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Entre picos e vales, Márcia não duvida: "O amor não é coisinha de nada, é a base de tudo. E cura"

Perita a fazer canções emotivas, de amor e desamor, Márcia tem disco novo. O novo "Picos e Vales" é duro mas otimista: "Já vi muita desgraça acontecer, é preciso deixar que o amor venha".

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Não é sequer musical um dos momentos que mais ajuda a descodificar a carreira e o percurso de Márcia como cantora e compositora. Antes ainda de se começar a afirmar com as suas canções, numa fase em que se dedicava ao cinema e não imaginava ainda vir a viver da música, Márcia fez dois documentários: um chamado “Mana”, sobre a sua irmã, e um outro sobre a emigração portuguesa em França.

Com o segundo, Márcia queria “fazer uma coisa social e que abrangesse”. Era um assunto sério, denso, aparentemente mais universal. Mas foi o primeiro a ter mais impacto. E essa foi uma lição que a cantora e escritora de canções tem vindo a aplicar desde o primeiro EP (mini-álbum), homónimo e editado há 13 anos: trabalhar artisticamente sobre emoções e o amor não é arte menor, mas maior.

Não são temas menos urgentes e relacionáveis, serão quanto muito o contrário disso. E, mais importante ainda: mesmo se a ideia for fazer da arte ferramenta de mudança, há poucas coisas que precisem tanto de mudar como a forma como lidamos com as emoções. “Entusiasma-me entender as pessoas, as relações, as emoções. Acho que muita coisa má do mundo advém de dores que são mal processadas”, diz, em entrevista ao Observador.

O raciocínio aprofunda-se e da origem avança-se para a solução: “A música e a arte ajudam imenso porque permitem um caminho de entendimento. E é preciso entender o mundo. Sendo que para mim o entendimento passa primeiro por nós próprios, por sabermos o que sentimos, do que fugimos, do que nos protegemos”.

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[ouça na íntegra o álbum “Picos e Vales” de Márcia, através do Spotify:]

Se portanto “muitas coisas más e profundamente graves acontecem no mundo por falta de amor ou de amor próprio”, devido a “alguma enorme dor que tem de ser processada” e não o é, como defende, então talvez não exista mesmo tema artístico mais premente. “O que abrange mais as pessoas do que as emoções, o amor?”, perguntará, vincando bem: “Não é uma coisinha de nada, é a base de tudo”.

Tudo isto ajuda a explicar o caminho percorrido por Márcia, que lançou o seu primeiro álbum completo, , em 2010, e desde aí lançou quatro discos sucessores: Casulo (2013), Quarto Crescente (2015), Vai e Vem (2018) e o novo Picos e Vales. Porque é isto que ajuda a perceber porque todos esses discos giram em torno de uma série de temas: o amor, a falta de amor (ou o desamor) e como se processam as perdas que vamos acumulando vida fora — nas suas palavras, “como é que te levantas disso?”

Com uma carreira que já vai longa, com pergaminhos mais do que conhecidos na composição e interpretações de canções delicadas e emotivas — “A Pele Que Há em Mim”, “A Insatisfação”, “Tempestade”, “Bom Destino”, “Menina”… —, Márcia, atualmente com 40 anos, lançou o disco novo a 29 de abril.

Picos e Vales é um álbum em que se ouve reforçado um certo balanço eletrónico, com arranjos menos convencionalmente folk (menos, portanto, ancorados em guitarra e voz) e com beats, coros, teclados, sopros e cordas a juntarem-se à festa, ajudando a que se dancem os tais “vales” do título, as descidas da vida a que é preciso sobreviver.

Márcia conhece bem esses vales, comenta-o em entrevista mas não deixa de soar otimista e leve nas canções, até quando as letras sugerem perdas e fins. “Nada é ficção no que escrevo” e “já vi muita desgraça acontecer”, confessa-nos, sentada no Jardim dos Coruchéus, em Lisboa, cidade onde cresceu e em que ainda vive. “Mas é preciso deixar que o amor venha”, remata.

“Nada é ficção no que escrevo: são histórias que conheço, histórias próprias…”

Como imaginou que poderia ser este álbum, antes de começar a fazer as canções novas? Ou seja: quando decidiu fazer um disco novo, o que tinha definido na sua cabeça que queria fazer nesta fase da sua carreira e da sua vida?
Quando pensei a primeira vez num álbum novo foi quando fiz o Coliseu, em dezembro de 2019. Tínhamos feito imensos concertos do Vai e Vem e estava satisfeita. É nessa fase que me começam a vir canções, ideias. Quando começo uma coisa, debato-me com o que posso acrescentar de novo. Será mais do mesmo? Tenho muito esse pânico na vida: de os dias serem iguais, os álbuns serem iguais, as fases serem iguais, de estar sempre em repetição. Mas nunca nada é igual. Aconteceu que fiz uma canção. Tenho a sensação que sou alertada por uma parte interna qualquer que me diz que está na hora de fazer um disco. Começam a surgir-me canções quando estou em plena digressão ou ainda a desfrutar do que veio antes…

Começa a ter vontade de compor?
Começo, de compor e de cantar coisas novas. Acontece-me muitas vezes no soundcheck estar a fazer sons enquanto os músicos estão a ver cada um o seu instrumento. Começa a surgir-me uma canção nova, começo a gravar… é um sinal que há algo para dar. Isso aparece-me e é aí que percebo: ok, está na altura de fazer algo novo.

Que canções surgiram primeiro?
O que apareceu nessa altura foi uma canção chamada “Vai Passar Tudo Amanhã”, que surgiu como um desabafo. Ao mesmo tempo, além do conteúdo apareceu numa forma diferente, que acho que dá um bocado identidade a este disco: comecei a compor essa canção com coros. Tenho colegas e amigos da música que às vezes chamam-me para fazer coros, porque faço muitos coros e harmonias. É uma coisa que me diverte muito. Comecei a compor essa canção, o “Vai Passar Tudo Amanhã”, com desabafos de coros e uma voz por cima. E fui-a fazendo sozinha com uma base mais eletrónica, sem instrumentos, sem outros músicos. Antes disso, lembro-me agora, fiz “A Flor e a Fava” — que foi a primeira que mostrei ao vivo.

O ritmo — a batida — de “A Flor e a Fava” acaba por ser bastante peculiar.
É uma batida bastante assertiva. Fiz aquilo em maquete, a base de coros, e compus por cima. Mas faltava-me o ritmo que imaginava. Convidei um músico, não era bem aquilo. Convidei outro músico, também não era bem aquilo. Tinha de conseguir encontrar a pessoa que fizesse esse ritmo. E encontrei: o Domenico Lancellotti, que depois contactei. Tive de dançar para ele perceber o que eu imaginava. Ali era fácil pensar que o que imaginava era muito mellow, muito low. Não era assim. Tive de lhe dizer: isto é um bocado agressivo, é uma insistência, é um queixume e eu imagino conseguir dançar este ritmo. Ele disse-me: então dança. Tive de dançar e ele ia vendo e fazendo o ritmo para perceber. Foi muito engraçado.

Para responder à pergunta anterior, o que imaginava que seria o disco? Não imaginava. Percebi que ia arriscar assumir os coros como um instrumento. Estou muito habituada a levar a guitarra como instrumento e a cantar por cima. Agora queria levar os coros como instrumento. Essa foi a minha maior batalha aqui, porque tive de passar várias fases para ser possível.

É um disco com “histórias íntimas e reflexões sobre o que é o amor”, escreveu. O amor, a forma como o vivemos e lidamos com ele têm um grande peso nas suas letras, nas suas canções — em geral e de forma clara neste disco. Porque acha que a sua escrita pende tanto para estes temas do amor e do desamor?
Entusiasma-me entender as pessoas, as relações, as emoções. Acho que muita coisa má do mundo advém de dores que são mal processadas. Neste sentido, a música e arte ajudam imenso porque permitem um caminho de entendimento. E é preciso entender o mundo. Sendo que para mim o entendimento passa primeiro por nós próprios, por sabermos o que sentimos, do que fugimos, do que nos protegemos.

Muitas coisas más e profundamente graves acontecem no mundo por falta de amor ou de amor próprio. Por causa de alguma enorme dor que tem de ser processada. Ou por falta de noção de poder pessoal, que depois interfere e torna as pessoas perigosas porque querem ser mais poderosas. Para mim é a origem de tudo e a solução para grandes males que existem no mundo seria conhecermo-nos um bocadinho melhor e sabermos processar o que sentimos. Processar é muito importante e um caminho para isso pode ser escrever, entender o que sentimos, aceitar o que sentimos, acabar com essa história de que os homens não choram. Temos um estigma tão grande, uma herança tão grande de mau processamento de emoções…

"Como artistas devemos ter cuidado em não cair nos sítios onde estão à espera que estejamos. Não sinto que tenha 'fugido' de arranjos, mas senti essa libertação. Tinha de ter coragem de fazer aquilo que acho que é possível."

…como se elas fossem um problema, uma fraqueza?
Precisamente. E não são um problema, de facto. O amor às vezes pode ser visto como um problema, mas o problema são as coisas que não controlamos — que acontecem montes de vezes e com as quais temos de saber lidar. A perda… acho que trabalho muito sobre as emoções, o amor e a perda.

Hoje em dia percebemos que as pessoas quanto mais velhas ou crescidas ficam, mais pensam na infância. Esse é um primeiro amor que tem de ser processado, que tem de ser trabalhado, digerido. Tudo isso acaba por macular a nossa personalidade, por interferir com a nossa maneira de ser e depois influencia-nos para o resto da vida. Isto não é uma coisinha de nada, o amor é a base de tudo. E também cura. Nos meus discos todos acho que trabalho muito sobre isso: o amor, a falta de amor e processar a perda. Como é que te levantas? Durante a vida inteira vais ter situações que não controlas: uma pessoa vai-se embora, de uma maneira ou de outra, acontecem coisas no mundo em que não consegues interferir, acontece um vírus, uma guerra… acontecem montes de situações e tens de as processar.

Logo na “O Que Eu Ainda Não Sei”, a primeira faixa, sentem-se coisas já percetíveis pelo menos desde o disco Quarto Crescente, mas que parecem-me estar aqui mais intensificadas do que no anterior Vai e Vem: um certo balanço, alguma leveza e uma tentativa crescente de fugir aos arranjos mais simples da folk, isto é, só de guitarra-voz. Tem-se tentado libertar desse universo que se associa mais à folk?
Tenho imensa curiosidade sobre o que as pessoas acham dessa primeira canção porque acho-a uma canção diferente. Tinha a certeza que queria fazer aquela canção daquela maneira, mas demorei imenso a perceber: isto vai para onde? Lembro-me de estar na praia com o meu marido, estar com essa canção a meio e dizer-lhe: estou a trabalhar numa canção e não sei para onde é que ela vai [risos]. Deixei essa liberdade acontecer, porque acho que como artistas devemos ter cuidado em não cair nos sítios onde estão à espera que estejamos. Não sinto que tenha “fugido” desses arranjos, mas senti essa libertação. Tinha de ter coragem de fazer aquilo que acho que é possível.

Aprendi com muitos produtores, porque produzi os discos desde o início com o João Paulo Feliciano, o Luís Nunes (Benjamim), João Gomes, o Filipe [Cunha Monteiro], meu marido — que faz música como Tomara e que é um músico excelente —, o Dadi Carvalho… tenho muita a noção de que para cada cabeça, sua sentença. Todos são ótimos produtores e cada um pensa da sua maneira. As pessoas têm a sua identidade e nessa canção, como noutras deste disco, tinha de descobrir qual é a minha. Foi por isso que desta vez assinei a produção sozinha. Se somos dois ou três produtores numa mistura, as decisões são a dois ou a três. Aqui tinha de decidir sozinha, queria pôr-me nessa posição porque sentia que era capaz e para não estar constantemente à procura do aval, da validação de um homem e produtor que estivesse ao pé de mim. Queria ter o desafio de me deparar com as minhas inseguranças, de ser eu a decidir aquilo que achava melhor e de ter de acatar essa decisão. Essa coragem de ser eu a dizer ‘é assim que quero, é mesmo isto’, é o meu maior orgulho neste disco.

Para esta “O Que Eu Ainda Não Sei”, chamei o Dadi Carvalho para fazer o baixo. Liguei-lhe e disse-lhe: já experimentei fazer três baixos nessa canção mas falta-me aqui algo. Mandei-lhe e ele sacou um baixo… ouvi aquilo com os phones à noite e já não consegui dormir, só conseguia dançar com aquilo. Ou seja: eu tenho de tomar as decisões sozinha, esse era o meu desafio mas isso não significa que tivesse de fazer um disco sozinha. Sinto que tenho os melhores parceiros, músicos maravilhosos ao meu lado. Naquela música queria mesmo esse balanço e uma das coisas que contribui muito para esse balanço foi o arranjo de metais, que foi feito antes e que já veio influenciar o baixo.

Se falava há pouco da folk é poque há uma tendência para associar a música de singer-songwriters a algo solene, denso, pesado. Aqui há alguns contrapontos a isso: falei do balanço do primeiro tema mas poderia ter falado no refrão da “Já Passou da Hora”: “baby, bye bye”. As letras são sobre assuntos sérios e densos mas vão surgindo no disco alguns elementos que aliviam a densidade, que não sobrecarregam o peso. É um esforço pop consciente?
Não é, apenas permiti que acontecesse. Em alguns temas de discos anteriores já acontecia. Há várias canções em que aparece uma parte coloquial de trato que espero não perder. A vida tem momentos mais densos, vais crescendo e as coisas às vezes podem ser um bocado pesadas. Espero não perder isso. Essa música claro que ia fazer alguma confusão: “bye bye?” [ri-se]. Mas a música apareceu assim, fiz aquele refrão assim porque de facto chamo baby aos meus babys — ao meu marido, aos meus filhos. É uma coisa que utilizo no dia. E essa expressão, baby bye bye, apareceu ali porque é como falo, efetivamente. “Ah, mas não é português”. Mas quem está a concorrer para ser erudito? Não estamos a concorrer para isso.

Com a “Cabra Cega”, que está no , disco de 2010, lembro-me de a minha mãe me ter dito que num fórum da internet estava muita gente a questionar-se porque é que dizia “usted” na canção. Pensei: que lindo, as pessoas repararam. Sinto que houve um decrescente interesse ao longo do tempo pelas letras das canções. A minha mãe alertou-me para aquilo, achei curioso e expliquei-lhe que “usted” apareceu porque estava viver em Barcelona. Então se era assim que falava, porque havia de fugir a isso?

"A vida é tão mais rica do que a ficção. Nada é ficção no que escrevo, tudo é inspirado aqui e ali: histórias que oiço, histórias que conheço e histórias próprias. É a minha forma de processar o entendimento das coisas."

A minha questão passava mais por um outro aspeto: essa “Já Passou da Hora” tem uma letra com alguma dureza, de despedida, de separação. Estava a tentar perceber se haveria algum esforço de contrabalançar o peso com momentos como esses, que aliviam a tensão.
Contrapor esse drama, essa experiência? [faz uma pausa] Talvez eu seja assim. As situações difíceis acontecem, aliás por isso é que este disco se chama Picos e Vales. Temos muitos vales na vida, mas os meus pais ensinaram-me sempre a lidar com as coisas com humor. Já vi muita desgraça acontecer, mas é preciso deixar que o amor venha. E casei com o homem certo nesse sentido, porque ele também faz uns comentários com humor. E estou na agência certa, tenho o manager certo porque também comunica muitas coisas com humor.

Acho que é uma coisa que me prende muito às pessoas, o humor. O meu pai era muito assim, sabia desanuviar os momentos difíceis e às vezes até tinha piadas muito fora, era muito pouco convencional. O humor é precisamente isso: contrabalançar a dureza. Dizer “bye bye” no meio daquela cena dramática, sim, pode ser isso. Mas acho que é algo que tenho em todos os discos, talvez não seja só neste. Mas não tinha reparado nisso, por acaso. E essa canção já me veio assim, esse beat fui eu que o fiz. Por isso é que agora há alguma dificuldade em tocar estas canções com guitarra e voz: elas não nasceram assim.

Sobre este disco, escreveu também que contém “os seus segredos mais íntimos”. Quem ouve não sabe que histórias e versos dizem respeito à sua vida e quais são inspirados pela imaginação ou observação dos outros. Mas a Márcia sabe. Há canções que pela ligação a momentos da sua vida tenham sido mais difíceis de compor, mais duras de cantar?
Duras de cantar não diria, porque depois começa-se a tocar com os músicos… já fizemos bastantes concertos e é sempre um prazer cantar. Mas talvez a mais dura seja mesmo “A Flor e a Fava”. É uma canção que se pode desdobrar, vai-se revelando e é exatamente a canção que queria fazer, tal qual a fiz, com aqueles beats e aqueles coros. Como fiz exatamente aquilo que tinha de fazer… tens de fazer aquilo que tens de fazer. Depois as coisas são como são. Há outra canção, a “Melhor Pelo Teu Tempo”, que foi uma música que me deu imenso prazer fazer e que realmente se afasta do que costumo fazer porque fala do mundo, não de uma relação mas do mundo e daquilo em que acredito numa perspetiva muito mais existencial ou espiritual. Essa música acaba por dizer muito sobre esta imagem que tive quando pensei no disco: montanhas, contemplação, a cor violeta ou roxo que para mim é muito espiritual. É um tema que até canto de maneira diferente.

Agora… não tenho tão boa imaginação, assim. A vida é tão rica, tão mais rica do que a ficção. Nada é ficção no que escrevo, tudo é inspirado aqui e ali: histórias que oiço, histórias que conheço e histórias próprias. É a minha forma de processar o entendimento das coisas.

“A música é o meu espaço de libertação, de desabafo”

Qual era a sua relação com a música e que futuro imaginava que poderia ter na música quando andava a estudar outras coisas? Cinema e também pintura em Belas-Artes, neste caso.
A música era o meu espaço de libertação. Desde que componho que é assim e nunca quero perder esse espaço. Ainda é o meu sítio de desabafo. Simplesmente agora tenho, às vezes, o peso da responsabilidade porque há mais gente que me ouve. Mas se pensar bem nisso, as pessoas que se ligam à minha música vão precisamente querer mais música genuína. E a única maneira de fazer isso é fazê-lo da forma mais natural possível. Por isso, tento manter essa forma natural que passa por ser sincera a escrever.

Mas nessas fases de cinema e pintura, já pensava em poder vir a ter uma carreira musical?
Nem pensar. Não achava possível. Cada pessoa vem de onde vem, na minha família não havia absolutamente ninguém a fazer vida… o meu pai até era pintor mas não fazia vida da pintura, era projetista. E a minha mãe era secretária na mesma empresa que o meu pai. Quando crescemos num meio em que ninguém faz das artes a sua vida, claro que é muito mais complicado. Quando era miúda, sobretudo, não tinha ideia de um dia vir a ser música. Mas tinha a ideia de ser artista, queria ser. Via o meu pai pintar e adorava desenhar, era o que eu fazia bem. Quando és criança o reforço positivo é importante e o meu pai gabava muito os meus desenhos. Por isso, para mim era esse o futuro: “quero ser pintora”. E fui fazer pintura em Belas-Artes.

A média para entrar era muito alta, 17, e eu sabia que tinha de ter 20 aqui, 18 ali, tinha isso tudo estruturado, muito bem esquematizado. E tive. Entrei, fiz o curso. Era muito estético, tinha muita filosofia, muita aprendizagem teórica e concetual, arte contemporânea. E eu ficava ali um bocadinho a fazer o meu melhor nessa parte, mas depois faltava “cuspir”. Então ia para casa sozinha e compunha canções. Sossegadinha, não dizia nada a ninguém mas passava tudo para uma canção. Isso aconteceu durante anos a fio. E havia pouquíssimas pessoas que ouviam essas canções, eram duas ou três.

Por exemplo?
Uma delas é o meu atual baterista, o Kiko. Era muito meu amigo na altura. Eu trabalhava num bar ao mesmo tempo, para conseguir ter dinheiro para ir fazer Erasmus e para tirar o meu curso de canto no Hot Clube. Não tinha dinheiro, então trabalhava no que pudesse para juntar dinheiro enquanto fazia a faculdade. Ele ia-me buscar às duas da manhã e íamos gravar maquetes. Há pouco tempo ele confessou-me que só me gravava para me conseguir ouvir, porque queria mesmo era ouvir as canções [risos]. Não tinha nenhuma intenção de gravarmos um disco, era só para ouvir. Mas se ele não tivesse gravado e se não tivesse ido buscar-me — acho que escrevo isso no meu livro “As Estradas São Para Ir” —, se não tivesse feito isso as coisas poderiam ser diferentes. Nós precisamos sempre de um pequeno empurrão, alguém que acredite em nós. Na música não podiam ser os meus pais e não podia ser ninguém da minha família, se bem que o meu pai ajudou-me a comprar a primeira guitarra. Mas tínhamos tão pouco dinheiro que era mesmo difícil sustentar esse sonho. Já pagavam a faculdade, não dava para alimentar outro sonho.

Entrevista a Márcia Santos, cantora e compositora portuguêsa, sobre o lançamento do seu último álbum "Picos e Vales". 17 de Maio de 2022, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Já contou no passado como um documentário que fez chamado “Mana”, sobre a sua irmã, fê-la perceber a força que poderia existir em refletir-se a si mesma e ao que tem de mais próximo na arte. Mas foi uma decisão fácil começar a trabalhar artisticamente a intimidade, expor na arte as emoções e a forma como as vê e lida com elas? Ou foi preciso fazer muita coisa até ter à-vontade para mostrar algo seu, íntimo, às pessoas?
O à-vontade às vezes era difícil mas em Belas Artes trabalhávamos muito… quando um artista faz um trabalho e ele não é sincero, nota-se logo. E por isso podia tentar, tentar e tentar, não tinha como fugir. Em vez de ver isso como limitação, vi-o como uma característica. Não devemos fugir a isso, devemos aceitar: isso é aquilo que vieste trabalhar, falas sobre isso. Alguém pode dizer: ah, isto não faz nada pelo mundo. Está enganado, porque tanta gente se revê em algumas frases…

Já passei essa fase há muito tempo porque quando fiz esse filme, de facto, foi a mensagem que me foi dada. A seguir fiz um sobre os emigrantes em França, queria fazer uma coisa social e que abrangesse. Mas o que abrange mais as pessoas…

… do que as emoções?
Do que as emoções e do que o amor — fraternal, paternal, todos os tipos de amor? Todos nós temos relações e coisas para processar. Continuo a dizer: na origem de muito mal do mundo estão coisas mal processadas. Então, porque é que trabalhar sobre a questão da emigração é mais universal do que trabalhar sobre a minha irmã? Às vezes podes é dizer as coisas através de um micro-cosmos. E eu tenho a certeza que as minhas canções são micro-cosmos, mas cada pessoa que mergulha lá faz delas o que entende para si. Também já fui salva por canções de outras pessoas.

“O que me levou para a arte foi uma vontade de fugir. Há sempre razões para querer fugir”

A Márcia tem uma filha que, espero não errar muito na idade, penso que terá à volta de dez anos.
Tenho uma filha e um filho. Ela tem dez, sim. E ele tem cinco.

Geracionalmente, enquanto mãe, sente diferença na forma como consegue falar sobre sentimentos com os seus filhos, face àquilo que era mais comum na sua geração com a geração dos seus pais?
Então não. Isso é uma coisa muito recente, a preocupação com o auto-cuidado, com o auto-conhecimento. Temos de pensar que os nossos pais… o meu pai tinha mais 20 anos do que a minha mãe, por isso já é uma outra geração ainda, quase de avô. Mas os nossos pais beberam muito da boémia daquela altura. Os meus pais, em particular, eram muito boémios: não se prendiam tanto por horários, a vida tinha de ser vivida com uma certa alegria e convívio, é uma coisa que associo muito aos meus pais. O meu pai então era um bon vivant, dava um gosto enorme estar com ele.

Lembro-me muito de, em miúda, ver os meus pais a fumar e beber whiskhey às sete da tarde. Em Portugal, até os pediatras atendiam os miúdos com um cigarro na mão… O meu pai, por exemplo, fumava a tomar banho! Fumava em todas as divisões da casa! Porquê? Porque era a maneira de levarem a vida com leveza. Era isso que aligeirava a vida deles. Se lhes falassem em psiquiatra ou psicólogo na altura em que eu era miúda… nessa altura, isso era visto como uma coisa totalmente fora da caixa, havia um estigma e um preconceito associados. Hoje em dia é uma coisa muito mais normalizada. Mas pudor e preconceito, ainda há. Ainda há quem não ache necessário e bom procurar algum tipo de auto-conhecimento.

Mas esse à-vontade de falar sobre emoções, em particular, sente que mudou muito enquanto filha e enquanto mãe?
Sinto. Na minha geração, dos 30 e tal ou 40 anos — ou até mais velhos do que eu —, já há muita gente que percebe que se calhar é bom fazer uma psicoterapia, se calhar é bom conhecermo-nos a nós próprios, se calhar é bom falarmos de sentimentos. Lembro-me que o meu pai me dizia para não ler poesia, que era para conseguir escrevê-la. Ele tinha a noção que fazia a catarse dele através da poesia que lia, porque lia muita poesia e citava e recitava muitos autores.

Nós, humanos, tivemos sempre outras maneiras de fazer catarse. O problema é que vais sempre magoar alguém se não souberes o que estás a sentir. A minha tentativa é magoar cada vez menos pessoas. Com os meus filhos, falamos muito abertamente. Até comprámos um jogo que é o Jogo das Emoções, aconselho a todos os pais. Temos muitas coisas para processar: mortes de familiares, tivemos a Covid-19, temos a guerra… eles são pequeninos e têm de processar as coisas de alguma maneira. A melhor maneira, que está ao alcance de todos os pais, é saber o que os filhos estão a sentir. Hoje em dia fala-se mais das emoções que temos, felizmente, e isso ajuda a processá-las. A partir daí já é possível falarmos do que é belíssimo na vida, do que vale a pena na vida, de quais são as coisas boas da vida. Na minha altura, quando era criança, não havia esse espaço de diálogo mas também não existiam ferramentas para aquela geração o começar.

"O que me levou para todas as formas de arte foi a minha vontade de fugir. Uma necessidade de evasão. Acho que me sentia muito presa. Tinha muito desejo de independência e queria muito viajar. E como dizia a Ana Vieira, às vezes basta uma janela para viajar. Ou escrever, pintar."

Que importância é que a pintura, primeiro, e a música, depois, tinham no seu dia-a-dia, antes de haver uma carreira artística, antes da música começar a ser trabalho? Eram uma evasão?
A música era totalmente evasão e entendimento. Tinha de desabafar por algum lado e nessa altura, durante a faculdade, não tinha nenhum apoio psicológico. Tinha muitas coisas para processar e precisava de as processar de alguma forma — e não o estava a fazer através da pintura porque eu enveredei por um caminho de arte contemporânea, dava-me gozo trabalhar aí uma parte mais intelectualizada da arte. E o excesso de intelectualidade pode interferir com os desabafos sobre as tuas emoções. Pode ser castrador. Precisava de um sítio para desabafar e desabafei através de textos, de poesia e de canções.

A pintura nessa altura ficou um bocadinho de lado — ou comecei a fazer um outro tipo de pintura, mais intelectualizada. Mais tarde, no curso, arranjei uma maneira de pintar que foi brutal para mim e que ainda pratico hoje em dia, quase como meditação, que é pintar o espaço de uma forma a conseguir integrar-me nele. É uma coisa muito própria e que me dá um enorme prazer.

Fazia a pergunta anterior porque não sei se já se terá questionado sobre que a terá levado a interessar-te tanto pelas artes — coisa que não acontece a toda a gente. Apesar do seu pai ter sido pintor, não tinha ligação à música. E a Márcia passou pela pintura, pelo cinema, pela música…
O que me levou para todas as formas de arte foi sem dúvida a minha vontade de fugir [pausa]. Uma necessidade de evasão. E há sempre razões para querer fugir [risos]. No meu caso acho que me sentia muito presa. Tinha muito desejo de independência e queria muito viajar. E como dizia a Ana Vieira, que é uma artista portuguesa antiga que lembro-me de estudar em Belas-Artes e que admirava imenso, às vezes basta uma janela para viajar. Se não tiveres uma janela, podes pintar. Se não tiveres um jardim para contemplar, vais desenhá-lo, vais escrever sobre ele.

Enquanto crescia, teve algumas paixões musicais mais salientes?
Quando comecei a tocar tinha 13 anos e aprendi a tocar guitarra com a Tracy Chapman, pus um álbum que o meu irmão tinha e aprendi a tocar. Talvez venha daí a minha costela folk.

Isso com a guitarra do seu irmão, não era?
Com a guitarra do meu irmão, que eu tocava às escondidas. Tinha 12 cordas e ele não gostava nada que eu tocasse com a guitarra dele. Lá está, não tinha músicos profissionais na família mas o meu irmão tinha uma guitarra e tocava muito bem. Fui depois ouvindo muitas coisas diferentes. Paixões musicais em miúda… o primeiro disco que comprei em vinil foi do Sting e do Eric Clapton, tinha 12 anos. Tinha muito a paixão da canção, o gosto por descobrir o que a canção dizia — sobretudo do Sting, que era mais difícil entender. A do Eric Clapton era uma música mais direta, eu achava piada à do Sting por não a entender facilmente.

Adorava GNR, por exemplo, e tenho muito apreço pelas letras do GNR porque eram coisas que nunca consegui descodificar. Não consigo ouvir uma canção sem ouvir a letra e dava-me alguma pica tentar descodificar as letras. Tinha essas duas paixões musicais. Mas questiono-me o que me influenciará e inspirará hoje e tenho muita dificuldade em perceber. Acho que hoje em dia acontece-me mais um concerto inspirar-me. É mais esse tipo de contacto que quero estabelecer pela música. O concerto do David Byrne [no festival EDP Cool Jazz, em 2018] foi um concerto que me inspirou fortemente. O Nick Cave, este novo filme — que parece um concerto — foi altamente inspirador. E depois tenho dois pilares enormes na minha vida, o Prince e a Sade Adu. Não sou de ficar inebriada com muitos artistas mas com a Sade e com o Prince — e com o James Blake —, sim. Mas a Sade para mim é a rainha. Antes de tanta coisa que hoje achamos que é nova, já ela tinha feito. E se me sinto inspirada por alguém na forma de trabalhar os coros e os beats, talvez seja pela Sade.

“Fui para Barcelona como estagiária de cinema, seis meses depois voltei cantora”

Li que a primeira vez que cantou ao vivo, tinha 18 anos. Foi assim?
Foi, foi. Num teatro cheio… tive medo!

Onde foi?
Foi em Cascais, no Teatro Gil Vicente, com a banda que tinha na altura — era uma vida paralela ao liceu.

A banda era Ana’s Blame?
Era Ana’s Blame. Eles chamavam-se Grey Issues mas depois eu entrei e como sou Ana Márcia passou a chamar-se Ana’s Blame, porque passei a fazer eu as canções. Eram canções em inglês. Cantámos no Teatro Gil Vicente cheio e foi uma coisa aterrorizadora para mim. Eu morria de medo do palco. Hoje em dia consigo divertir-me, mas na altura morria de medo. Acho que me sentia julgada, exposta. Não estava nada à-vontade mas sentia-me bem a cantar. Assim que cantava, acalmava. Agora, até ouvir a minha voz…

Curiosamente, acho que sou melhor ao vivo do que nos meus discos. Gosto muito dos meus discos mas acho que o máximo que atinjo é a tocá-los ao vivo. Os concertos é que são, para mim, a experiência máxima das canções. Pões outra energia naquilo, as canções são vividas e em comunhão com o público.

Entrevista a Márcia Santos, cantora e compositora portuguêsa, sobre o lançamento do seu último álbum "Picos e Vales". 17 de Maio de 2022, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Como era a música de Ana’s Blame?
Era música em inglês. Era muito honesta e era mais triste. Mas eu também era mais triste, por isso é normal. Era ali que processava a minha tristeza, era ali que desabafava. Acho que fui aprendendo a ser feliz ao longo dos anos. E isso, claro, foi marcando a música.

Passou também pelo Real Combo Lisbonense. Como é que isso aconteceu?
Foi o João Paulo Feliciano! Era um ótimo amigo, artista plástico. Eu tinha saído das Belas Artes e queria trabalhar com ele. A filha dele era uma das minhas melhores amigas, ele foi pai muito novo. E ela era uma das poucas pessoas na faculdade que tinha ouvido a minha música. Resolveu mostrá-la ao pai. Ele pensou assim: mas isto tem de ser feito, tem de existir.

O João Paulo é uma pessoa super para a frente, impulsionadora. É um artista plástico incrível. Eu não sabia muito bem o que fazer, tinha acabado um curso de cinco anos mas que no meu caso durou seis, porque quis fazer estágio e Erasmus. Nessa altura faço uma conta no Myspace. E quando fui para Barcelona fazer um estágio, o meu Myspace chegou ao Samuel Úria, ao JP Simões, ao B Fachada. O João Paulo ia criando o Real Combo Lisbonense, dizia-me para ir para Barcelona que quando voltasse o projeto estava pronto para arrancar.

E assim foi?
Fui para lá seis meses como estagiária de cinema documental, quando voltei era cantora [risos]. Já tinha concertos marcados, o Henrique Amaro [radialista] já sabia do meu primeiro EP e queria editá-lo. Foi um bocado essa energia impulsionadora do João Paulo que me ajudou muito nessa altura. Porque ele acreditava em tudo, é um homem super otimista. É uma pessoa que faz falta em momentos como este de pandemia: super otimista, para a frente e que gosta de criar coisas novas e fazer coisas novas, é um criador e uma pessoa super entusiasmada. E criou mesmo o Real Combo Lisbonense, que era uma coisa dificílima de criar, a trabalhar espólio que estava escondido e enterrado debaixo das pedras desde 1940 e tal.

Cantava lá a Ana Brandão, que é atriz, aprendi tanto com ela. Eu estava escondida no meu quarto com a guitarra, a sussurrar para ninguém ouvir, e de repente estou com 11 tipos, com uma orquestra em palco, a ter de dançar. Aquilo puxou por uma parte de mim que já nem me lembrava que tinha. Se calhar foi aí que comecei a aprender a ser feliz. Quando estás metido numa realidade, não te lembras de outras. A minha realidade em adolescente era difícil, familiarmente era complicado, era tudo muito denso.

De repente a catarse passa a ser alegre?
Tu esqueces-te facilmente que não és só aquilo que és. Quando és miúdo, identificas-te muito com o teu ambiente caseiro. O ambiente em que estás marca-te sempre muito. Eu sabia que tinha de sair do meu. E assim que saí para França… o meu pai deu-me a maior força para ir para a França. Era o meu melhor amigo. Assim que cheguei a França comecei a compor em português. Tinha saudades, por causa da distância, e tive noção do quão especial era a minha língua. É engraçado: quando nos afastamos, ganhamos uma noção às vezes mais clara do que deixámos para trás e de qual é a nossa identidade.

“Ao criar, estamos a acrescentar beleza ao mundo — é tudo o que importa”

Já leva uns bons anos de carreira, a fazer música e a dar concertos com regularidade. No meio musical português, que certamente mudou muito desde que começou, o que acha que ficou melhor e o que ficou pior?
Eu sou internamente e profundamente otimista. Não costumo achar que as coisas estão piores. As coisas fazem o seu percurso — e estão diferentes, de facto. Havia muito menos música e quando há muito menos, é muito mais difícil. Sobretudo havia muito poucas mulheres. Quando as pessoas perguntavam “qual é a tua inspiração?”, havia quantas cantoras anteriores a compor? Havia a Dina, a Mafalda Veiga, a Sara Tavares, a Manuela Azevedo com os Clã. E mais? Contamos pelos dedos. Tinhas depois uma experiência como a do Real Combo Lisbonense, em que ficava claro que existiam mais mulheres a cantar mas eram muito poucas.

Nós temos uma tradição ainda muito masculina na música. Hoje em dia já não é assim, já temos muitas cantoras, muitas cantautoras, muitos textos. Ainda falta os manuais escolares refletirem isso: estudas uma poeta, a Sophia de Mello Breyner. Então e a Ana Luísa Amaral, a Filipa Leal, a Adília Lopes? É um trabalho que se vai fazendo. Mas lembro-me perfeitamente do meu pai, que morreu com 87 anos, dizer-me quando já estava bastante avançado na idade: “esse discurso de que agora as gerações só fazem porcaria… foi sempre assim”. Todas as gerações têm coisas boas e más e todas vão ter os seus desafios.

Como mulher no meio musical, sente diferenças de tratamento em aspectos concretos hoje em dia, face à forma como era tratada quando começou a ter uma carreira?
É mais fácil hoje do que há cinco anos e do que há dez anos. E é muito mais fácil do que há 20 anos. Mas há muito mais homens a trabalhar na indústria da música do que mulheres. Eu tive imensos parceiros que nunca me desrespeitaram. Pelo contrário, deram-me espaço, ouvidos, atenção. O João Paulo Feliciano, o Luís Nunes, o Dadi Carvalho, o meu marido, os meus músicos. Trabalho com muitos homens! Todos os técnicos de som com quem trabalhei… todos me respeitaram e ouviram. Quando isso não aconteceu, soube afastar-me das situações. Hoje em dia ainda é capaz de acontecer bastante, ainda há coisas em que é preciso teimar sendo mulher. Mas cada pessoa faz o que faz à luz da sua altura. À luz da minha altura, fiz a música daquela maneira, comecei a construir música daquela maneira.

"Quando acontece uma coisa muito difícil na tua vida, esta é a parte mais bonita: os amigos vêm. Quando faleceu o meu pai, quando faleceu a minha mãe, os amigos vieram e juntaram-se. Serve para quê? Para dizerem que estão ali, que querem carregar aquele peso contigo. É das coisas mais bonitas que existem"

Partilhou publicamente em 2021 que teve um problema de saúde: um cancro da mama. Fê-lo para a alertar para a importância da vigilância e da auto-vigilância?
Honestamente não o fiz por isso. Existem meios para estarmos com atenção a sinais, existem meios hoje em dia para cuidares de ti própria. Felizmente, está ao nosso alcance fazer uma mamografia e outros exames. “Preocupa-te contigo, tem cuidado contigo”, essa era uma mensagem. Mas a primeira vez que falei sobre esse problema de saúde não foi para alertar as pessoas para irem fazer… não foi nada disso, foi mesmo porque fazia parte do meu processo de cura.

Por mais difícil que isto seja de entender, fazia parte do meu processo de cura mostrar e deixar visível que sou uma pessoa, que também sou vulnerável a problemas de saúde, que também me acontece. Tinha de mostrar isso porque o outro caminho era fingir que nada se passava. Estaria um bocado corroborar a ideia de que os artistas são seres sobre-humanos, que não são cidadãos, não são pessoas. E eu não acredito nada nisso.

Na sacralização do artista?
É uma sacralização do artista, como existia na minha altura nas Belas-Artes, que era uma coisa que me fazia imensa confusão: o star system. Eu também vim de um meio em que apreciava muito mais música indie. Dava-me com o João Paulo Feliciano e falávamos muito sobre Sonic Youth, falávamos sobre fugir à sacralização do artista e ao star system porque isso acabava por desumanizar as pessoas. E eu acho que essa foi de facto a motivação para escrever o que escrevi às pessoas: sentia que tinha de falar sobre aquilo.

Depois há outra questão: quantas vezes julgas uma pessoa por não a entenderes? Nós fazemos isso e eu também não gosto de sentir-me julgada. Tive de cancelar imensos concertos e sei lá o que alguém poderia pensar — que eu não queria ir àquele sítio ou a outro, por exemplo. Não quis dar margem para me julgarem mal, para ser mal entendida. A falta de comunicação está na origem de tantos equívocos, tanta incompreensão. Com esta informação, o que vais fazer com a tua vida? Como queres lidar com a tua vida, com os teus filhos, com a tua música, com a tua arte? Eu vou comunicar o melhor que conseguir. “Ah, mas estás a expor-te”. Não estou sempre? Faz parte do meu trabalho.

O melhor para mim é ser honesta e verdadeira e dizer: isto aconteceu, está a acontecer. A minha irmã resumiu muito bem, disse-me: “Tu não és só tu, o que é isto de não me dizeres o que se está a passar? Nós queremos carregar a mochila contigo porque isto é pesado, vais atravessar um momento difícil e eu quero atravessá-lo contigo, carregar um bocadinho do peso”. Isto é lindíssimo. Quando acontece uma coisa muito difícil na tua vida, esta é a parte mais bonita: os amigos vêm. Quando faleceu o meu pai, quando faleceu a minha mãe, os amigos vieram e juntaram-se. Essa parte dos amigos virem para ao pé de ti serve para quê? Para dizerem que estão ali, que querem carregar aquele peso contigo. É lindíssimo, é das coisas mais bonitas que existem. A maneira de processar as coisas muitas vezes passa também partilhá-las com outros.

Clinicamente a situação está estável?
Está, está, graças a Deus e ao meu cuidado, acho eu. Vamos ver. Há sempre exames que é preciso fazer com alguma rotina. E ainda é um processo de recuperação longo. O pior foi mesmo na fase pós-cirúrgica e do tratamento de radioterapia. Depois é preciso recuperar…

Lembro-me que sentia-me muito em baixo em termos de energia e fui passear com o meu marido a Itália. Foram cinco dias e foi lindo: senti que fui doente e voltei ótima, que me regenerei. Fui procurar coisas bonitas, tentar absorver a beleza da vida. Vai sempre haver momentos baixos e altos, picos e vales. Para sobreviveres a eles, tens de estar atento a toda a beleza que existe, a tudo o que consegues tocar que é bom e que é belo. E tudo o que consegues criar, porque ainda temos essa capacidade adiciona de criar algo que é belo. Um professor de faculdade disse-me uma vez: nunca desistas isso. Nunca mais me esqueci. Com arte, com música, em muitas outras coisas: ao criar estamos a acrescentar beleza no mundo. É tudo o que importa.

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