“Esta é a coisa estupenda, provocatória e absoluta que Jesus diz de si mesmo: Eu sou a Verdade.
E é disso, da verdade, que o Senhor Jesus me constituiu profeta. O bom gosto do nosso mundo perguntará, escandalizado, se eu me considero então detentor da única verdade. E eu respondo que não. Não sou detentor da verdade. Mas sou detido por Ela, sou possuído, conduzido, impelido e guiado por Ela. Não sou senhor da verdade, mas sou servo da Verdade.”
Foi assim, sem cerimónias, que o jovem Padre João Seabra se apresentou aos fiéis no dia da sua Missa Nova (a primeira missa pública que um padre celebra depois de ordenado), a 12 de novembro de 1978.
João Seabra era o primeiro filho de uma família da alta burguesia lisboeta com origem ribatejana. De raciocínio brilhante e com resposta cortante e rápida, antes de descobrir a vocação comentava-se que tinha futuro na alta política. Colega, primeiro no liceu e depois na Faculdade de Direito de Lisboa, de Marcelo Rebelo de Sousa, dizia-se na altura que um, João Seabra, chegaria a primeiro-ministro e o outro, Marcelo Rebelo de Sousa, chegaria a Cardeal-Patriarca. Os dois católicos chegaram a ser companheiros na condução de grupos de jovens da Ação Católica, onde ensinaram os primeiros passos no catolicismo a muitos jovens, entre os quais Guilherme de Oliveira Martins. Antes, durante e depois discutiam política e o regime, com que nenhum dos dois se sentia confortável. Marcelo não faz cerimónia e conta aos autores do livro “João Seabra – à Sua Maneira” que “o Padre João ganhava sempre as discussões” e que foi essa a razão por que Marcelo se esforçou por vencer a timidez de que dizia padecer.
No fim do curso de Direito, Deus, afinal, chamou João Seabra para o sacerdócio e terá destinado Marcelo à política. Nem um chegou a Cardeal-Patriarca, nem o outro a primeiro-ministro.
Mas este é só início do longo e fecundo percurso do Padre João Seabra, que se ordenou a 5 de novembro de 78.
Descobriu a vocação no final do curso de Direito, em 1972. E assim que ficou certo de qual era o seu caminho, desinteressou-se dos estudos, ligou para o seminário, chamou o padre responsável, o padre Policarpo, e disse que precisava de lhe falar. “Cheguei e disse-lhe: «olhe, eu não quero ir para padre nem nunca quis, mas ultimamente tenho-me convencido de que Deus quer que eu vá. Portanto, estou aqui para ir para padre».
João Seabra queria entrar no dia seguinte. A decisão estava tomada. Mas José Policarpo mandou-o fazer os últimos exames do curso e só depois voltarem a falar. João Seabra obedeceu contrariado. A obediência é uma virtude cristã, a que os padres estão especialmente obrigados e que, para João Seabra, senhor do seu nariz e intelectualmente superior, foi sempre a virtude mais exigente. Fiel a Deus e ao Seu chamamento, Seabra sempre soube que era pela obediência que o seu Senhor o havia de conduzir. Fez os exames e em outubro de 1973 entrou no seminário.
Chegado ao velho palácio dos Olivais, Seabra encontrou um casarão vazio. Vivia-se a crise que, como sempre, chegou a Portugal uns anos mais tarde e que se deveu à reviravolta cultural provocada pelo maio de 68. O seminário, outrora cheio, tinha em 1973 apenas cerca de uma dúzia de seminaristas. Muitos tinham abandonado o seminário, outros o sacerdócio. João Seabra começava este caminho entusiasmado. Estar contra a corrente foi sempre algo que lhe deu prazer.
É nos Olivais que vive o 25 de Abril com o seu companheiro de quarto Manuel Clemente, de quem se tornou amigo. E é o Patriarca de Lisboa que recorda, muitos anos mais tarde, como o seminário foi alvo das buscas do MFA e como João Seabra foi determinante não só para acompanhar os militares, como para acalmar o ambiente. “Acabou a fumar cigarros com o MFA”.
A sua vida no seminário não foi pacífica. Seabra era uma personalidade forte. Mas o seu carácter não foi mais forte do que a sua vocação. E em 1978 é ordenado padre.
Começou como capelão da Universidade Católica Portuguesa, onde deixou marca em muitas gerações de alunos, hoje com carreira reconhecida nos mundos da política, da economia e do jornalismo. A sua personalidade forte marcou-os a todos, mesmo aos que não gostavam das suas práticas intrusivas.
Ao longo da sua vida de padre, Seabra marcou muitas gerações. Dizia que nunca achou que tivesse vocação para jovens, mas foi aos jovens que mais marcou. Primeiro na Universidade Católica de Lisboa, depois nas Equipas de Jovens de Nossa Senhora, depois nos Campos de Férias que ajudou a fundar e finalmente no movimento Comunhão e Libertação que lançou em Portugal e ao qual pertenceu até ao dia da sua morte.
Pregador incomparável, tem várias das sua homilias proferidas nas paróquias de que foi prior – Santos-o-Velho e Encarnação – publicadas. A sua vida de sacerdote ficou também marcada pelo protagonismo que teve em várias batalhas, do aborto à defesa dos valores da moral católica. João Seabra era um padre de verbo fácil e temperamento forte, características que fizerem deste padre de Lisboa uma figura da Igreja que não passou despercebida nem a crentes nem a não crentes.
Na última etapa da sua vida, o seu Senhor conduziu-o ao seu Calvário. Diagnosticado com uma forma particularmente agressiva de Parkinson, foi perdendo gradualmente a faculdade da fala, justamente a sua maior arma. Viveu a doença no seguimento do que aprendeu com as suas duas maiores referências na Igreja, curiosamente afetados pela mesma doença: João Paulo II e Monsenhor Luigi Giussani (sacerdote italiano, fundador de Comunhão e Libertação). Como eles, não deixou de ser sacerdote e de conduzir as suas ovelhas até ao fim. Não conseguindo falar, fazia o enorme sacrifício de escrever, utilizando as ferramentas modernas do WhatsApp e das mensagens de telemóvel.
Para os que o seguiam, ficará para sempre na memória a sua homilia de despedida como pároco da Igreja da Encarnação no Chiado:
“Então o que é que me resta? Resta-me a minha vida dada a Deus. Como no primeiro instante. A minha vida dada a Deus, para que ele disponha. Para que a utilidade a atribua Ele e não a minha interpretação de mim próprio, nem a ideia que os outros fazem de mim. Mas Ele. Na utilidade da vida que não tem outro propósito senão servi-Lo e oferecer-se por Ele e dar-se por Ele. Como Ele fez por mim.”
Raquel abecasis é autora, com José Luís Ramos Pinheiro, do livro “João Seabra – à sua maneira”