789kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Maria de Coppi, missionária nascida nos arredores de Veneza em 1939, chegou pela primeira vez a Moçambique a 7 de agosto de 1963. Foi assassinada esta terça-feira à noite durante um ataque do Estado Islâmico à missão católica de Chipene
i

Maria de Coppi, missionária nascida nos arredores de Veneza em 1939, chegou pela primeira vez a Moçambique a 7 de agosto de 1963. Foi assassinada esta terça-feira à noite durante um ataque do Estado Islâmico à missão católica de Chipene

Maria de Coppi, missionária nascida nos arredores de Veneza em 1939, chegou pela primeira vez a Moçambique a 7 de agosto de 1963. Foi assassinada esta terça-feira à noite durante um ataque do Estado Islâmico à missão católica de Chipene

Estava quase cega mas recusou abandonar Moçambique. A história da freira Maria, assassinada pelos terroristas islâmicos

Em 2021, a religiosa Maria de Coppi podia ter ficado em Itália mas preferiu voltar à missão católica de Chipene, em Moçambique. Foi assassinada pelos terroristas islâmicos aos 83 anos.

    Índice

    Índice

Quando, às 21h desta terça-feira, dia 6 de setembro, os insurgentes lhe bateram à porta, a irmã Maria de Coppi, missionária comboniana, já sabia que a situação se tinha complicado e que quase toda a população de Chipene tinha abandonado a aldeia moçambicana, 300 quilómetros a sul de Pemba, capital da província de Cabo Delgado.

Nessa mesma tarde, Eleonora Reboldi, também italiana e a responsável por aquela missão católica no norte de Moçambique, na província de Nampula, tinha feito um périplo pela aldeia e percebido que, por receio dos ataques dos terroristas islâmicos, tinham queimado uma aldeia a cerca de 30 quilómetros e estavam cada vez mais perto. As 400 famílias que ali moravam tinham fugido.

“Estava habituada aos guerrilheiros da Renamo, que nunca dispararam contra as irmãs, nunca. Bastava abrir as portas, deixá-los levar a comida de que precisassem e não oferecer resistência. Ela, coitada, estava habituada a isso. Abriu a porta e ele apontou-lhe imediatamente a pistola. Depois disparou e matou-a”
Clarinda Rosa, missionária comboniana

Mais do que isso, conta a irmã Clarinda Rosa, missionária comboniana de Leiria em Maputo, o posto administrativo também tinha sido abandonado pela polícia e no hospital só restavam mesmo os que não tinham conseguido sair.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os sons dos tiros estavam cada vez mais perto, mas as três religiosas presentes na Missão Comboniana não podiam fugir, já estava demasiado escuro. No dia seguinte sairiam, decidiu a irmã Eleonora e comunicou-o a Maria de Coppi, 83 anos, e a Ángeles López, espanhola, mais ou menos da mesma idade. Nessa noite, Eleonora ficaria no lar das raparigas, junto das estudantes que ainda não tinham abandonado a Missão — eram 40, mas, com o avizinhar do perigo, as que tinham família nas imediações já tinham fugido. As outras duas irmãs ficariam em casa.

“Disse-lhes: ‘Estejam atentas, deixem a porta de trás aberta, se houver alguma coisa eu fujo com as meninas e vocês tentem sair também’”, recorda a irmã Clarinda três dias depois ao Observador, escassas horas antes do funeral da amiga Maria de Coppi, a primeira freira católica assassinada em Nampula por rebeldes ligados ao auto-proclamado Estado Islâmico.

Maria de Coppi chegou pela primeira vez a Moçambique a 7 de agosto de 1963

Não tentou sequer esboçar um movimento de fuga. Quando lhes bateram à porta, a irmã Maria, que já não conseguia ler mas ainda conseguia caminhar sem ajuda, abriu. “Estava habituada aos guerrilheiros da Renamo, que nunca dispararam contra as irmãs, nunca. Bastava abrir as portas, deixá-los levar a comida de que precisassem e não oferecer resistência. Ela, coitada, estava habituada a isso. Abriu a porta e ele apontou-lhe imediatamente a pistola. Depois disparou e matou-a”, conta a religiosa portuguesa, de 66 anos, desde 1991 em Moçambique. “Esta guerrilha para nós é uma coisa nova, não sabemos como vão agir e o que vão fazer. Com a Renamo já tínhamos criado uma maneira, sabíamos como atuavam e como nos defendermos, agora não, apanharam-nas um pouco de surpresa.”

Na casa, àquela hora, incapazes de adormecer tal era o estrépito lá fora, estavam apenas Maria de Coppi e Ángeles López. As outras duas religiosas da missão que não estavam no momento do ataque tinham, por casualidade, saído nesse mesmo dia de manhã para Nampula, para tratar de uns documentos.

"Pensei que o fim tinha chegado. Eles sentaram-me num passeio e disseram-me que queriam que saíssemos agora, que não queriam aqui esta religião e que queriam que todos fossem fundamentalistas islâmicos. E que se não quiséssemos piorar as coisas, tínhamos de sair no dia seguinte"
Ángeles López, sobrevivente do ataque

Entrevistada pela Televisão de Moçambique, a freira espanhola recordou os momentos de terror por que passou. “Pensei que o fim tinha chegado. Eles sentaram-me num passeio e disseram-me que queriam que saíssemos agora, que não queriam aqui esta religião e que queriam que todos fossem fundamentalistas islâmicos. E que se não quiséssemos piorar as coisas, tínhamos de sair no dia seguinte. Fiquei grata por me terem deixado viva”, disse. “Quando me deixaram livre, deixei a minha irmã ali morta no chão e fui para o mato”

Estado Islâmico reivindicou e justificou o ataque: religiosa tinha-se “empenhado excessivamente na difusão do cristianismo”

Maria de Coppi, missionária comboniana há 59 anos em Moçambique, país que considerava o seu e onde queria viver o resto da vida — e para onde em novembro do ano passado decidiu voltar, depois de 6 meses em Itália, a fazer exames e tratamentos médicos que lhe confirmaram que estava a perder a visão e muito provavelmente iria cegar —, morreu instantaneamente nesta terça-feira à noite, com um tiro na cabeça.

Um dia depois, através do Telegram, noticiou a BBC, o Estado Islâmico reivindicou o ataque, que provocou quatro mortos em Chipene e culminou com todas as instalações e bens da Missão Comboniana incendiados, incluindo a igreja, o hospital e as escolas primária e secundária.

"Há uma semana ligou à minha responsável, que é mais ou menos da idade dela, chegaram juntas à missão, e pediu-lhe: ‘Angelina, reza por mim. Estou mesmo a perder a visão mas eu queria ficar aqui’. E uma semana depois o Senhor deu-lhe a graça de completar a sua missão com um martírio, morrendo e ficando no meio do seu povo"
Clarinda Rosa, missionária comboniana

Maria de Coppi, nascida em S. Lucia Di Piave, numa zona rural, a cerca de 70 quilómetros de Veneza, a 23 de novembro de 1939, foi morta porque, explicou o comunicado do ramo do Estado Islâmico naquela província, se tinha “empenhado excessivamente na difusão do cristianismo”.

Disso, dá para perceber pelo testemunho da amiga Clarinda Rosa, a italiana, desde os 24 anos naquele país africano, podia ser acusada. “Há uma semana ligou à minha responsável, que é mais ou menos da idade dela — chegaram juntas à missão — e pediu-lhe: ‘Angelina, reza por mim. Estou mesmo a perder a visão mas eu queria ficar aqui’. E uma semana depois o Senhor deu-lhe a graça de completar a sua missão com um martírio, morrendo e ficando no meio do seu povo. É uma coisa linda. Nós não choramos por ela, choramos pelo povo”, diz a missionária portuguesa.

Gabriella Bottani, também missionária comboniana, coordenadora internacional da rede internacional “Talitha Kum” contra o tráfico de pessoas e sobrinha de Maria de Coppi, disse mais ou menos o mesmo na mensagem de voz que enviou para o site italiano dos Missionários Combonianos.

"Quando deixou Itália no ano passado para regressar à sua amada Chipene, a minha tia estava ciente de que aquelas podiam ter sido as suas últimas férias em casa. Ela sabia que, dada a sua idade, poderia morrer não só de doença mas também da violência que assola a parte norte de Moçambique, uma zona do mundo que é vítima da exploração dos recursos naturais"
Gabriella Bottani, missionária comboniana e sobrinha de Maria de Coppi

“Não foi a primeira vez que a irmã Maria se viu em situações violentas, como durante a guerra entre a Frelimo e a Renamo. Desta vez, porém, o dom da sua vida foi total e, não por acaso, no mês dedicado ao Laudato Si’ [“celebração ecuménica anual de oração e ação, inspirada pela encíclica Laudato Si’ do Papa Francisco”, explica o site Sete Margens]. Sim, a minha tia é uma mártir do Laudato Si’, na sua simplicidade e na sua fidelidade ao amor de Deus pelo cuidado para com as pessoas e para com a terra.”

À Mundo Negro, a revista espanhola dos combonianos sobre o continente africano, a sobrinha de Maria de Coppi reiterou o amor da tia — que antes de chegar a Chipene esteve nas missões de Anchilo, Meconta, Alua e Balama — por Moçambique.

“Há umas semanas disse-me que não podia viver noutro lugar. Quando deixou Itália no ano passado para regressar à sua amada Chipene, a minha tia estava ciente de que aquelas podiam ter sido as suas últimas férias em casa. Ela sabia que, dada a sua idade, poderia morrer não só de doença mas também da violência que assola a parte norte de Moçambique, uma zona do mundo que é vítima da exploração dos recursos naturais. Compreendi a sua hesitação: para ela, deixar Chipene era como perder a vida.”

Ao telefone com a sobrinha quando foi assassinada

Apesar de à distância de um continente, Gabriella Bottani assistiu ao ataque a Chipene em direto. Na terça-feira à noite, a tia ligou-lhe mas, como estava numa reunião, não conseguiu atender. Assim que ouviu a mensagem de voz que ela lhe deixou, a dizer que a situação perto da missão se estava a “deteriorar”, ligou-lhe de volta.

Eram 21h. Do outro lado da linha, Maria de Coppi explicou-lhe que a aldeia estava praticamente deserta, quase todas as pessoas tinham fugido: “Só restamos nós, os missionários”. Teve tempo para lhe perguntar se também tencionava sair no dia seguinte, quando a irmã Eleonora levasse as raparigas para longe da missão. “Após uns momentos em silêncio, respondeu: ‘Não sei, quero esperar, vamos ver como correm as coisas’”, recordou a sobrinha na mensagem de voz que enviou para o site dos Missionários Combonianos em Itália.

"Ouvi pancadas mais agudas, o som de balas talvez, e a voz de uma mulher, que não era a minha tia, a repetir: 'Misericórdia, misericórdia, misericórdia...'. A seguir ouvi mais disparos e depois um silêncio profundo”
Gabriella Bottani, missionária comboniana e sobrinha de Maria de Coppi

Logo a seguir, através do telefone, Gabriella Bottani ouviu uma série de “pancadas fortes” na porta da Missão e a tia, irmã da mãe, a implorar: “Calma, papai, calma!”. “Depois ouvi pancadas mais agudas, o som de balas talvez, e a voz de uma mulher, que não era a minha tia, a repetir: ‘Misericórdia, misericórdia, misericórdia…’. A seguir ouvi mais disparos e depois um silêncio profundo.”

O ataque prolongou-se até às 2h, causou outras três vítimas mortais — as pessoas que tinham ficado no hospital, explicou Clarinda Rosa ao Observador —, e destruiu completamente a Missão. “Destruíram tudo. Roubaram o sacrário, vandalizaram parte da sacristia e o sacrário, à procura de qualquer coisa, provavelmente dinheiro”, disse Alberto Vera, o bispo de Nacala, à Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS).

Os dois padres, ambos de nacionalidade italiana, que estavam na Missão, num edifício contíguo ao da igreja e ao dormitório dos rapazes (que também já tinham, na sua grande maioria, abandonado a região), conseguiram fugir para o mato circundante. A irmã Eleonora Reboldi, acompanhada das raparigas que restavam, fez o mesmo. Durante horas não conseguiram contar a ninguém o que se estava a passar — na Missão a linha telefónica tinha sido cortada pelos terroristas e no mato não havia rede móvel para fazer funcionar os telemóveis.

As instalações da missão comboniana em Chipene foram destruídas no ataque desta terça-feira

Facebook/ Acción Misionera Comboniana

A notícia acabou por espalhar-se a partir de uma mensagem enviada pelo padre Lorenzo ao bispo de Nacala, e que é citada pela Fundação AIS: “Fomos assaltados esta noite, a partir das 21 horas. A Irmã Maria foi logo morta com um tiro na cabeça. As outras conseguiram fugir, assim como as últimas meninas que estavam no lar. Todos os rapazes do lar já tinham saído. Tudo foi queimado e ainda está a arder…”

“Nunca tínhamos pensado que eles pudessem vir para este lado”

Apesar de em junho deste ano o Estado Islâmico ter reinvindicado o seu primeiro ataque em Nampula, após a invasão de uma aldeia em Memba e a decapitação de um suposto “cristão”, as religiosas de Chipene foram apanhadas de surpresa, diz a irmã Clarinda. “Nunca tínhamos pensado que eles pudessem vir para este lado. Todos os ataques tinham sido em Cabo Delgado, o povo deslocou-se, fugiu, e está acolhido nesta província de Nampula, onde há um campo de assentamento e onde muitas famílias decidiram recomeçar a vida.”

"A população está desorientada e a sofrer muito porque vive na incerteza e não sabe o que fazer, muitos fogem mas não sabem para onde ir. Falei com o bispo de Nancala (onde se encontra a Missão de Chipene) e ele disse-me que apesar de as autoridades terem enviado para lá os militares, a população está assustada"
Inacio Saure, arcebispo de Nampula

Há praticamente cinco anos, desde 5 de outubro de 2017, que aquela província do noroeste de Moçambique, uma região de maioria muçulmana, rica em gás natural, junto à fronteira com a Tanzânia, tem sido alvo de ataques de vários grupos de insurgentes com ligações ao Estado Islâmico e às milícias Al-Shabaab. Este verão, os jihadistas passaram a fronteira natural que a separa de Nampula e estenderam os ataques para lá do rio Lurio.

“Desde o início de setembro que tem havido ataques na nossa província”, disse, depois do assassinato da religiosa italiana, Inacio Saure, o arcebispo de Nampula, à Fides, a agência de notícias do Vaticano. “A população está desorientada e a sofrer muito porque vive na incerteza e não sabe o que fazer, muitos fogem mas não sabem para onde ir. Falei com o bispo de Nancala (onde se encontra a Missão de Chipene) e ele disse-me que apesar de as autoridades terem enviado para lá os militares, a população está assustada”.

O funeral de Maria de Coppi decorreu esta sexta-feira ao meio-dia na Igreja Coração Imaculado de Maria, na paróquia de Carapira

Facebook/ Movimento Democrático de Moçambique

Só desde junho deste ano, tinha informado em agosto o supervisor logístico dos Médicos Sem Fronteiras na província de Cabo Delgado, a violência já tinha obrigado à fuga de mais de 80 mil pessoas.

O caso é de tal forma grave que esta quinta-feira, dia 8, a União Europeia anunciou um apoio adicional de 15 milhões de dólares, cerca de 14,9 milhões de euros, à missão militar africana em Moçambique que tem tentado rechaçar os insurgentes no norte do país.

“Em Maputo tem havido algumas manifestações, ainda no outro dia avisaram para ninguém sair de casa porque iam queimar todos os carros que encontrassem. As coisas aumentaram o dobro, as pessoas não têm poder de compra, estão a viver uma situação muito difícil. Muitos juntam-se a estes grupos, que lhes oferecem muito dinheiro para ir para a guerra, porque estão desesperados”
Clarinda Rosa, missionária comboniana

Apesar de na capital moçambicana, a quase 2.300 quilómetros de Chipene, a atividade destes grupos ser inexistente, também lá se sente o desespero que está a fazer com que muitos jovens engrossem as fileiras do grupo, explica ao Observador Clarinda Rosa, que por casualidade está neste momento em Portugal, a gozar as férias a que os missionários combonianos têm direito, de quatro em quatro anos, e por isso teve de participar nas cerimónias fúnebres da amiga à distância, através da internet.

“Em Maputo tem havido algumas manifestações, ainda no outro dia avisaram para ninguém sair de casa porque iam queimar todos os carros que encontrassem. As coisas aumentaram o dobro, as pessoas não têm poder de compra, estão a viver uma situação muito difícil. Muitos juntam-se a estes grupos, que lhes oferecem muito dinheiro para ir para a guerra, porque estão desesperados.”

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora