homem que é nosso namorado? Às vezes não nos apetece, mas acabamos por fazê-lo… Porque é que as trabalhadoras do sexo são tão desaprovadas quando ninguém fala do tipo de sexo com o qual concordamos apenas para sermos deixadas em paz? Qual é a grande diferença? Não estou a dizer que um é bom e que o outro é mau, estou a dizer que fazer da prostituição uma blasfémia é uma hipocrisia quando vemos aquilo com que as mulheres têm de lidar diariamente no que diz respeito ao sexo. Estou a falar da forma como os homens tratam as mulheres de uma maneira geral. Por exemplo, não acho que os homens tratem melhor as mulheres no Tinder do que tratariam as mulheres num bordel só porque não lhes estão a pagar. Muitos homens usam o Tinder para terem sexo grátis. Então, por que não ser paga? É algo que temos de aprender — que nos mentiram no que diz respeito ao amor e ao sexo. Quando somos pequenas, somos levadas a acreditar que o sexo e amor estão ligados e que não pode ser só sexo, tem de ser outra coisa. Aos homens é dito que o sexo pode ser apenas isso, que não tem de significar outra coisa. Primeiro que tudo, podemos usar os nossos corpos como quisermos e, em segundo lugar, se os homens se vão comportar como clientes sem pagar, porque é que não hão-de pagar? Não estou a defender a prostituição, estou apenas a dizer que é uma solução para muita gente. Mas quem é que devemos culpar? São as mulheres? São os homens? Ou é a sociedade em que vivemos?

No entanto, há um preconceito que parece ser impossível de ultrapassar.
Sempre que tem a ver com sexo, as pessoas sentem que têm direito a ter uma opinião, porque toda gente faz sexo.

Uma coisa que fez sempre questão de dizer abertamente é que A Casa é baseado em experiências reais — nas suas experiências reais como prostituta. Porque é que sentiu que tinha de ser sincera em relação a isso? Calculo que as reações nem sempre tenham sido as melhores. 
Não, as reações nem sempre foram boas. Nunca me passou pela cabeça usar um pseudónimo ou mudar o meu nome ou algo assim.

Podia ter dito que era baseado nas experiências de outras pessoas. 
Sim, claro, mas não gostava da ideia. Queria ser alguém que fez o trabalho e não tinha vergonha disso. E não tinha, porque trabalhei num sítio do qual não tinha de ter vergonha. Podia ter orgulho nele, porque, primeiro, não fui tratada como uma prostituta, fui tratada como uma atriz, uma artista. Éramos tratadas como artistas, porque o éramos. A sedução é teatro. É puro teatro, não é nada mais. É uma performance. Quis ser sincera porque não queria parecer que inventei uma história. Como trabalhei [numa casa de prostituição], sabia que as prostitutas eram pessoas reais e estavam fartas de ver a sua voz roubada, o que compreendo perfeitamente. Se fizermos um trabalho e toda a gente falar mal dele sem pedir a nossa opinião… Não queria fazer parte disso.

"Todos os homens acreditam que nós, mulheres, temos esta fantasia de sermos pagas para ter sexo com um estranho. Isso nunca foi uma fantasia minha, isso nunca me excitou."

Quis que as pessoas soubessem que o que contava era real. Que eram coisas que tinha realmente visto e experienciado.
Exatamente. Não via qual era o objetivo de inventar uma história assim. Parecia banal. Todos os homens acreditam que nós, mulheres, temos esta fantasia de sermos pagas para ter sexo com um estranho. Isso nunca foi uma fantasia minha, isso nunca me excitou. Excita-me pensar que fui uma trabalhadora do sexo, que me tornei uma daquelas mulheres sobre as quais li quando era jovem, esse símbolo de luxúria e eroticismo, essa força imparável. Isso foi excitante, mas não a ideia de ter sexo com um estranho. Queria que o livro fosse verdadeiro, que tivesse os meus verdadeiros sentimentos. Claro que podemos inventar, mas não é o que faço. Não invento.

Mas existem partes ficcionadas. Não é tudo verdade.
Claro. Por muitas, muitas razões. Quando escrevemos sobre nós, trata-se imediatamente de ficção. Não somos objetivos em relação a nós próprios. Nunca estamos a escrever sobre nós, escrevemos o que pensamos que somos e a maneira como essa perceção vai mudando através do trabalho. Isso era interessante, [descrever] como é que o meu verdadeiro eu, através do trabalho e da ficcionalização constante, ia sendo torcido e dobrado e como é que ia voltar à sua forma original assim que saísse daquele lugar.

Como é que esta experiência a mudou? E como mudou a forma como encara as relações entre homens e mulheres?
Posso dizer-lhe que tenho menos paciência para os homens. Adoro homens. Absolutamente adoro homens. Tinha uma relação muito utópica com eles, ficava impressionada, queria impressioná-los. Depois apercebi-me quão pouco é preciso para ficarem impressionados sexualmente. Toda essa energia e tempo que lhe damos… Mas, ao mesmo tempo, tive clientes que se sentiam sozinhos. Eram bons homens, feios, que não tinham tido a oportunidade que deviam ter tido. [Nessas situações] já não vemos homens e mulheres, vemos dois seres humanos em frente um ao outro. É difícil por vezes não sentir algum tipo de ternura por eles ou, pelo menos, alguma camaradagem humana. Comove-me de alguma forma. Comove alguma coisa dentro de mim que não tem a ver com sermos homens ou mulheres. É alguma coisa superior, não sei. Foi a muitos níveis uma experiência rica, fascinante e humana, que ultrapassa o facto de se ser mulher ou homem. É este sentimento de que as pessoas estão apenas a tentar aproximar-se umas das outras e a tentar sentir-se menos sozinhas. Provavelmente porque esse foi sempre o meu problema também. Dentro do meu próprio regime pessoal, isso faz todo o sentido.

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