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Espanha. A terra dos sem-trabalho

Arcos de la Frontera tem 45% de desemprego. Sem trabalho, Antonio e Vanessa só conseguem criar os filhos com a ajuda dos pais. "É um martírio." Para tapar buracos, começaram a cultivar marijuana.

Reportagem em Arcos de la Frontera, Espanha

Não é por acaso que Antonio Arminio, de 39 anos, passa a mão pelo cabelo, percorrendo a cabeça de trás para a frente com a ponta dos dedos em arco. De certa forma, é por ali, no seu couro cabeludo, que se pode contar um pouco da sua história recente. “Há sete anos, tinha o cabelo todo preto, todinho”, diz, pondo ainda mais em evidência a sua cabeleira grisalha. “Depois, começaram as preocupações.” Por preocupações, leia-se, o desemprego.

São 20h00 e estamos no pátio do Colegio San Francisco, uma escola para alunos dos 3 aos 11 anos em Arcos de La Frontera, na Andaluzia. Espalhados um pouco por todo o lado, estão largas centenas de adultos que falam, em tom de convívio, deixando um burburinho constante no ar nesta festa de final do ano letivo. Além dos balcões onde se vende comida e bebida, o que mais se destaca é o palco, encostado a um dos muros do pátio, onde cada turma sobe para executar uma coreografia temática.

Este ano, a turma de Ariana, a filha mais velha de Antonio, com nove anos, inspirou-se na Índia, com os rapazes a vestirem calças coloridas e largas e envergando um turbante, ao passo que as raparigas têm todas o cabelo num carrapito e exibem um brilhante no meio da testa. Houve outra sala que escolheu vestir-se como as bandas de glam-metal dos anos 1980, exibindo cabeleiras de várias cores, todas coerentemente longas e volumosas. Outro grupo decidiu homenagear o cantor norte-americano James Brown, vestidos de branco e prateado e com uma peruca preta e encaracolada. E também há índios e cowboys.

Arcos de la Frontera tem uma taxa de desemprego de 45%. É a mais alta de toda as cidades espanholas que têm entre 10 mil e 40 mil habitantes.

Embora estejam na escola, no pátio, as conversas são de adultos — mas também de circunstância. Gabam-se dos filhos e das notas que eles tiveram. Queixam-se do calor, que agora já não tem volta a dar até aos dias em que os termómetros vão aos 40º. Discutem a situação da roja, a seleção espanhola, que joga hoje contra a Croácia, com a qual disputará o primeiro lugar do grupo D do Euro 2016. Assim é a conversa de circunstância: salta-se de um tema para o outro sem grande critério, sem demoras. Porém, existe um tema que arrasta grande parte destes pais para conversas mais longas e sérias, em que o futebol ou o tempo já não servem de saída de emergência e durante as quais esquecem o ambiente festivo da ocasião. Fala-se de desemprego.

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Arcos de la Frontera é um dos sítios mais afetados pelo desemprego em toda a Espanha. A nível nacional, a taxa de desemprego chega aos 20,1% — a segunda mais alta da Europa, apenas atrás da Grécia, com 25,6%. De todas as regiões do país, é aqui, na Andaluzia, que os números dos que não têm emprego sobem mais alto, fixando-se atualmente nos 29,7%. E, em toda a região, é Arcos de la Frontera que mais sofre com a falta de trabalho. Aqui, a taxa de desemprego chega um nível tão alto que dispensa adjetivos: 44,58%. Na categoria das cidades que têm entre 10 mil e 40 mil habitantes (aqui, vivem cerca de 31 mil), esta é a que tem a taxa de desemprego mais alto em toda a Espanha.

Os cabelos brancos começaram a aparecer na cabeça Antonio nos anos em que passou a fazer parte desses números. Até essa altura, trabalhava na construção civil, onde se especializou em telhados.

“Até há sete ou oito anos não conseguia parar quieto com tanto trabalho que tinha. E antes de o euro chegar, então… Havia trabalhado por todo o lado. Era chamado para uma empresa num dia, no outro pediam-me trabalho para uma casa particular… Estava sempre a trabalhar”, recorda, enquanto espera pela atuação da turma da filha. “Isso são tempos que nunca mais voltam, isso é certo. A construção em Espanha acabou.” Passados estes anos, só pensa: “Aprendi um ofício para nada”.

“Viver de mão estendida é um martírio”

Desde que caiu no desemprego, há sete anos, Antonio só tem conseguido trabalhar em biscates, todos pagos por debaixo da mesa e com duração reduzida. O último foi “há um par de anos”, quando passou quatro meses em Murcia para renovar a casa de um inglês, a mais de 500 quilómetros de Arcos de la Frontera. “Foi engraçado, porque eu não falo inglês e ele não fala espanhol. Então usávamos sempre o tablet dele para conversarmos”, diz a rir. “Sem o tradutor, nada feito!”

Vanessa Valenzuela, mulher de Antonio, também já não encontra trabalho há mais de dois anos. A última vez que trabalhou foi num restaurante da vila, como cozinheira. Esteve lá seis meses, tantos quanto durava o seu contrato. “Depois acabou-se”, diz, conformada, com o tom de quem fala de algo que não sabe nem pode controlar.

Antonio e Vanessa estão casados desde 2005

Casados desde 2005, o casal tem dois filhos: Ariana, de 9 anos, e Alejandro, de 20 meses. Todos os meses, precisam “no mínimo” de 700 a 800 euros, entre todas as despesas que têm e outras que vão aparecendo. Ariana é celíaca, o que obriga os pais a procurar alimentos sem glúten, quem têm tanto de raros como de caros. Alejandro só bebe leite de farmácia.

Para fazer frente a isto, Antonio e Vanessa não têm outra alternativa além de pedir dinheiro aos pais. É do lado de Vanessa que recebem mais ajuda, embora de forma contida. Os pai de Vanessa, antigo agente da Policia Nacional, que esteve destacado no país basco, recebe aquilo que a sua filha chama de “uma boa pensão”. É com ela que ajuda não só Vanessa, mas também os seus três outros irmãos. Vivem todos em Arcos de la Frontera e nenhum trabalha. “A minha mãe fala connosco, dá-nos ânimo, mas fica muito difícil”, conta Vanessa. “Viver assim, de mão estendida, é um martírio.”

Por vezes, Antonio também pede ajuda ao pai. Mas, admite, o ato repetido tem prejudicado a relação entre os dois. “Ele diz-me que só me quero aproveitar dele, que estou a explorá-lo”, conta. “Eu digo-lhe: ‘Mas como, papá? Eu já cheguei a passar mais 8 meses sem te pedir nada’. E quando eu lhe peço alguma coisa, é sempre para irmos ao supermercado. Fazemos umas comprinhas, só.”

Alejandro, com 20 meses, é o elemento mais jovem da família

Neste momento, o casal tem consigo 60 euros, que terão de chegar até ao fim do mês. “Depois vou ter de pedir mais à minha mãe”, remata Vanessa.

Antonio admite que não consegue esconder uma ponta de inveja em relação às gerações anteriores, nomeadamente a do seu próprio pai. A ideia de que cada geração viria a ter uma qualidade de vida superior às anteriores esfumou-se. Ou, pior, esbarrou no muro do desemprego. “Na minha família foi sempre assim. Com muito trabalho, é certo, mas as pessoas iam ficando sempre melhor. O meu pai vive melhor do que os meus avós, por exemplo”, refere. “Mas essa tendência parou em mim”, lamenta, para depois acrescentar: “Nem quero imaginar como será com os meus filhos”.

“A minha filha vai celebrar como Deus manda, dê por onde der”

Todos os dias, o casal toma decisões para poder continuar à tona. Por vezes há contas que ficam por pagar. Noutras, jantam pão, por vezes com salsichas, para que os filhos tenham uma refeição mais substancial. Estes, por sua vez, já aprenderam, cada um à sua maneira, que o “não” é a resposta mais comum aos seus pedidos. “A mais velha sabe que não pode ter caprichos, para ela não é segredo nenhum”, conta Vanessa. “E o mais novo, bom, não tem consciência disso, mas tem sido criado assim, a ouvir que ‘não’, que ‘não pode ser’.”

A última decisão de maior dimensão foi em torno da primeira comunhão de Ariana, em maio. Quando se depararam com os preços, Antonio e Vanessa tiveram de se sentar. Entre o vestido, a cerimónia e contratar um fotógrafo para registar o momento, o preço quase chegava aos 1000 euros. “Nem metade disso tínhamos”, recorda Antonio. Vanessa chegou a pôr na mesa a hipótese de não se fazer nada, mas Antonio disse-lhe que isso estava fora de questão. “Uma vez que seja a minha filha vai ter de tudo!”, exclamou na altura. “A minha filha vai celebrar como Deus manda, dê por onde der.” Acabaram por ser os avós de Ariana que pagaram tudo.

Antonio e Vanessa tiveram de pedir dinheiro aos pais para poderem pagar a primeira comunhão de Ariana (João de Almeida Dias / Observador)

Antonio conta esta história enquanto se ausenta momentaneamente da escola da filha, depois de se ter lembrado que tinha combinado receber em casa uma entrega de pão e doces sem glúten. Depois de encontrar a rapariga que lhe leva a encomenda, convida-a a subir a casa, onde tem guardados os 60 euros que sobram à família. Depois de fazer o pagamento, já só lhe sobram 41 euros.

Quando volta à escola, a filha já está no final da sua atuação. Antonio ainda a consegue ver breves instantes, enquanto dança de forma ondulante, numa fila. Depois do número, Ariana salta do palco e vai ter com os pais. “Não viste nada, papá!”, ralha a António. “Vi, filha, vi um bocado, mas tive de sair para comprar pão para ti!”. Ariana aceita a justificação.

No final da atuação, os colegas de Ariana dirigem-se até à zona dos balcões, para comer e beber. Um pai convida Antonio e a sua família. “Vamos comer qualquer coisa, venham”, alicia-o. “Ah, obrigado, mas tenho de ir para casa, está a jogar Espanha, hombre!”, devolve-lhe, enquanto passa pela fila para tirar senhas.

À saída, passando de novo a mão no cabelo, diz “as coisas como são”. “Eu queria ir, e o normal seria até ir jantar fora para comemorar o final do ano letivo”, diz. “Mas isso para mim, neste momento, é de outro mundo.”

“Prefiro votar num mal que conheço do que em alguém desconhecido”

Chegado a casa, Antonio tira a camisola, veste uns calções desportivos e senta-se no sofá, enquanto Ariana janta um pão com queijo derretido e Vanessa prepara o jantar de Alejandro, o filho mais novo. Este, obcecado por abrir gavetas e remexer tudo o que elas tenham, vai espalhando um pouco de tudo o que consegue apanhar por toda a casa.

Entretanto, já começou a segunda parte do Espanha-Croácia e a roja está a ganhar por uma bola. Enquanto segue o jogo de forma mais ou menos atenta, Antonio fala das eleições de dia 26 de junho, este domingo.

"Nenhum político me inspira confiança. Nós aqui em Espanha temos leis para pobres e para os ricos temos festins."
Vanessa Valenzuela, 33 anos, desempregada

Ainda não sabe em quem votar, mas tem uma ideia. “Estou muito indeciso, isso é certo. Mas acho que vou votar no PP”, diz, referindo-se ao Partido Popular, liderado pelo Presidente do Governo em funções, Mariano Rajoy. “Eu sinto que as coisas estão a melhorar um pouco. Bom, não é na construção, isso é impossível. Mas é o que se ouve dizer”, diz. E essa melhoria chega a Arcos de la Frontera, tão afetada pelo desemprego? “Não, isso não”, responde, para depois admitir outra hipótese de voto, embora menos provável: “Em tempos, gostava muito do tipo do Podemos, o [Pablo] Iglesias. Mas depois começaram a dizer que eles eram financiados pela Venezuela, quando agora há lá tanta gente na ruína…”.

Vanessa também não sabe em quem votar ao certo. “Ainda tenho de discutir isso com ele”, diz, referindo-se ao marido. “Nenhum político me inspira confiança. Nós aqui em Espanha temos leis para pobres e para os ricos temos festins”, queixa-se. Ainda assim, está mais próxima de votar no PP. As razões são semelhantes às de Antonio. “Prefiro votar num mal que conheço do que em alguém desconhecido”, justifica, na cozinha.

Vanessa recebeu propaganda do Partido Popular pelo correio. Ainda está indecisa, mas inclinada para votar no partido de Mariano Rajoy (João de Almeida Dias / Observador)

Ainda assim, se há um político espanhol de que Vanessa não gosta, então esse é Jose María Aznar, Presidente do Governo pelo PP entre 1996 e 2004. Ainda assim, por momentos, esquece-se do seu nome. “Antonio, como é que se chama aquele que mandava quando tu tinhas trabalho”, pergunta-lhe, num grito, da cozinha para a sala. “Aznar!”, responde-lhe ele, no mesmo volume, ao mesmo tempo que informa, com pesar: “Porra, os croatas já estão a ganhar!”. “Esse mesmo, Aznar“, responde-lhe a mulher, sem fazer referência ao futebol. Para Vanessa, foi Aznar quem “deitou tudo a perder”, uma vez que foi durante o seu tempo no Governo que Espanha entrou para o euro. “A partir daí, foi só perder emprego.”

Dois vasos de marijuana para pagar contas

Assim, mesmo que com a cronologia já esbatida pelo tempo, vieram os cabelos brancos de Antonio, as olheiras de Vanessa e as conversas que vão tendo, noite após noite, sobre o mesmo tema que muitos iam discutindo no pátio do Colegio San Francisco, enquanto os seus filhos atuavam no palco: o desemprego. “Às tantas entramos num estado depressivo, porque não temos nada para fazer além de cuidar dos nossos filhos”, queixa-se Vanessa. “Falamos disto a toda a hora.”

"Há trabalho, é? Mas onde, que eu não o encontro? Aqui em Arcos não há, que eu já virei todas as pedras. E quando há é como uma amiga minha, que trabalha 12 horas por dia a fazer de tudo numa casa particular, sem contrato nem nada, a ganhar 400 euros!"
Vanessa Valenzuela, 33 anos, desempregada

A esperança é que, um dia, o telemóvel toque e com isso chegue uma oportunidade de trabalho. A procura ativa, garantem, quase não vale a pena, por mais que alguns — sempre entre os que têm trabalho — ainda digam que “só não encontra trabalho quem não quer, há muito que fazer aqui”. “Quando me dizem isso fico louca”, diz Vanessa. “Há trabalho, é? Mas onde, que eu não o encontro? Aqui em Arcos não há, que eu já virei todas as pedras. E quando há é como uma amiga minha, que trabalha 12 horas por dia a fazer de tudo numa casa particular, sem contrato nem nada, a ganhar 400 euros!”

A última vez que o telemóvel de Antonio tocou com uma oferta foi há dois meses. Só que, em vez de um trabalho na construção, esta proposta era diferente — e uma novidade, sobretudo. Tratava-se de um amigo seu que lhe perguntou: “Queres ganhar 500 euros em quatro meses?”. Quase não esperou pela resposta para poder explicar ao que vinha ao seu amigo desempregado.

Dois meses depois, o resultado está no quintal de Antonio: dois vasos de barro, redondos, com diâmetro de uma bola de basquetebol, de onde despontam duas plantas de marijuana com mais de metro e meio cada.

Antonio começou a cultivar marijuana para ganhar algum dinheiro. Um amigo vai comprar-lhe as plantas quando já estiverem totalmente crescidas (João de Almeida Dias / Observador)

“O meu amigo fuma e disse-me que me dava 250 euros por cada planta se eu as criasse”, explica, como quem diz que a proposta era irrecusável. “Ele deu-me as sementes de marijuana e explicou que só tinha de deixar numa zona com sol a vir de cima, para elas crescerem em direção à luz e ficarem altas, e para regar a olho”, conta. “Depois ele disse que vinha cá, ao final de quatro meses, punha as plantas num saco e depois fazia o que entendesse com elas. Isso depois é lá com ele, não é comigo.”

Faltam dois meses para, “se Deus quiser”, Antonio ganhar os prometidos 500 euros.

Entretanto, toda a gente lhe disse que ele só podia estar louco. O irmão não quis acreditar. O pai nem sonha. A mulher tem medo de que, um dia, “a Guardia Civil entre pela casa adentro”.

Antonio é sensível a todos esses argumentos. Mas, para cada um deles, tem sempre a mesma resposta: “Escuta, quando tens filhos e não tens trabalho, fazes de tudo”.

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