O tombo foi grande. Tanto Marisa Matias, há cinco anos, como o Bloco de Esquerda, em 2019, valiam o mesmo nas urnas: meio milhão de votos. Em menos de nada, contudo, voaram 300 mil votos e o Bloco de Marisa ficou-se por apenas 165 mil nas Presidenciais. Para onde foram? O que aconteceu? No partido de Catarina Martins, que foi o primeiro a assumir a derrota em toda a linha na noite eleitoral, já se fazem contas à vida. Este sábado, a Mesa Nacional — órgão máximo entre convenções — vai reunir-se para discutir e aprovar uma proposta de resolução da direção que tira duas conclusões: não foi a estratégia do voto contra o Orçamento que ditou a queda do Bloco, nem as pessoas se relacionaram com os temas da resposta à crise pandémica na hora de votar. Foi (quase) tudo para a “simpatia” de Marcelo Rebelo de Sousa, que seduziu mais a esquerda do que seria de esperar.
A admissão é feita ao Observador por vários dirigentes do partido: “Não esperávamos que Marcelo Rebelo de Sousa fosse buscar tanto à esquerda do PS”. Mas olhando para os números é isso que o Bloco de Esquerda conclui que aconteceu. Dos 300 mil votos perdidos, cerca de 80 mil foram para o atual Presidente da República — que beneficiou por um lado do voto útil, e, por outro, da postura que teve contra André Ventura no debate televisivo que o tornou, nas palavras de um dirigente bloquista, um “candidato passível de ser votado pela esquerda” –, enquanto “apenas” 40 mil foram para Ana Gomes sob o argumento de ficar à frente de André Ventura. São estes os números que estão na cabeça dos bloquistas no momento em que o partido vai discutir o tema e votar uma proposta de resolução política apresentada pela direção nacional.
“Os anos da geringonça deram a Marcelo créditos de garante de estabilidade e o confronto com Ventura associou ao presidente em funções a imagem de tampão ao crescimento da ultradireita”, lê-se no texto a que o Observador teve acesso.
A ideia é que Marcelo ainda é visto pelos simpatizantes e eleitores da esquerda como uma espécie de “santo padroeiro” da geringonça, e como a antítese de Cavaco Silva, logo, o bom para a esquerda contra o mau para a esquerda. Marcelo é bom para a esquerda e é esta a desculpa que os bloquistas encontram para explicar a fraca votação, recusando fazer leituras nacionais ou admitir mudanças de estratégia.
“Foi difícil” criticar Marcelo
Não há diabolizações quando não há diabos, e se a esquerda é a primeira a ver simpatia em Marcelo Rebelo de Sousa, já que o diabo está noutro lado, então isso explica parte da fuga dos eleitores. Marisa Matias foi a primeira a admitir, no debate frente ao atual Presidente, que, “provavelmente”, o próximo Presidente estaria sentado à sua frente. O tom “cordial” desse debate, mas também do debate entre João Ferreira e Marcelo, é assumido pela direção do Bloco, que entende que Marisa Matias sublinhou as diferenças face ao Presidente da República, nomeadamente na saúde (público e privado) e na legislação laboral, mas não inventou tensões onde elas não existem.
No texto da proposta de resolução política que vai a votos este sábado fica claro que o Bloco de Esquerda admite ter sido “mais difícil” expor as divergências face ao candidato do centro com a crise pandémica a monopolizar as atenções. “Sob a crise pandémica que secundarizou a visibilidade da campanha, foi mais difícil expor os bloqueios que a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa promove”, lê-se, referindo-se àqueles que são os temas-bandeira do Bloco desde a última discussão do Orçamento do Estado: legislação laboral, saúde ou apoios sociais.
O plano de campanha do Bloco era esse: juntar Costa e Marcelo no mesmo saco e dizer que foi por culpa deles que a resposta à crise pandémica não foi mais além. Mas “foi difícil”, admite-se, ao mesmo tempo que se reconhece que ninguém ligou a esses temas no domingo passado, porque a discussão era outra. E é aí que entra André Ventura.
A entrada em cena de Ana Gomes e o batom vermelho
E o voto anti-André Ventura. “Parte significativa do eleitorado não resistiu à pressão do voto útil”, diz ao Observador uma fonte bloquista. E por voto útil há dois entendimentos. Um é o de dar a vitória a Marcelo Rebelo de Sousa logo à primeira volta porque, assim como assim, não é mau e já estava ganho; o outro é o voto do segundo lugar, o voto anti-Ventura, personificado na candidatura de Ana Gomes, que, apesar de não deslocar muito aparecia mais bem posicionada nas sondagens para derrubar o candidato do Chega.
Mas aí o Bloco de Esquerda esperneia antes de reconhecer essa fuga de votos para Ana Gomes. Assim como esperneia quando ouve Ana Gomes dizer que as duas conversaram sobre uma candidatura conjunta — isso “não esteve em cima da mesa”, garantem ao Observador dirigentes bloquistas. A fatia maior fugiu para Marcelo, prefere dizer o partido de Catarina Martins. “As votações de Ana Gomes (um segundo lugar muito aquém do conseguido por Sampaio da Nóvoa há cinco anos) e de João Ferreira (ao nível de Edgar Silva) também confirmam esta leitura” de que a vitória folgada de Marcelo à primeira volta foi contributo da direita moderada, do PS sobretudo, mas também da esquerda, lê-se no texto da resolução política. Ou seja, de eleitores habituais do PCP e do BE.
Certo é que, ao contrário de Marisa Matias, que não hostilizou, Ana Gomes passou grande parte da campanha a apontar o dedo a Marcelo Rebelo de Sousa, quer pela inação na justiça quer pela amizade com Ricardo Salgado quer pela complacência e normalização da extrema-direita. E não foi por isso que descolou. Não foi o suficiente para ir buscar votos socialistas, nem à ala pedronunista do PS, que lhe valeu apenas 13% nas urnas, muito longe dos 22,8% de Sampaio da Nóvoa. E também é certo que Marisa Matias e Ana Gomes não se hostilizaram entre si — tendo até aderido ambas ao movimento do batom vermelho que surgiu para defender Marisa Matias dos “insultos” proferidos num comício pelo líder do Chega.
Erro? Não encontrado. Enquanto o PCP optou por não responder aos insultos (Ventura chamou “avô bêbado” a Jerónimo) para não dar centralidade ao discurso do adversário, fonte do Bloco de Esquerda admite que discutiu o assunto internamente, mas o movimento foi de tal forma espontâneo nas redes sociais que iria acontecer independentemente de a campanha de Marisa Matias (e de Ana Gomes) o ter agarrado ou não. Mais: o insulto foi sentido como um ataque às mulheres, não só a Marisa Matias, e “agressão explícita e direta deve ter lugar a resposta”, defende-se no partido de Catarina Martins. Deixar Ventura a falar sozinho não, portanto, era opção.
Em todo o caso, outra análise que a esquerda faz é que os votos em André Ventura vieram todos do PSD, do CDS e da abstenção. Mesmo no Alentejo, onde Rio foi o primeiro a dizer que Ventura tinha conseguido fazer o que nunca foi feito ao ultrapassar o PCP, a esquerda acredita nos números que os comunistas puseram logo a circular nas redes sociais: os votos que tinham sido de Edgar Silva há cinco anos mantiveram-se fiéis a João Ferreira; onde Ventura conseguiu votos foi na abstenção — que é particularmente elevada no Alentejo mais pobre. Mais: foi nas freguesias “burguesas” dos centros urbanos que o Chega e a IL tiveram mais votação — e isso são eleitores habituais do PSD e do CDS.
“Na noite eleitoral, Rui Rio mostrou reciprocidade e admitiu que o projeto de poder do PSD também passa pelo Chega. Mas a direita está longe de ter uma maioria que permita qualquer posição decisiva. Pelo contrário, ao tentar normalizar o Chega, o PSD confina-se ao reduto eleitoral que aceitaria a perspetiva de um governo com a extrema-direita, oferecendo a António Costa a representação do centro político”, lê-se no texto da resolução política do BE a que o Observador teve acesso.
Esta “reconfiguração da direita” também importa à esquerda e também merece considerações na proposta de resolução política que vai a votos no Bloco de Esquerda. É que com o PSD virado para Ventura, o centro fica todo destapado para Costa, que fica em vantagem, e importa à esquerda mostrar-se relevante. “Só a afirmação de alternativas à esquerda e respostas exigentes contra a crise poderão relegar o extremismo ao lugar marginal que deve ser o seu”, lê-se no texto onde o Bloco procura explicar porque é que o foco deve continuar a ser a resposta à pandemia, que é insuficiente da parte do Governo.
As sondagens que interessam
Todo o político que é político sabe que “as sondagens que importam são as das urnas”, mas de tempos a tempos há sondagens que dão jeito. É a essas que o Bloco de Esquerda se agarra agora para recusar fazer extrapolações da queda nas presidenciais para um cenário de legislativas. Primeiro, porque estas presidenciais tinham Ana Gomes, que não representa nenhum partido, e tinham Marcelo que era meio Rio meio Costa. Depois, porque há quem diga que estas eleições, de todas as que aí vêm, foram as mais fáceis para Ventura — porque os eleitores do PSD e do CDS estavam à solta. E, por fim, porque mesmo quem admitiu não ter votado em Marisa votaria no Bloco num cenário de legislativas.
É o que dizem as sondagens feitas à boca das urnas no domingo, que questionavam em quem os inquiridos votaram nas presidenciais e em quem votariam em eleições legislativas. O BE teve 8% nessa projeção, apesar de ter tido menos de 4% nas presidenciais. “Não ter votado na Marisa não é o mesmo do que não votar no BE”, ouve o Observador de dirigentes do partido que respiram de alívio.
Mais: essa sondagem que dá 8% ao BE põe o Bloco numa posição equivalente à que estava antes de anunciar o fatídico chumbo do Orçamento do Estado, no final de outubro. Em setembro, por exemplo, a Aximage dava 8,3% de intenções de voto ao Bloco, o que leva os bloquistas a crer que nada disto teve a ver com essa posição de distanciamento face ao Governo.
“Não se confirmaram as expectativas de quem, em particular no PS, esperava destas presidenciais um pronunciamento popular, por prémio ou punição, acerca das diferentes posições à esquerda perante o Orçamento do Estado para 2021″, lê-se na resolução política.
Isso e o facto de o PCP, que no entender do Bloco fez uma campanha de “simpatia” e não agressão, contrária ao que é habitual, porque achava que ia buscar votos ao PS e ao BE, não ter sido particularmente premiado nas urnas. João Ferreira ficou à frente de Marisa mas por 15 mil votos. Ou seja, se o PCP não foi premiado por se ter mantido ao lado do Governo no Orçamento, também o BE não foi prejudicado por se ter afastado.
Além de que a resposta à pandemia continua a ser a “prioridade” do Bloco e, aí, não se desvia uma linha daquilo que foi a postura no Orçamento do Estado. “Se toda a esquerda tivesse sido firme teríamos ido mais longe”, foi dizendo Marisa Matias no debate de não agressão frente a João Ferreira. É aí que o Bloco está e daí não vai sair: Proteção laboral, proteção social e reforço do SNS, se o Governo continuar com o apoio do PCP (PAN, PEV e não inscritas) e não for mais longe então o Bloco ficará a reclamar sozinho. É disso que se vai valer nas urnas?