Nem a pandemia, os receios do futuro e a paralisação em parte da indústria musical os travou. Chegado o fim do mês de junho, revemos aquilo que foi a produção musical portuguesa no primeiro semestre deste ano de 2020. Do fado reinventado ao rap, das batidas de dança da periferia de Lisboa à nova pop e ao jazz, estes foram os discos que nos conquistaram o ouvido, a cabeça e o coração — e que nos fizeram companhia enquanto passávamos mais tempo em casa.

“Não Fales Nela Que a Mentes”

Nídia

Há dois anos, Nídia É Má, Nídia é Fudida foi a revelação que precisávamos, a novidade certa para as pistas de dança reais e imaginárias. Esse álbum anterior, que teve grande destaque internacional, foi a confirmação de que Nídia (anteriormente conhecida como Nídia Minaj) era uma das estrelas maiores do vasto catálogo da editora Príncipe Discos. Não Fales Nela Que a Mentes não baixa a fasquia: isto é música eletrónica daqui e de agora, da periferia de Lisboa e das periferias de França para o mundo. É tudo um luxo de produção, batidas instrumentais que soam a algo de novo sem destoar inteiramente do universo rítmico da Príncipe: “Popo” é magnífica, “RAP Complet” tem detalhes e mais detalhes que nos fazem gabar a imaginação de Nídia para não se deixar aprisionar por movimentos, “Raps” tem o mesmo nível, “Rap Tentativa” é luxuriante. Pensemos na maioria dos bons produtores de música eletrónica e DJs internacionais que andam pelos grandes (e bons) festivais de verão — Nídia não lhes fica nada atrás e há aqui a confirmação de que mesmo no bom leque de artistas da Príncipe, é única.

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“Eva”

Cristina Branco

Cristina Branco nunca foi uma fadista tradicional, mas o fado ficou definitivamente para trás. Ficou uma lição da escola fadista: as palavras são supremas e quando se canta a vida com honestidade, canta-se melhor. Desde Menina, de 2016, que Cristina Branco vem misturando o piano à guitarra portuguesa, o contrabaixo à voz, requisitando canções a quem as anda a escrever bem e cantando histórias quotidianas, episódios concretos, letras menos metafísicas. Branco (2018) apurou a fórmula, mas em Eva a cantora expõe-se, canta o que lhe anda a acontecer na vida. Mais do que isso: Eva traz-nos canções estupendas, como “Delicadeza” (que grande letra de Francisca Cortesão, que bonitos os arranjos da Cristina Branco Band), “Quando Eu Quiser” (tropical q.b., contrabaixo cool, liberdade reclamada com a voz), uma “Maria” cheia de ginga leve (com o dedo de Sara Tavares) e uma daquelas baladas que poucos como Márcia sabem escrever, “Leva”, a fechar o disco em beleza. Isto é o que se chama “disco inspirado”. Boas canções e bem cantadas — de que mais precisamos?

“Kriola”

Dino D’Santiago

Tem estado imparável. Em 2018 a lusofonia ganhou um daqueles álbuns que podem convencer ou não por inteiro todos os que o oiçam, mas que (gostos à parte) são indiscutivelmente importantes. Em 2019, nos intervalos entre palcos percorridos um pouco por todo o lado, Dino D’Santiago ainda lançou um EP de remisturas (de Pedro Mafama e PEDRO, Branko e PEDRO, de Moullinex e da dupla DJ Glue e Here’s Johnny) e um EP de canções originais (Sotavento) que mostrava que ainda era possível dar passos musicais mais imaginativos do que os anteriores. Este ano chega Kriola e já não há dúvidas, ninguém nos põe a dançar desajeitadamente — a nós, pés de chumbo incuráveis, branquelas com vagas noções toscas de ritmo — como Dino D’Santiago. “Roda” é para dançar ao fim da noite, “My Lover” é tradição e modernidade, Cabo Verde e EUA, e “Sofia” é afro-beat eletrónico com assinatura própria. Mas as pérolas maiores são “Kriolu” com Julinho KSD — saudade, melancolia e arruaça da boa na mesma canção, diversidade celebrada ao microfone (“branco com preto / geração de ouro”) — e “Nhôs Obi” com Vado MKA.

“Madrepérola”

Capicua

É um dos discos que marcam esta década do hip-hop português, se considerarmos que termina no final deste ano. É ótimo ouvir Capicua arrancar logo em modo furacão em “Passiflora” — vai tudo à frente, críticos, puristas do rap, os que franzem o sobrolho ao sucesso. Mas todo o disco é pensado ao detalhe, com o aprumo na escrita dado pelo conhecimento que se vai ganhando com os anos, com batidas instrumentais inatacáveis (todas elas). É sobretudo um álbum pensado como tal, com vários ritmos, tanto mais melancólico e mais cançonetista como mais rap e desabrido. Não há grandes canções e canções totalmente ao lado, o que temos são 48 minutos sem grandes gorduras, com homenagens ao Porto (“Circunvalação”), sátiras à vida moderna na era millenial (“Guadí”), reflexões sobre a maternidade (“Parto Sem Dor”), conselhos pouco paternalistas à miudagem (“Cartas a Jovens Poetas”), refrões para derreter corações (oiça-se Mallu Magalhães em “Planetário”) e uma candidata a melhor faixa hip-hop de 2020, “Mátria”, com os brasileiros Emicida, Rincon Sapiência e Rael. Capicua mede-se com qualquer rapper e com qualquer escritor de canções — e os produtores de batidas que requisitou medem-se com os melhores do berço do rap, os EUA.

“Meia Riba Kalxa”

Tristany

É garantidamente um dos álbuns mais desconcertantes editados em Portugal neste 2020. Podem chamar-lhe experimental, porque não há aqui singles de três minutos e meio com tudo nos eixos, refrões catchy e simples, versos tradicionais, lugares comuns narrativos, batidas indistintas. Ao longo de Meia Riba Kalxa, ouvem-se muitas vozes, muitos tons e abordagens à música (do rap ao canto, da eletrónica ambiental ao hip-hop, da soul eletrónica ao jazz) e muitas emoções: tristeza, saudade, amor, energia, raiva, paz. Cada canção podia ser três ou quarto, tais as guinadas e voltas que levam de bocado em bocado, mas foi por assumir que o erro, a produção (mais crua, com auto-tune épico…), as vozes distorcidas, as conversas e interlúdios e os sons inesperados podem ser coisas boas que Tristany fez um disco único, totalmente marginal ao que se está a fazer no resto do hip-hop e da música portuguesa. Em “Rapepaz” atinge-se um pináculo — é “A” canção do disco — mas o álbum vale pelo todo. E é um disco que sem sermões e sem romantismos e lirismos nos tenta explicar várias coisas: de onde Tristany vem, o que é que isso tem implicado, como é que isso o tem condicionado e como é que isso o fez crescer.

“Revezo”

Filipe Sambado

Filipe Sambado andava à procura da sua voz há muito tempo e fez álbuns bem conseguidos anteriormente — Vida Salgada merece a audição, Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo foi um passo em frente. Aqui conseguiu outra coisa: que a assinatura musical, a sua impressão digital, já não se note apenas nas letras, nas histórias que canta e naquilo que pensa. Agora também a música é nitidamente daqui e de agora. É de hoje pela mistura entre a produção eletrónica e a composição instrumental mais tradicional (e pela incorporação para o pop-rock de uma soul digital e R&B que por cá tem-se ouvido mais timidamente). E é daqui pelos ecos de portugalidade nos ritmos tradicionais manipulados, nas melodias e nos trejeitos de canto a evocarem a tradição da música popular portuguesa. É um equilíbrio complicado, que consegue com canções como a catchy “Jóia da Rotina”, a sensual e dengosa “É Tão Bom”, as mais classicistas “Gerbera Amarela da Sul” e “Mais Uma” e a terna “Imagina”. Está encontrada uma voz nova, realmente nova.

“Lina_Raül Refree”

Lina e Raül Refree

O músico, produtor musical e compositor espanhol Raül Refree tem-se especializado nos últimos anos como parceiro de outros. Tem trabalhado nomeadamente com Lee Ranaldo (Sonic Youth), colaborando com este nos álbuns a solo do ex-Sonic Youth, mas foram as colaborações com artistas femininas (Sílvia Pérez Cruz no disco Granada, Rosalía no disco Los Ángeles, Luísa Sobral no álbum Rosa) que mais se destacou. Notoriamente interessado em artistas que tentam dar um novo cunho a tradições musicais antigas, como o flamenco e o fado, juntou-se agora à fadista Lina para uma aventura a dois, que consiste em recriar fados de Amália, alguns mais emblemáticos, outros menos conhecidos. Esqueçam-se os acompanhamentos instrumentais tradicionais no fado, a guitarra portuguesa como companhia habitual. O que poderia parecer uma heresia aos mais puristas — cantar as palavras de Amália com piano e sintetizadores vintage — resulta na perfeição, mantendo-se a solenidade do fado mas acrescentando-se-lhe um tom de inovação e originalidade. Há várias recriações impressionantes de Amália aqui: da fantástica “Medo”, com um tom espectral que a instrumentação acentua, à eletrónica “Cuidei que tinha morrido”, passando por uma “A Mulher que já foi tua” exemplarmente cantada, um fado que podia ser banda sonora de filme noir chamado “Destino” e uma “Barco Negro” que foge do original mas que acerta em cheio. E há aqui a revelação de uma grande voz fadista, que merece palcos e atenções maiores e que comprova que Raül Refree sabe como poucos hoje em dia potenciar timbres e vozes marcantes.

“Cajarana”

André Henriques

Vamos ser claros: parte do sucesso inicial Linda Martini resultou da energia, da fúria juvenil dos putos sem aulas amanhã, da rebeldia sem grandes causas que não as que fazem gente de carne e osso querer de quando em quando virar o mundo ao contrário, por isto ou por aquilo. Mas outra parte, igualmente importante (até cada vez mais importante à medida que a banda avança nos anos), esteve também nas letras de André Henriques, razoavelmente esquivas, com uma poética pouco bonitinha, com pistas e frases que davam bons slogans existenciais. O letrista da banda, também guitarrista e cantor, tem-se dedicado a compor para outros paralelamente à banda e agora aventurou-se a solo, com um disco recheado de histórias muito visuais (“E de Repente”), de interrogações de quem anda a tatear — e não andamos todos? — à procura do rumo certo para a vida (“Uma Casa na Praia”), de quem quer ser pai mas também razoavelmente livre (“Tecido Não Tecido”), de quem se pergunta como é que ainda se pode escrever uma canção de amor boa e original (“As Melhores Canções de Amor”). A voz casa bem com as melodias de guitarra, mas há sons, o que André Henriques chama “veneno”, que as tornam menos previsíveis.

“Véspera”

Clã

É um daqueles discos que podem aborrecer muita gente, pelo simples motivo de que parece tudo demasiado bem feito, sem desvarios ou fugas ao guião que nos lembrem que esta rapaziada é de carne e osso e falha como toda a gente. Mas a voz de Manuela Azevedo é o que é, não há volta a dar, não falha uma nota, a banda tem um curso feito com sucesso na história do bom gosto, as letras dos cançonetistas convidados são boas. Esta gente é melhor do que todos nós naquilo que fazemos todos os dias e isso é coisa para aborrecer. Mas se o balanço de “Oh Não! Outra vez” não for suficientemente convincente, se “Armário” não vos puser a abanar o esqueleto, se a voz de Manuela Azevedo em “Pensamentos Mágicos” não vos fizer acreditar que são muito mais capazes do que na realidade são, então ponham a tocar “Tudo no Amor” e o ano está ganho, o disco está ganho, só isto bastava nos levar o coração. É o melhor álbum dos Clã desde sei lá quando.

“Portrait”

João Barradas

Como mero aficionado do jazz pelo ouvido, alguém que gosta muito de o ouvir mas que se reconhece limitado na sua compreensão, escrevo: Portrait é o disco de um músico português de jazz que mais gostei de ouvir em 2020. O autor é o acordeonista e compositor João Barradas, considerado no meio um dos grandes jovens prodígios do género e que anteriormente impressionara já com o seu álbum Directions (de 2017) e com o disco do seu grupo Home, intitulado Home – An End as New Beggining. Para este novo álbum João Barradas é constantemente acompanhado pelo vibrafonista Simon Moullier, o baixista e contrabaixista Luca Alemanno e a baterista Naíma Acuña, mas também o saxofonista norte-americano Mark Turner entra em alguns temas — “Care”, com que o disco arranca, “Episode XII (Drums Chant)”, “Joy Ryder” (onde tem grande protagonismo) e “The Order Of Things”. É uma comitiva de luxo, a julgar pelas composições, pelo vibrafone a acordeão que se ouvem em “Changes”, pela beleza de “Common Good”, pela energia de “AMFM” e pela excelente “Episode XII (Drums Chant)”. João Barradas editou ainda este ano “Solo I (Live At Centro Cultural de Belém)”.

“Da Linha

Pedro

Anteriormente conhecido como KKing KKong, ligado à editora Enchufada do produtor musical e DJ português Branko (ex-Buraka Som Sistema), Pedro editou o seu primeiro álbum longa-duração, o seu primeiro disco completo, este semestre. O álbum chama-se Da Linha e é uma coleção razoavelmente heterogénea de temas dançantes, com as batidas da periferia de Lisboa e o afro-beat a dialogarem com a produção eletrónica de inspiração sul-americana (por exemplo nítida em “Calores”) e com o rap. “Terra Treme” — com Pedro Mafama —, “Takré” com Branko, “Stuck On You” com Bryte, “Pusha” com Kelma Duran e “Too Much” com Magugu são temas irresistíveis para a pista de dança. Comparado com Nosso de Branko, por exemplo, é um disco menos universalista e mais firmado no beat periférico de Lisboa, mostrando que apesar da proximidade Pedro sabe descolar do mentor quando necessário. Pena alguns dos temas acima não terem sido promovidos com telediscos a acompanhar (resultado da pandemia?), porque esta banda sonora merecia companhia visual e merecia melhor promoção.