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Ricardo Rocha é madeirense e insiste que a pressão humana sobre os ecossistemas está a aumentar este tipo de surtos
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Ricardo Rocha é madeirense e insiste que a pressão humana sobre os ecossistemas está a aumentar este tipo de surtos

Ricardo Rocha é madeirense e insiste que a pressão humana sobre os ecossistemas está a aumentar este tipo de surtos

Entrevista a Ricardo Rocha, o caça-morcegos português: "Esta pandemia foi inequivocamente causada por humanos"

Ricardo Rocha viaja pelo mundo, entre grutas e florestas, para estudar morcegos. Diz que não se sabe se o coronavírus veio destes animais e que eles nos salvam de doenças graves, como a malária.

O caminho de Ricardo Rocha da Madeira para as florestas e grutas de todo o mundo, da Finlândia à China, começou quando tinha 7 anos. Ainda criança, recebeu um livro sobre lobos-marinhos que estavam à beira da extinção no arquipélago e descobriu então que queria trabalhar na conservação dos animais. Em 2003, entrou em Biologia na Universidade da Madeira, no ano seguinte mudou-se para a Universidade de Lisboa.

Daqui, foi para o mundo inteiro. “Quando comecei a interessar-me por biologia o objetivo era trabalhar unicamente com espécies ameaçadas na Madeira. No entanto apercebi-me rapidamente que sair e conhecer novas realidades era importante, tanto a nível profissional como pessoal”, contou ao Observador.

Acabou por mergulhar em grutas asiáticas e na floresta amazónica. Foi precisamente num desses trabalhos de campo por lá, em 2011, que começou o fascínio pelos morcegos, durante um projeto que acabou por evoluir para um doutoramento. Foi “a diversidade” que o apaixonou. Uns morcegos comportam-se como aves marinhas, outros como beija-flores, alguns até conhecem as manhas dos sapos e sabem como escapar aos venenosos.

É um mundo tão vasto que ainda não o conhecemos bem, garante Ricardo Rocha. Na verdade, afirma o investigador, não sabemos sequer se os morcegos foram mesmos os causadores desta pandemia, apesar da proximidade genética do vírus causador da Covid-19 com os que se encontram em morcegos ser de 96% porque “os humanos partilham 96% do genoma com os chimpanzés, o suficiente para que sejamos bem distintos”.

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Sabemos, no entanto, que a vida humana seria bem mais complicada sem estes mamíferos. Para lá das histórias do Drácula e do Halloween, os morcegos são mais benevolentes do que nos apercebemos, garante Ricardo Rocha, porque se alimentam dos mosquitos que transportam os agentes causadores do zika, da malária ou do ébola.

Neste momento, Ricardo Rocha, investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto, está a cumprir o confinamento na Madeira, onde não descarta a ideia de aplicar cá muito do que aprendeu fora. Fomos saber que aprendizagens são essas.

Ricardo Rocha num trabalho de campo em Madagáscar

Adrià López-Baucells

O que sabemos sobre o papel dos morcegos nesta pandemia?
Sabemos que a Covid-19 é uma zoonose, isto é, uma doença com origem num animal doméstico ou selvagem, mas ainda não sabemos que animal terá transmitido o SARS-CoV-2 aos humanos.

Como assim?
O nosso conhecimento sobre a diversidade dos vírus presentes na natureza ainda é muito limitado, mas, de entre os vírus conhecidos, o mais próximo ao SARS-CoV-2 é um vírus que foi detetado numa espécie de morcego na China. A semelhança genética entre esse vírus e o SARS-CoV-2 é de 96%.

Essa percentagem não basta para ter certezas?
Este valor parece à primeira vista significativo, mas para o contextualizar podemos pensar que os humanos partilham 96% do genoma com os chimpanzés, o suficiente para que sejamos bem distintos. É importante destacar que o SARS-CoV-2 nunca foi isolado em nenhum morcego selvagem e que nesta pandemia são os humanos que transmitem a doença Covid-19 a outros humanos — embora existam casos pontuais de transmissão de humanos a outros animais.

"Ao destruirmos os habitats naturais e ao movermos espécies de uma área para outra, acabamos por gerar novas comunidades biológicas, criando condições ideais para a transferência de elementos patogénicos entre espécies que até então não estavam em contacto ou que tinham contacto reduzido."

Então não há um consenso sobre a origem deste vírus?
Há um consenso sobre a origem natural do vírus. No entanto, ainda não sabemos que espécie terá passado o vírus aos humanos. Regra geral, a probabilidade de transmissão direta de vírus entre espécies é inversamente proporcional à distância evolutiva entre as mesmas. Embora seja possível que o antepassado do SARS-CoV-2 tenha tido origem numa espécie de morcego, humanos e morcegos são evolutivamente bastantes distantes, o que leva a crer que, caso este seja de facto um vírus com origem nos morcegos, a sua chegada à nossa espécie tenha ocorrido por outras espécies que não morcegos, que serviram de intermediários.

Em última análise, a pandemia de Covid-19 foi causada por quem?
Esta pandemia foi inequivocamente causada por humanos. A evidência científica é que atividades humanas, como a destruição de habitats naturais pela desflorestação e o consumo de animais selvagens, levam a alterações nos ecossistemas que aumentam o risco de transmissão de agentes patogénicos entre animais e humanos.

Ricardo Rocha (terceiro a partir da esquerda) com uma equipa no Parque Nacional de Tsavo, Quénia

Adrià López-Baucells

É por isso que há estudos a indicar que tem havido mais surtos de doenças transferidas de animais para pessoas?
A frequência de surtos de doenças infeciosas de origem animal tem vindo a aumentar; e há um consenso generalizado de que esse aumento está relacionado com um combinar de alterações ambientais induzidas pelos humanos e por um aumento de comportamentos de risco por parte da nossa espécie. Um dos estudos mais famosos, publicado em 2008, analisou 335 novas doenças detetadas entre 1960 e 2004, e identificou que 60% destas eram de origem animal e que efetivamente, a cada década que passava, a frequência de novas doenças aumentava. Entre os fatores responsáveis por este aumento destacam-se a destruição das florestas tropicais e a expansão da agricultura e pecuária intensivas.

Sendo assim, esta situação surpreendeu-o ou até era expectável que viesse a acontecer?
Infelizmente a ação humana tem vindo a criar condições ideias para pandemias deste género, pelo que o surgimento de algo como aquilo que estamos a viver era de certa forma expectável. Ao destruirmos os habitats naturais e ao movermos espécies de uma área para outra, acabamos por gerar novas comunidades biológicas, criando condições ideais para a transferência de elementos patogénicos entre espécies que até então não estavam em contacto ou que tinham contacto reduzido. Estas condições servem de incubadoras para novos elementos patogénicos, que eventualmente podem chegar à nossa espécie. Isto, aliado a um mundo extremamente conectado, gera uma espécie de tempestade perfeita.

Pensa que esta pandemia pode dificultar a conservação dos morcegos?
Felizmente há cada vez mais pessoas a terem conhecimento da importância dos morcegos, tanto devido ao seu papel no controle de pragas agrícolas, no caso de morcegos insectívoros, como devido à sua importância na reflorestação em zonas tropicais, através da dispersão de sementes, no caso de morcegos frugívoros. Por isso acho que, à medida que o papel destes animais nos ecossistemas se vai tornando mais claro, maior será o interesse pela sua conservação. Dito isto, uma eventual associação entre os morcegos e esta pandemia pode ter consequências muito nefastas para a sua conservação e por isso é importante que haja um esforço adicional das autoridades na sua monitorização.

Ricardo Rocha durante um trabalho de campo em Madagáscar

Joan de la Malla

Qual é o papel destes animais no mundo?
Os morcegos têm um papel muito importante no equilíbrio dos ecossistemas e na nossa economia. Em Portugal, por exemplo, todos os morcegos alimentam-se quase exclusivamente de insetos e chegam a consumir cerca de metade do seu próprio peso em insetos, todas as noites.

Isso tem impacto na nossa forma de viver?
Alguns desses insetos são importantes pragas agrícolas e florestais, pelo que os morcegos acabam por nos fornecer gratuitamente um serviço de enorme valor económico. Nos Estados Unidos, o contributo dos morcegos para a agricultura através do controle de pragas foi avaliado em 3 mil milhões de euros por ano. Além de pragas agrícolas, os morcegos insectívoros alimentam-se também de mosquitos e outros insetos vetores de doenças, provavelmente salvando inúmeras vidas humanas.

De que doenças estamos a falar?
Num estudo recente, conseguimos detetar que os morcegos em Madagáscar não só consumiam mosquitos vetores de malária, mas também moscas transmissoras da “cegueira dos rios”, uma das principais causas de cegueira causada por infeção.

"Entre as características mais impressionantes dos morcegos, consta uma enorme resistência a vírus e a doenças, como por exemplo o cancro, e uma enorme longevidade — podem viver mais de 40 anos! Perceber melhor o sistema imunológico destes animais poderá eventualmente abrir portas para avanços importantes na medicina humana."

Conhecemos bem os morcegos ou há muito para explorar?
Existem mais de 1.400 espécies de morcegos e sobre a grande maioria não sabemos quase nada. Novos desenvolvimentos tecnológicos, como os aparelhos GPS de dimensões reduzidas ou gravadores automáticos que permitem detetar e identificar os morcegos, permitem agora estudar os animais no meio selvagem com muito maior detalhe.

São tempos entusiasmantes para um investigador desta área.
É um tempo excitante para fazer ciência. No entanto, é também um tempo assustador, na medida em que os animais que tanto estimamos estão a desaparecer a um ritmo alucinante. Espero em particular que, à medida que descobrimos mais sobre estes animais e sobre a sua importância, haja uma maior mobilização da sociedade para questões relacionadas com a conservação da natureza.

O que é tão fascinante nos morcegos?
A sua diversidade. Existem mais de 1.400 espécies conhecidas, todas elas com histórias naturais incríveis. A vasta maioria alimenta-se de insetos, mas existem imensas espécies que se alimentam exclusivamente de néctar, desempenhando durante a noite o papel que os beija-flor desempenham durante o dia. Existem espécies carnívoras, uma das quais, na Amazónia, que praticamente só se alimenta de rãs e que através do canto consegue identificar se uma espécie é venenosa ou não. E há mesmo uma espécie de morcego no México que pesca no oceano, comportando-se como uma ave marinha.

Esses comportamentos podem ser úteis para nós, humanos?
Os morcegos estão presentes no planeta há mais de 50 milhões de anos e durante esse tempo evoluíram para ocupar os mais variados papéis nos ecossistemas. Só agora é que estamos a começar a descobrir o quão complexas são as suas vidas. Entre as características mais impressionantes dos morcegos, consta uma enorme resistência a vírus e a doenças, como por exemplo o cancro, e uma enorme longevidade — podem viver mais de 40 anos! Perceber melhor o sistema imunológico destes animais poderá eventualmente abrir portas para avanços importantes na medicina humana.

Como é o seu dia a dia enquanto investigador?
Sou investigador na área da conservação da natureza e trabalho principalmente com ecologia tropical. Tento responder a perguntas como: “Quais são consequências da destruição das florestas tropicais nos animais que lá vivem?”. Ou: “O que é que acontece às comunidades biológicas quando uma zona de pecuária intensiva dá lugar a floresta secundária?”. Tenho tido a sorte de trabalhar em algumas das regiões mais biodiversas do planeta, como a Amazónia, Madagáscar ou São Tomé e Príncipe, mas grande parte do meu tempo é passado em frente ao computador, a analisar dados e a ler e escrever artigos científicos.

Quando sai para um trabalho de campo, costuma visitar grutas?
Já visitei várias grutas, mas confesso que não costumo trabalhar com morcegos cavernícolas. Entre as mais espetaculares que visitei encontra-se uma no Parque Nacional de Gunung Mulu, no Bornéu, onde vivem mais de dois milhões de morcegos. Todas as noites os morcegos saem da gruta ao pôr do sol para ir caçar insetos nas zonas circundantes, um espetáculo que atrai centenas de turistas.

Já apanhou sustos por lá?
Numa visita a uma mina abandonada no Quénia, notei que o nosso colega queniano, que estava a servir de guia estava a andar às voltas à procura da saída. Confesso que por momentos fiquei com medo de ficássemos sem saber como regressar à superfície.

Ricardo Rocha e Irene Conenna fazem uma telemetria de morcegos no norte do Quénia

Adrià López-Baucells

Foi a viagem mais desafiante?
Comecei a trabalhar com morcegos na Amazónia em 2011, num projeto que acabou por evoluir para o meu doutoramento. Foi provavelmente essa a mais desafiante, não só pela responsabilidade de estar pela primeira vez a trabalhar com morcegos, mas acima de tudo porque tive de ultrapassar o medo de aventurar-me à noite na selva. Acho que a mais marcante foi a primeira vez que visitei os trópicos, em 2007, para um curso em ecologia tropical no Quénia.

O que aprendeu sobre morcegos nessas viagens que possa ajudar a compreender o que se passa?
Os morcegos são excelentes bioindicadores da saúde dos ecossistemas. Na Amazónia, onde mais de 100 espécies de morcegos ocorriam na nossa área de estudo, conseguimos identificar que a desflorestação induzia alterações enormes nas comunidades de morcegos, que tinham reflexo em outros grupos animais. Estas alterações nas comunidades biológicas induzidas pela ação humana levam a novas interações entre espécies, que podem eventualmente levar a recombinações entre vírus e outros elementos patogénicos.

Como é que podemos prevenir, pelo menos parcialmente, outro surto desta natureza?
Com mais e melhor ciência, com decisores políticos que assentem as suas decisões na melhor informação disponível e por uma alteração generalizada de comportamentos individuais associados à destruição do equilíbrio dos ecossistemas naturais.

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