Francisco Rocha e Armando Cunha tomam “um fino” ao balcão do café Universo. Raquel Rocha está com Fernanda Rocha, que não herdou o nome do marido Armando e que, curiosamente, tem apelido igual ao casal vizinho. Estão sentadas à mesa. São poucos os metros que os separam do prédio onde estiveram fechados durante uma semana — sem luz, sem água e sem gás.
Olhando de frente, a partir do Jardim da Marginal, há um edifício separado por dois blocos, nascente e poente, sem comunicação entre si. O prédio Coutinho é hoje uma das construções mais famosas do país. Para já, e depois de quase 20 anos de braço de ferro, vai continuar a ter moradores. Depois de o tribunal ter aprovado uma providência cautelar a parar os despejos, os moradores conseguiram sair — e o Observador conseguiu entrar. Lá dentro, foi possível ver e fotografar a vida no interior do edifício mais debatido dos últimos dias.
O T3 do 8.º esquerdo, lado nascente, tem donos há 45 anos. Escura, a casa pouco ou nada mudou desde esse tempo. Raquel Rocha, de Viana do Castelo e emigrante em França, convenceu o marido, durante umas férias em Portugal, a comprar um apartamento na cidade onde nasceu. Custou 1100 contos, com parte do dinheiro emprestado.
Raquel e Francisco não põem de parte terem de entregar a chave da casa onde vivem há 12 anos. Mas, para o casal, a justificação da demolição do prédio com a criação de um novo mercado municipal “é uma mentira”.
Na casa — que esteve sem água canalizada, luz elétrica e gás durante uma semana — sente-se uma quase total normalidade. Há bolachas Maria, fruta e pão de forma em cima das bancadas da cozinha, assim como tupperwares descartáveis de sopa.
No entanto, um pequeno fogão azul de campismo destaca-se no sítio onde costuma ver-se apenas um fogão elétrico. Subiu içado por uma corda nas traseiras do prédio, à revelia da vigilância policial. Pelo mesmo método, também subiram algumas refeições quentes, toalhetes e lanternas. A televisão deixou de funcionar, por falta de eletricidade, mas jogava-se Candy Crush nos tablets — um para cada um. E bateria? “Havia luz nos corredores do prédio.”
Raquel caminha, preocupada, entre a sala e a cozinha. “Parece que a água ainda não vem hoje.” Nem o gás, porque ainda só há sinal de eletricidade nos apartamentos. Entre olhares atentos para a paisagem serena do rio Lima, Raquel pede desculpa várias vezes pela desarrumação da casa. Diz que rezou para que a providência cautelar, interposta pelos advogados dos moradores a 24 de junho, tivesse um resultado positivo. Mas nem sempre acreditou. De malas feitas e móveis despidos, estava já preparada para o pior.
Francisco não esconde o sorriso: “Hoje estou feliz”. Está incumbido pela mulher da tarefa de falar, porque ela, com um travo de sotaque francês, “não se expressa tão bem”. É notório no discurso um esforço para não se vitimizar. Mas, quando fala da mulher, faz notar quem tem desanimado mais.
A moradora levanta ligeiramente a camisola enquanto ajeita os colares dourados e mostra como têm sido difíceis os últimos dias. Uma cicatriz divide-lhe o abdómen a meio, na vertical. Foi cancro do estômago. “Quando estamos doentes, até o facto de nos chamarem ‘menina’ no hospital faz diferença”, comenta. Nesta semana que passou perdeu dois quilos e meio — “mas foi pelos nervos”, que comida não faltou. O marido perdeu três.
Nuns metros, a distância pode ser maior que de Versailles a Paris
Armando Cunha e Fernanda Rocha dão-se bem com os Rocha, mas, durante uma semana, apesar de viverem paredes unidas com eles, pouco ou nada conversaram. O advogado Magalhães Sant’Ana andou de nascente a poente (e vice-versa) para chegar a acordos com todos os moradores.
Em 1976, dois anos depois dos vizinhos, menos interessados pela vista, Armando e Fernanda compraram um T3 no segundo andar. “Visitámos o 2.º andar e o 11º. Este não tem tanta vista mas não interessa. Farta de subir escadas estava eu em França”, conta Fernanda ao Observador.
Em Versailles viveram e trabalharam como emigrantes. Ela nas limpezas; ele na construção civil. Também durante umas férias de Verão se apaixonaram pelo prédio — “gostámos e comprámos”. Também pagaram 1100 contos, chave na mão.
Ela viveu 33 anos em França e ele 41. A parede a sul da sala do apartamento mostra um retrato antigo, a sépia, dos donos. Aos 17 anos casaram; há 58 que não se largam.
Em cima da bancada da cozinha há o bolo de chocolate que Fernanda descongelou e “por acaso calhou mesmo bem”. Lá em casa, ao almoço de segunda-feira, o dia em que foi decidida a providência cautelar, comeu-se batatas com bacalhau e salada de cenoura e courgete. No dia anterior, Fernanda cozinhou massa com carne e até os Agostinhos, do 5.º piso, provaram o prato.
Sem eletricidade, “não se via televisão mas fazia-se palavras cruzadas francesas”, com a ajuda de velas e de duas lanternas, “uma trazida pelo morador Agostinho e outra comprada numa loja árabe”.
Ao contrário dos Rocha, os Cunha não pensaram, a princípio, que poderiam perder as casas. Hoje, estão conformados. “Se o tribunal decidir isso, custa-me muito. É uma casa que me dá muito conforto por fora e por dentro”, confessa Armando, de voz anasalada. “Quando se faz qualquer coisa é para ganhar ou perder, como no futebol”, remata Fernanda. Como há uma águia de madeira em cima do móvel ao canto, na sala, Armando confessa-se um nortenho benfiquista desde que o clube goleou o Torreense por 8 -1 .
Quase terminada “a visita ao palácio”, como lhe chama Fernanda, falta conhecer a varanda, que, mais do que o apartamento, tem sido pouso habitual nestes últimos 19 anos. Duas fotografias de rostos juvenis mas familiares sobressaem nas paredes, junto a duas poltronas. Ao lado, as orquídeas e as palavras cruzadas francesas. Lá em baixo, a vista de há uma semana, trocada agora por abraços da bisneta mais nova, que lhe pede o prato favorito. Está prometido, mas para quando houver gás.