A dada altura do espetáculo-instalação “Suite 4”, de Joris Lacoste – o último da série composto pelo projeto Encyclopédie de la parole – escuta-se um excerto de uma intervenção de Joacine Katar Moreira enquanto deputada da Assembleia da República (entre muitos outros discursos, proferidos em diferentes línguas). Seja pelo timbre, o tom ou uma marca inconfundível da oradora — neste caso, a gaguez — percebemos rapidamente que o importante, como também explica o criador do espectáculo em cena, não é tanto o que se diz, mas a forma como é dito. O som da palavra como material plástico é a estrela do espetáculo que se estreia em Portugal no dia 1 de fevereiro, na Culturgest, em Lisboa, seguido de uma outra apresentação, no dia 4, no Teatro Municipal do Porto — Campo Alegre.
“Suite 4” faz-se de um prólogo e cinco atos, onde é a surpresa que toma conta do espectador, que desconhece o que irá escutar. “Speak to me”: as palavras do célebre ator Richard Burton numa antiga produção de Hamlet, iniciam o espetáculo polifónico, onde várias práticas discursivas – algumas delas absolutamente banais e quotidianos – se fazem escutar.
Cabe ao espectador ter ouvidos para tudo, desde o choro de uma criança às indicações de uma guia turística italiana, que fala de Nero e das razões que levaram o imperador a incendiar Roma de noite para o dia. Mas há também outros documentos sonoros relevantes, desde impactantes discursos políticos até à mensagem final de uma mulher mexicana, Bertha Elena Muñoz, antes da sua morte e já depois de ter sido uma figura central na Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca, um conjunto de organizações sociais unidas depois de uma tentativa de repressão de professores em protesto, por parte do governo estatal na capital de Oaxaca, que originou um longo período de contestação e violência no país.
As ligações, mais ou menos inusitadas, entre estes fragmentos criam um momento singular de perceção, que são igualmente reflexo de uma aventura coletiva, surgida em 2007. Há pouca luz, somente uma máquina de fumo. Elementos minimalistas que antecedem uma espécie de dispositivo cénico feito de ecrãs, onde surgem como fantasmas algumas das palavras que se irão escutar ao longo do espetáculo. Palavras que surgem e desaparecem por entre o fumo, apenas amparadas pelo ambiente sonoro criado propositadamente pelo ensemble de músicos belgas Ictus, que interpretam ao vivo música de de Sébastien Roux e Pierre-Yves Macé. Tal qual um livro que se ouve, em formato de audiobook,
A ordem do discurso
Em conjunto com uma equipa vasta de intervenientes, oriundos de diferentes campos de estudo, do teatro à antropologia, passando pela rádio e pela etnologia, o artista francês Joris Lacoste começou a construir um vasto acervo de vozes, contendo mais de mil gravações de fragmentos de discursos, anúncios, confidências, leituras, instruções, entre outros tipos de registos, em mais de vinte línguas.
“Inicialmente, o objetivo era apenas o de criar um arquivo que reunisse diferentes formas de falar. Foi antes mesmo de pensar em criar um conjunto de espetáculos em torno destes documentos sonoros”, explica ao Observador, durante uma das primeiras apresentações do espetáculo, em Paris. Numa perspetiva iconoclasta, e inspirado pela multiplicidade de vozes e formas de falar que escutava na capital francesa ou por outro locais onde passava, reuniu um grupo de pessoas para iniciar uma abordagem de exploração face ao “discurso real” e às nuances que surgem nas diferentes formas de falar, até mesmo nas características sonoras de cada língua.
O processo coletivo rapidamente se transformaria no projeto Encyclopédie de la parole, um arquivo que, desde então, tem vindo a colecionar todos os tipos de gravações e classificando-as de acordo com fenómenos particulares da fala — cadência, oralidade, timbre, ênfase, espaçamento, saturação ou melodia. Cada uma dessas formas constitui uma entrada na enciclopédia, equipada com um corpus sonoro e uma nota explicativa e contextual. Foi a forma que encontraram de voltar também a colocar o foco no som e não apenas na imagem. Num tempo que seria de advento das redes sociais e da potência da imagem, regressaram ao conceito de enciclopédia, como a de Diderot e Jean le Rond d’Alembert, responsáveis pela primeira enciclopédia moderna, datada de 1772, mas desta feita focada exclusivamente num formato auditivo.
Dos discursos públicos aos discursos privados, “o que se tentou encontrar foram conexões em palavras ditas em contextos diferentes e campos distintos”. Os fenómenos discursivos foram, por isso, agrupados nos fenómenos escolhidos a cada momento. “Numa certa altura do processo focámo-nos apenas no fenómeno da leitura”, exemplifica.
Depois de cada reunião de documentos, agrupados por tópicos, o conjunto de investigadores pedia a um designer de som para compor uma partitura, que pudesse ser escutada por todos. Foi assim, e a partir desse acervo, que se criou a série de espetáculos “Suites”, que se tornou um sucesso em festivais e teatros em todo o mundo. Começou com “Suite nº1: ABC”, espetáculo que abriu o Alkantara Festival, em 2014, e não mais parou.
“No fundo, encontrámos uma forma mais didática de apresentar o arquivo que estava a ser criado, em que se tenta perceber que sentido damos ao que escutamos”, sintetiza. Mas ao contrário das primeiras três suites, onde um grupo de atores criava uma leitura encenada dos documentos sonoros selecionados, chegado ao fim do processo, resta apenas a audição do espectador como forma de exploração, numa orquestração de vozes que transmite a variedade e a riqueza infindável da comunicação humana.
Um arquivo para o futuro
O ciclo de espetáculos que foi sendo apresentado também em Portugal, em Lisboa e no Porto, é composto por diferentes línguas. Escutam-se vozes em inglês, italiano, alemão, francês, hebreu, tailandês, espanhol, japonês, malaiala, sueco, neerlandês, árabe, português, napolitano, russo, gaulês, escocês, coreano, susu, xangainês, catalão, siciliano, grego e tomáraho. No texto de apresentação do novo espetáculo explica-se que se trata de uma “viagem sensorial que traduz a pluralidade do mundo e faz com que o espectador navegue de língua para língua, de cidade para cidade, de época para época, de forma para forma e de tema para tema”.
Uma conversa entre dois bebés, um discurso português marcado por um forte dialeto local, uma visita a um museu americano, um concurso de líderes de claques tailandesas: eis são algumas das falas que se entrecruzam no espetáculo que vem agora a Lisboa e ao Porto e que permite ao público viajar através dos diálogos. Numa tradução livre, o slogan que mapeou o trabalho deste coletivo diz “somos todos especialistas em fala”. O arquivo que criaram, explica Joris Lacoste, serve para que no futuro, com ou sem imagem, consigamos continuar a prestar atenção “ao que é dito, onde é dito e à forma como é dito”.
Uma das inspirações para esta enciclopédia são os chamados Archives de la parole, criados e apresentados em 1911, pelo historiador da língua francesa Ferdinand Brunot. Foi graças ao invento do fonógrafo que estes arquivos passaram a ser um local de registo e preservação da língua falada. Entre alguns dos seus documentos mais conhecidos estão os registos de voz únicos de Guillaume Apollinaire, Émile Durkheim, Alfred Dreyfus. Passado quase um século desde o lançamento desse projeto, a Encyclopédie de la parole vai mais longe, deixando um arquivo que sob a forma de espetáculo ou partitura auditiva serve “como forma de entendimento sobre o mundo em que vivemos”.
“Acredito que a forma como escutamos estas palavras, para lá da nossa cultura visual, realça o poder da palavra e propõe uma reflexão sobre como a forma como falamos pode ser determinante num contexto social ou político”, acrescenta o encenador e artista francês ao Observador.
Entre nós e as palavras
De regresso a “Suite 4”, aquilo que no início do espetáculo surge como uma constelação de vozes entrelaçadas pela música do ensemble ganha depois uma forma artística que nos transporta para outros lugares do mundo. “Seria muito fácil colocar um vídeo ou imagens associadas àquilo que estamos a ouvir, mas de facto não é isso que se pretende. Ao longo dos anos, nós próprios como coletores percebemos que devíamos escutar, mais do que ver. Não julgamos um livro pela capa… aqui aplica-se o mesmo princípio, é preciso ouvir antes de julgar”, completa.
Ao longo dos séculos há palavras e discursos que ecoam entre nós. Dos discursos de Winston Chruchill às palavras de J. Robert Oppenheimer (“Now I am become Death, the destroyer of worlds”), proferidas aquando do lançamento de bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki. Mas voltamos ao princípio circundante: o que importa não é tanto o que é dito, mas sim a forma como ecoa entre nós. O porquê das palavras e do seu registo sonoro, diz Joris Lacoste, ajuda a explicar a nossa relação humana e muita da história recente do mundo. “O espetáculo na forma como foi concebido lida com a reação das pessoas, que tanto pode ser de estranheza como de curiosidade, riso ou desconforto”.
Perante uma ideia de narrativa contemporânea, cabe ao ouvinte criar uma história que explique o que acabou de ouvir. “Cada um fará a sua viagem, quer isso modifique ou não a sua relação com a realidade. Depois do espetáculo, espero que as pessoas escutem as palavras de forma diferente e que prestem atenção a aspetos da fala a que antes não prestavam. Acredito que a forma como ouvimos este espetáculo pode contribuir para mudar a forma como nos relacionamos com os outros”, sublinha.
Na busca por outras formas de empatia – que é na verdade um dos aspetos que se pode retirar desta experiência sonora –, recuperam-se os versos do poema “You are welcome to Elsinore” de Mário Cesariny: “Entre nós e as palavras, os emparedados / e entre nós e as palavras, o nosso dever falar”. A questão que se impõe no fim do espetáculo é, certamente, uma que paira no início. Trata-se de um concerto, de uma peça de teatro ou simplesmente de uma criação artística cujas fronteiras e limites estão ainda por determinar? Seja qual for a resposta, é tempo de escutar para depois se voltar a falar.