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Esteve 16 dias sequestrada por um cartel mexicano e atravessou cinco países durante cinco semanas. Yaima conta a sua fuga de Cuba

Viajou 16 horas na mala de um carro e em contentores com mais de 500 pessoas. Apontaram-lhe armas à cabeça. Foi feita refém 16 dias até pagar um resgate. Yaima conta a sua fuga de Cuba ao Observador.

Yaima Rivero Canasi tem o seu nome inscrito num recorde histórico. Nunca tantos cubanos fugiram para os EUA como em 2022. Os números do ano passado bateram os do êxodo que se seguiu ao triunfo da revolução de Fidel Castro em 1962. Quando partiu de Havana, a 10 de novembro, já 270 mil tinham tomado a mesma decisão. Quando chegou a Miami, a 21 de dezembro, já iam em cerca de 300 mil, 2,7% dos 11,1 milhões de habitantes da ilha. Só que, mais de um mês depois, ainda não sai à rua sozinha. Continua consumida pelo medo. A travessia de cinco semanas, em que cruzou cinco países, incluiu um sequestro a seis quilómetros da fronteira norte-americana. Yaima foi ameaçada de morte. Tornou-se mais uma vítima dos violentos cartéis mexicanos, que viram nos imigrantes uma nova e multimilionária fonte de lucro.

Muitos cubanos ainda cruzam os 400 quilómetros, ou 250 milhas náuticas, que separam o estreito de Havana a Miami, em balsas improvisadas ou barcos mais sofisticados. Mas o canal dá menos garantias, é mais perigoso e mais caro. Yaima sabe bem disso. Já viu muitos amigos fazer esse caminho. Um primo há dois anos. Há meses um dos três irmãos que, como muitos outros, vendeu a casa para poder pagar a viagem e partir com a mulher e um amigo. Na altura hesitou segui-lo. A filha, Verónica, de 5 anos, prende-a à ilha. Acaba por decidir partir no verão, incentivada por uma amiga, também já a viver nos EUA há algum tempo, que lhe promete casa e trabalho e lhe empresta o dinheiro que nenhum cubano tem para pagar a travessia.

Prefere contudo aquela que é, desde 2021, a nova porta para a América: a ‘rota dos vulcões’. Com o acordo que facilitou as viagens de Cuba para a Nicarágua como turista, arrisca fazer os outros milhares de quilómetros pela América Central, guiada por ‘coiotes’, os  homens dos traficantes que negoceiam estas viagens. Voa até Manágua, cruza o país, para depois atravessar ainda as Honduras, a Guatemala e o México, até poder saltar a fronteira no Texas e apanhar um novo avião no sul dos EUA até à Florida. Só que o sonho não é o que lhe vendem por 9 mil dólares (8.200 euros).

Serão 42 dias de terror. Na primeira parte da viagem anda a pé, a cavalo, de barco e fechada 16 horas na mala de um carro, a alta velocidade, sem água nem comida. Mas isso estava longe de ser o pior. No México, além da passagem por um campo de ‘refugiados’, fecham-na em atrelados de camiões: primeiro num tapado por lona, em que vê um bebé quase ser sufocado por chorar num controlo policial; depois num de gado, com barras de ferro, em que segue amontoada com mais de 500 pessoas, todos de pé; e por fim num contentor fechado, onde vai ao lado de uma centena de homens, mulheres e crianças perto de asfixiarem, até chegarem quase à fronteira. E quando pára, em Ciudad Juarez, é feita refém.

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Este é o novo e multimilionário negócio do crime organizado. Sequestrar e extorquir imigrantes. Ela sabe que há quem passe dois, três, seis meses ali. E quem pague 15, 20, 200 mil dólares. Sem resgate não será libertada. Ameaçam matá-la, apontam-lhe armas à cabeça, obrigam-na a ver vídeos de tortura a outros imigrantes. Disparam contra a casa onde está trancada às escuras. Dão-lhe cada vez menos comida. Quando a família e amigos reúnem 8.500 dólares, soltam-na. Mas não tem força. Desmaia na corrida para entrar nos EUA. É presa. Acaba por sair com liberdade condicional. Finalmente chega a Miami, mas tem novas desilusões. Vive assustada. E só no último dia 18 de janeiro recebe a primeira boa notícia: dois dos cubanos que estiveram sequestrados com ela foram finalmente libertados e os criminosos detidos.

Yaima aceitou contar tudo o que viveu durante a fuga. É um relato na primeira pessoa. E pode chocar os mais sensíveis.

Yaima faz parte de uma onda migratória de Cuba para os EUA sem precedentes. São 4,5 vezes mais que em 2021. Bateu o recorde da que se seguiu à tomada do poder por Fidel Castro. Está a léguas dos números das outras duas grandes migrações: a de 1980, quando o Porto de Mariel foi aberto aos que quisessem sair da ilha e 125 mil o fizeram de abril a setembro; e a de 1994, na crise dos balseiros, em que 31 mil cubanos se fizeram ao mar nos meses de verão. Estas mega debandadas nem sempre são travadas e até podem ter um certo incentivo político, como escreve a BBC: porque ajudam a aliviar as tensões internas, como as que ultimamente têm levado milhares de cubanos a manifestarem-se nas ruas contra a cada vez mais precária vida em Cuba. Não há emprego, os preços não páram de subir, os alimentos e bens essenciais não chegam à ilha, os que chegam são importados e caríssimos, e a moeda desvaloriza cada vez mais face ao dólar.

Saí no dia 10 de novembro de Cuba. Decidi partir para ter uma vida melhor. Recentemente estava a montar um bar/restaurante com uma galeria permanente. Fiz a minha formação em Psicologia. Mas em Cuba nem todos podem depois trabalhar no público. Éramos 26 estudantes quando obtive a licenciatura e só cinco conseguiram entrar em centros de trabalho. Os outros têm de fazer outras coisas. Eu, por exemplo, comecei com um pequeno negócio.

Há muitas pessoas em Cuba que estão a ficar sem o que comer. Porque uma barra de pão que custava quatro pesos, agora custa 50. Subiu tudo. E demasiado depressa. Por isso há de novo tantos imigrantes cubanos. Muitas pessoas estão a partir para os Estados Unidos, mas também para outros países. A maioria vende as casas.

Agora a situação em Cuba ainda está muito mais difícil do que quando os Castros estavam no poder. Não há comida, todos os preços estão a subir, não há eletricidade. Há 12 horas sem luz, depois a luz vem duas horas. Outras vezes estamos seis horas com eletricidade e outras seis sem. Outra vezes ficamos todas as noites sem luz.

Já podemos montar um pequeno negócio. Mas com os preços a subir, ficou tudo mais complicado. Um iogurte natural, que antes custava 75 centavos, agora custa 3,88 dólares. Um MLC [Moneda Libremente Convertible, equivalente ao valor de um dólar americano, 0,90 euros] custa 200 pesos na moeda cubana. Para as crianças poderem comer um iogurte, imagine-se o que é preciso gastar.

Os meus pais tentam sobreviver como podem. A minha mãe neste momento não trabalha. Só toma conta da minha filha. O meu pai está na construção. Se não tens dinheiro, não podes ter coisas. É assim. Há muitas pessoas em Cuba que estão a ficar sem o que comer. Porque uma barra de pão que custava quatro pesos, agora custa 50. Subiu tudo. E demasiado depressa. Por isso há de novo tantos imigrantes cubanos. Muitas pessoas estão a partir para os Estados Unidos, mas também para outros países. A maioria vende as casas. Eu parti sozinha. A minha filha, Verónica, de 5 anos, ficou com os meus pais.

Não demorei muito tempo a planear a fuga. Fiz como muitos. Tenho uma amiga que já mora nos Estados Unidos há algum tempo e foi ela quem me propôs a ideia. Disse que me ajudaria com o dinheiro para que também fosse para a América. Foi uma decisão muito difícil. Mas era a única solução para poder ter e dar um melhor futuro à minha família.

O voo que Yayma fez para Manágua é muito fácil para os cubanos desde novembro de 2021. Miguel Díaz-Canel e Daniel Ortega assinaram um acordo que facilita, e muito, as entradas nos dois países. Não é preciso visto. O assunto foi bastante comentado nos jornais da América Central. Numa altura de grande contestação em Cuba, parecia novamente uma jogada para “acalmar os ânimos” internos na ilha. Já antes a imigração tinha sido usada como instrumento político: quer contra descontentamentos da população, quer como moeda de negociação com governos ‘amigos’. A verdade é que, a partir daí, se criou uma nova rota para a imigração rumo aos Estados Unidos: o número de imigrantes cubanos a chegar à fronteira norte-americana disparou desde a abertura dessa nova travessia, batendo os tais recordes históricos. A Nicarágua nunca assumiu contudo fazer parte de qualquer estratégia. Num comunicado enviado à BBC Mundo, o ministério do Turismo afirmava que os cubanos iam ao país apenas para “ver a beleza dos vulcões”. Mas as companhias aéreas que fazem a ligação têm os voos sempre esgotados e os preços estão em valores absurdos, que podem chegar aos 4 mil dólares (3 650 euros). E a prova que os interesses não eram, nem são, as belezas nicaraguenses, é que os vizinhos da Colômbia, do Panamá e da Costa Rica impuseram vistos e regulação pesada aos cubanos que fizessem escala nos seus países.

Há muitas pessoas que organizam viagens. Muitos ainda vão por mar. Nos botes. Mas muitos morrem, desaparecem e não se sabe nada deles. Porque vão sós, sem nada preparado, estão desesperados para sair. Num bote bom é muito mais caro. Cerca de 15 mil dólares [13.500 euros]. E muito mais perigoso. Corre-se o azar de não chegar, de acontecer algo no mar. Corre-se o risco de a polícia marítima nos apanhar. Ainda no mar ou, depois, já nos Estados Unidos, e de não nos deixaram entrar.

Cheguei a Manágua dia 11 de novembro às 3h00 da manhã. Tive de enviar uma foto antes de como ia vestida. Quando cheguei ao aeroporto a pessoa mostrou-me essa minha foto. Assim eu tinha a certeza que era ele quem me esperava e a quem devia seguir.

Nesta fuga por terra, a que fiz, também é complicado, por tudo o que temos que passar, sobretudo nós, os cubanos. Mas é quase seguro que, quando nos entregam na fronteira, nos deixam entrar nos Estados Unidos. No princípio é simples. É só comprar um bilhete de avião, apanhar o voo e nada mais. Basta uma passagem para a Nicarágua. Até aí é tudo legal. Depois é que começa uma travessia praticamente toda ilegal. Atravessar todos os países ilegalmente até aos Estados Unidos.

A travessia completa custa 9 mil dólares [8.200 euros]. Quem pagou foi a minha amiga. Quando chegasse aos Estados Unidos, o que trabalhasse era quase tudo para lhe pagar a ela. Em Cuba é muito difícil juntar dinheiro.

Na Nicarágua já me recebeu uma pessoa que me ajudaria a passar até às Honduras. Cheguei a Manágua dia 11 de novembro às 3h00 da manhã. Tive de enviar uma foto antes de como ia vestida. Quando cheguei ao aeroporto a pessoa mostrou-me essa minha foto. Assim eu tinha a certeza que era ele quem me esperava e a quem devia seguir.

A nova rota usada por Yaima, e por muitos cubanos como ela, junta-se a uma outra já há muito conhecida e usada na América Central: chamam-lhe o Triângulo do Norte. É por ali, atravessando vários países, que milhares de imigrantes tentam chegar aos Estados Unidos. Em 2017, os Médicos Sem Fronteiras publicavam um relatório, citado pelo O Globo, em que falavam da “crise humanitária esquecida” nesta travessia, que junta pessoas de muitas nacionalidades. Os próprios nicaraguenses cruzam as suas fronteiras rumo ao norte.

Esperámos até às 6h00 da manhã, tomámos o pequeno almoço e veio uma outra pessoa buscar-nos. A essas pessoas chamamos ‘coiotes’. Na verdade trabalham para eles. São estes ajudantes do ‘coiote’ que nos guiam sempre.

Vieram sete homens com cavalos e cada um de nós montou com um deles num cavalo. Nunca tinha andado a cavalo, mas os homens é que guiavam os cavalos, nós só íamos atrás. Mesmo assim era muito difícil, tínhamos que nos segurar só à cela e não à pessoa, por isso era preciso manter muito bem o equilíbrio para não cairmos.

Ao todo éramos sete pessoas, seis mulheres e um homem. Encontrámo-nos na Nicarágua, éramos todos cubanos, eu de Havana, os outros de outras regiões. Não nos conhecíamos. Quatro mulheres vinham juntas. Nós, os outros três, estávamos completamente independentes, cada um tinha partido por si, e éramos de lugares diferentes. A mais velha era uma senhora, dos seus 60 e tal anos. De resto, estávamos todos nos 30 e picos. Partimos às 8h00 da manhã para a fronteira da Nicarágua com as Honduras. Fomos em dois carros privados, num quatro pessoas, no outro três.

Quando chegámos a um lugar onde era preciso subir uma colina, para depois entrar na fronteira, já tivemos de ir a pé. Parámos numa casa. Deixaram-nos no pátio. Esperámos cerca de uma hora. Vieram sete homens com cavalos e cada um de nós montou com um deles num cavalo. Nunca tinha andado a cavalo, mas os homens é que guiavam os cavalos, nós só íamos atrás. Mesmo assim era muito difícil, tínhamos que nos segurar só à cela e não à pessoa, por isso era preciso manter muito bem o equilíbrio para não cairmos.

Foram só uns 20 minutos, mas atravessámos um rio, que demarca a fronteira, e tínhamos de ir muito rápido, passar por um lugar onde havia muito lodo e também muitos buracos, alguns enormes, sempre a grande velocidade. Tive muito medo. Era preciso estar muito concentrada para não cair.

Além disso havia pessoas com armas, e eu nunca tinha visto uma arma. Foi uma experiência forte, que nunca tinha vivido. Estávamos a fazer uma coisa ilegal e se aparecia ‘la migra’ [polícia de imigração], era um problema. As armas eram para nos proteger, naquele caso. Mas mesmo assim…

A “rota dos vulcões”, como lhe chama Yaima e outros cubanos, tornou-se um grave problema também para as autoridades das Honduras. No ano passado, foram cerca de 184 mil os imigrantes que passaram pelo país, rumo aos EUA. Mais 954,4% que em 2021, segundo o Instituto Nacional de Migración hondurenho, citado pela EFE. A maioria são da Venezuela e de Cuba: os números oficiais falam de cerca de 72.500 cubanos, quase 40% do total, um aumento de 1.310% face aos 5.139 do ano anterior. Quase todos entram de forma ilegal, por pontos ‘cegos’, guiados por ‘coiotes’ que os levam até à fronteira com a Guatemala, como aconteceu com o grupo de Yaima. Os indícios de que a própria polícia podia estar a fazer cobranças ilegais aos imigrantes levou o Comissariado Nacional dos Direitos Humanos das Honduras (CONADEH) a pedir ao Ministério Público em outubro que abrisse uma investigação sobre o caso. Foram desmanteladas várias redes de traficantes. Muitos, depois de cobrarem o valor da viagem, abandonam os imigrantes à sua sorte e sem qualquer garantia. 145 mil foram detidos em 2022. O Instituto Nacional de Imigração decide depois se os repatria ou lhes dá um salvo-conduto para que continuem viagem. Yaima conseguiu um destes vistos. Mas sabe que foi ‘comprado’.

Atravessámos a fronteira e fomos recolhidos por duas outras pessoas. Levaram-nos para uma casa, até que um carro chegasse para nos ir buscar. Seguimos por uma estrada que estava completamente bloqueada por atrelados de camiões, para os quais devíamos ser transferidos. Mas antes que se fizesse a passagem, o carro avariou e tivemos de ficar ali, na berma, à espera. Não podíamos sair. Para nada. Estava muito calor, era sufocante. Mas tínhamos de estar trancados. Só abriam a porta uns minutos, para que entrasse um pouco de ar fresco, depois fechavam logo. Era um carro pequeno e éramos sete. Íamos seis na parte de trás e um na parte da frente. Em cima uns dos outros. Esperámos uns 30 minutos. Até que veio outro carro, muito pequeno também.

Seguimos por outro caminho, muito difícil, com medo que nos seguisse a polícia. O carro teve que esconder-se algumas vezes. O condutor comunicava com outras pessoas que seguiam à frente em motos e avisavam se podíamos passar ou não. Iam com o telefone numa mão e a outra no guiador, pensámos que ia acontecer algum acidente. Eles falavam de armas: ouvíamos dizer ‘não podem passar, porque disparam contra o carro’. Estávamos num lugar rodeado por militares. Há militares que estão comprados, tal como os polícias, mas alguns não se podem comprar. Por isso tínhamos de passar escondidos.

Durante todo o tempo em que viajamos temos palavras-chave. As dos enviados dos 'coiotes'. São os nomes que lhes devemos chamar e que recebemos antes, logo no início. O nome do 'coiote', a palavra-chave, muda só em cada país. "Morbi", "Sapo", "Rã".

Demorou uma hora e tal, mas foi horrível. Chegámos depois a uma nova casa, onde tivemos de entrar muito rápido. Estávamos ainda todos cheios de sangue e molhados, desde que tínhamos cruzado o rio a cavalo, por causa das pedras e ramos. Mas só nos limpámos e seguimos logo a um escritório onde nos deram um salvo-conduto para podermos estar nas Honduras legalmente, sem problemas. No meu caso, era um visto de trabalho de três meses. Tudo isso estava pago.

Os pagamentos iam sendo feitos, por transferência, pela minha amiga desde os Estados Unidos. Eu só levava uns 500 dólares em dinheiro para comer alguma coisa no caminho. Se ela não pagasse, ou se alguém não pagasse, não podia continuar.

Regressámos depois à mesma casa. Deram-nos de comer, tomámos então banho e mudámos de roupa. Às seis da tarde subimos para um autocarro para ir até à Guatemala. Foi uma viagem de 16 horas. Até quase até à fronteira. Mas já não éramos só sete. Havia muito mais pessoas, da Guatemala, do Equador, da Venezuela. Ninguém se conhecia. Todos eram de grupos diferentes, que iam com um ‘coiote’ diferente.

Disseram-nos que se nos perguntassem alguma coisa, para respondermos que viajávamos sozinhos. Num controlo, a polícia mandou-nos parar e subiu a bordo, perguntou o que fazíamos e onde íamos. Dissemos apenas que íamos à Guatemala, tivemos que mostrar o salvo-conduto. Quando perguntaram com quem viajávamos, acabei por ter de dizer que viajava com o homem do grupo. Porque, dos sete, todos os outros eram brancos, eu era a única morena, dava bastante nas vistas, então acharam melhor dizer que era mulher daquele senhor. No final, foi uma viagem esgotante, por ser longa, mas sem problemas.

Descemos antes da fronteira. Num bar. Cada grupo sabia quem o ia buscar. Durante todo o tempo em que viajamos temos palavras-chave. As dos enviados dos ‘coiotes’. São os nomes que lhes devemos chamar e que recebemos antes, logo no início. O nosso era o ‘Merbi’.

O nome do ‘coiote’, a palavra-chave, muda só em cada país. Por causa da sua identidade. Mas tínhamos de ter cuidado, porque há sempre quem quer ganhar dinheiro. Há pessoas que viajam com ‘coiotes’ e outras que fazem isso por conta própria, mas pagam para que os ajudem a cruzar a fronteira. Por isso temos de saber quem está à nossa espera. Nós tivemos que esperar 15 minutos, porque o nosso ‘coiote’ não tinha chegado. Até que veio o carro. A palavra-chave aí era ‘rã’. Fomos para um lugar muito pertinho, só uns cinco minutos, e explicaram-nos como ia ser a travessia. Tínhamos apenas que subir a pé uma pequena lomba.

Só foi um pouco complicado para a senhora de 60 anos, porque era sempre a subir. E já estávamos esgotados a essa altura. Mas 15 minutos depois estávamos do outro lado. Esperámos mais 15 minutos, até que nos vieram buscar num carro para um pequeno hotel onde nos deram comida e onde tivemos de ficar cerca de três horas. E aí o grupo aumentou. Havia mais pessoas à espera. Já éramos 26.

Em 2018, o êxodo migratório evoluiu na América Central com a formação de caravanas gigantescas. Como a primeira aconteceu em 2010 por altura da Páscoa, milhares de pessoas de várias nacionalidades passaram a caminhar juntas rumo aos EUA sob o lema “Via Crucis: todos somos americanos por nascimento”. Através de páginas organizadoras nas redes sociais, divulgavam-se as informações necessárias para que os imigrantes, de muitas nacionalidades, não enfrentassem as dificuldades do caminho sozinhas, sob as regras dos gangues, e tivessem mais hipóteses de chegar ao destino. Os grupos formavam-se sobretudo no norte das Honduras, entrando depois pela Guatemala. Alguns chegaram ao México, na altura sob insultos de Trump e garantias de que seriam repatriados se cruzassem a fronteira norte-americana. Outros ficavam pela Cidade do México, onde eram individualmente aconselhados por advogados voluntários. A última grande marcha, com cerca de 7.500 pessoas, foi dissolvida à força por polícias e militares guatemaltecos no início de 2022. Foi a que teve maior repercussão internacional. Depois disso, os cartéis e os seus ‘coiotes’ voltaram a ter o papel principal. Yaima já só teve esta última possibilidade.

Fizeram-nos entrar aos 26 num mini-bus e levaram-nos para um pequeno cemitério, onde nos escondemos. Até que vieram carros, todos pequenos, e distribuíram-nos por eles, em grupos. A mim calhou-me ter de ir na mala de um desses carros. Porque éramos sete. Como era uma das mais fortes, fui eu.

Esse caminho também tinha de ser feito às escondidas. A polícia não podia ver tantas pessoas sentadas num carro, umas em cima das outras. Por isso fui na mala, a vomitar o tempo todo. E sempre a rezar para que não me acontecesse nada. Foi muito difícil, estava desidratada de tanto vomitar. Tínhamos comido qualquer coisa antes de partir, não sou de comer muito, mas era comida estranha para mim, não estava acostumada aos sabores. Depois já não tive nada para comer ou beber. Nem água.

Deu-nos um número de conta para que os familiares fizessem a transferência do resto do montante da travessia, do total dos nove mil dólares. Não percebemos porque tínhamos que pagar tudo logo, quando só íamos praticamente a metade da viagem. O combinado era que a travessia se pagava por tranches. E a última já quando se chegasse aos Estados Unidos, no destino. Até que pagássemos todos, todos, até ao último peso, não podíamos sair dali.

Foram 12 horas assim. Não parámos nunca. Uma loucura. Às vezes nem se preocupavam com os outros carros que vinham em sentido contrário. Foi sempre, sempre a acelerar. Os cinco carros estavam sempre em comunicação por telefone. Às tantas a polícia parou um dos carros, onde ia um rapaz do meu grupo, e tiveram que pagar 150 dólares. Ameaçaram-nos, disseram que os iam deportar se não pagassem, começaram por pedir pouco dinheiro, 20 dólares, depois aumentaram, disseram: ‘Agora são 50, que vocês têm dinheiro’. E cada um pagou. Por isso fomos sempre com medo no caminho, porque se a polícia nos parasse também nos faria pagar.

Já íamos há três dias em viagem. Levaram-nos até a um lugar onde o verdadeiro ‘coiote’ estava à nossa espera. Quando se agruparam todos os carros, foi outra loucura. Apareceu novamente a polícia, porque havia um condutor muito jovem, que não tinha experiência, era a sua primeira vez, por isso tinha sido parado pela polícia. Porque quando a polícia mandava parar era preciso dizer uma palavra-chave. E ele não a sabia bem. A polícia estava comprada, e se não dissessem bem essa palavra-chave, não deixavam passar.

Finalmente o ‘coiote’ recolheu-nos e fomos no seu carro até a um hotel. Nunca nos disseram onde estávamos. Nunca soubemos o local exato. Deram-nos algo de comer. Eu estava mal. Mas tomámos banho e descansámos.

De manhã o ‘coiote’ voltou ao quarto e explicou-nos o que se seguia. Deu-nos um número de conta para que os familiares fizessem a transferência do resto do montante da travessia, do total dos nove mil dólares. Ficámos muito preocupados. Não percebemos porque tínhamos que pagar tudo logo, quando só íamos praticamente a metade da viagem. O combinado era que a travessia se pagava por tranches. A última já quando se chegasse aos Estados Unidos, no destino. Foi um grande problema. Porque até que pagássemos todos, todos, até ao último peso, não podíamos sair dali. Éramos 26 pessoas e eram ‘coiotes’ diferentes.

A minha amiga, que está legalmente nos Estados Unidos há já muito tempo, conseguiu pagar o resto do meu dinheiro que faltava. Quase todos os que vinham de Cuba tinham um familiar, um amigo, alguém que tinha vendido uma casa em Cuba e enviado o dinheiro antes para os Estados Unidos a algum conhecido. Felizmente conseguiram todos alguém que fizesse o favor de pagar. É sempre assim o processo. Não podemos viajar com essa quantidade de dinheiro. Há o risco de nos roubarem ou algo até mais perigoso.

Estivemos quatro dias nesse hotel. Quatro pessoas por quarto. Todos preocupados porque não voltámos a ver o nosso ‘coiote’. Ninguém nos informava ou dizia o que se passava. Não sabíamos de nada. Depois levaram-nos para uma casa de segurança. Davam-nos de comer, havia uma pequena loja onde podíamos comprar refrescos, água, medicamentos, qualquer coisa que precisássemos. Estivemos lá mais três dias. De manhã chegou um outro grupo. Ao todo, já éramos 34 cubanos e dois nicaraguenses.

Foram buscar-nos muito cedo, às cinco da manhã, para cruzarmos a fronteira da Guatemala com o México. Fomos até um rio e tivemos que o atravessar numas ‘balsas’, feitas de borracha de pneus. Dividiram o grupo em duas canoas, era um rio grande, tínhamos de passar de uma margem para a outra. Foi rápido, não demorou nem dez minutos. Não me pareceu perigoso. Só se nos mexessemos, porque havia o risco de cairmos. Mas sentaram-nos bem agarrados e perto uns dos outros, quase não havia espaço. E como foi de noite não me apercebi da grandeza do perigo.

Os grandes cartéis mexicanos controlam há muito os pontos de entrada e saída do país. Mas já não é só a droga que os move. Diversificaram as suas atividades. E viram nas novas rotas dos imigrantes um negócio. Multimilionário. Durante anos, os ‘coiotes’ independentes apenas tiravam uma parte do dinheiro que recebiam para pagar a esses cartéis a autorização para passar os imigrantes pelos territórios que eles controlavam e levá-los depois até à fronteira. Mas quando em 2019 o número de imigrantes começou a crescer sem parar e a nova rota se abriu pela América Central, o contrabando de imigrantes tornou-se uma fonte de dinheiro irresistível, tal como o do narcotráfico. Quem o disse no Congresso norte-americano foi Patrick Lechleinter, diretor adjunto do Serviço de Imigração e Controlo Aduaneiro dos EUA, citado pelo New York Times. “É um calvário para as pessoas, é muito arriscado. Há redes que movem muito dinheiro com isto”, afirmou também o secretário dos Negócios Estrangeiros mexicano, Marcelo Ebrard, ao Expansion. Atuam com equipas especializadas e toda a logística necessária, do transporte à vigilância, das casas de segurança à contabilidade. Uma indústria cujos lucros subiram de 500 milhões de dólares em 2018 para 13 mil milhões em 2022, escreveu o Washington Post. Yaima viveu tudo isso: viu como militares e polícias eram comprados. Como a rede envolvia menores e adolescentes recrutados em bairros pobres. Como os condutores de carros, autocarros e camiões eram contratados em bares e restaurantes.

Quando chegámos ao outro lado, já estávamos no México. Esperava-nos um senhor. Subimos a pé por um monte. Bem organizados, cada um atrás do outro, todos em silêncio, até chegarmos a uma casa onde estavam carros para nos levar para outra casa. Atravessámos uma ponte de madeira suspensa, daquelas que balançam para todos os lados. Depois foram uns táxis buscar-nos, para irmos para um hotel, durante meia hora, só para comer.

Chegaram mais uns carros privados onde nos levaram para uma outra casa. Ficámos os 36 no pátio, quase todo o dia à espera. Vieram então uns pequenos autocarros, dividiram-nos em grupos e viajámos toda a noite e todo o dia, mas aos bocados: fazíamos um troço, éramos recolhidos por um autocarro, parávamos; íamos para outro, depois parávamos e mudávamos outra vez. Fomos sempre trocando de autocarro constantemente. Para iludir a polícia. Como enjoo, foi mais uma noite a vomitar, completamente desidratada.

Acabámos novamente no pátio de uma casa de segurança e deram-nos de comer. Comida mexicana. Difícil para mim, porque não estava acostumada ao sabor. E daí ainda fomos para uma nova casa de segurança, onde tivemos de dormir no chão. Era um lugar que só tinha telhado, nada mais. Deram-nos uns cobertores, mas estava um frio terrível e já não éramos só os 36. Havia muito mais pessoas à espera.

Nunca nos disseram onde estávamos, nem nos deixaram ligar o telemóvel. Tinha o telefone comigo, mas não o podia ligar. Nós viajávamos com os nossos telemóveis, mas nem em todos os lugares os podíamos ter ligados. Só em algumas casas de segurança e em certos hotéis. Em viagem nunca. Fui tentando comunicar com a minha família e com alguns dos meus amigos toda a viagem. Mandava-lhes a localização sempre que podia. Para que soubessem onde ia.

De madrugada seguimos dali nuns carros, todos muito apertados, em cima uns dos outros, foi sufocante. Demorou cerca de meia hora, tivemos que subir um pontão e cruzá-lo, estava a chover, aconteceu tudo debaixo de muita chuva. O lugar era horrível. Dormimos no chão, não tínhamos mais nada.

Ficámos lá um dia, até que dessem sinal para continuarmos. Chegou um camião, tapado por uma lona, tivemos de ir todos apertados, éramos umas 100 pessoas. No grupo estavam três crianças, uma deles uma bebé de oito meses. Havia muitos quase a sufocar, a desmaiar. Rezei muito. A lona tinha umas pequenas fendas, só isso, para que o ar entrasse. Para resistir, tive de pôr uma mão de fora, para pelo menos apanhar ar fresco na mão e aguentar. Temos que sobreviver. Esta viagem, quando se faz, é uma luta pela sobrevivência. Nem todos te ajudam. Se não vais com alguém conhecido, é ainda mais difícil. Os homens que nos foram buscar iam na frente do camião e não se importavam com o que se passava lá atrás. Quem desmaiava, desmaiava.

Começou então a parte mais horrível da viagem. Parecia um campo de concentração. Havia milhares de pessoas. Quando chegámos, na primeira noite, puseram o nosso grupo numa cabana, daquelas feitas de madeira. O lugar ficava rodeado de montanhas. Nos três dias que lá estive, nunca vi o sol. Estava sempre húmido, por causa da neblina. Soube que era San Pedro. Mas não era um lugar santo.

Os guardas estavam quase todos bêbados. Não dormi nada de noite, passei a madrugada a ouvir uma discussão entre eles. Aquele que parecia ser o chefe ameaçava os trabalhadores, dizendo que os ia matar. Estava bêbado. Continuavam a chegar mais pessoas e como um dos trabalhadores não se levantou para os ir buscar ele pôs-lhe o cano da arma encostado à cabeça. Ouvi-o dizer-lhe: ‘Sabes que comigo não se brinca, sabes que te mato, desaparece daqui’.

Fiquei quieta até que senti que vinha até onde nós estávamos e uma senhora saiu. Questionou-o, perguntou-lhe porque é que não os tiravam dali, quando é que iam embora. Ele respondeu de forma grosseira: ‘Se quiser ir embora, vá, pode ir agora mesmo!’. Tive medo, estava armado.

Fizeram-nos entrar, uns ao lado dos outros, filas de quatro pessoas, do princípio do atrelado até ao fim. Todos de pé. No meu coubemos 547. As pessoas que desmaiavam, içavam-na para cima do contentor, punham-lhes álcool no nariz para despertar, e depois voltavam ao lugar. Tínhamos de passar por controlos da polícia. Num, a bebé de oito meses começou a chorar quando fomos parados e correram a tapar a boca à menina, quase a asfixiavam. Quando os pais protestaram, apontaram-lhes uma arma à cabeça e pensei que os iam matar. Houve um momento incrível em que todos, mas todos, nos pusemos a rezar.

Só nos davam de comer, e muito pouco, às dez da manhã e às três da tarde. Feijão e pão, nada mais. Com isso, tínhamos de sobreviver. Dormíamos no chão, só com um  cobertor, que nos entregavam apenas à noite e tiravam logo de manhã, apesar do frio que fazia. Retiraram-nos os telemóveis. Fumavam e diziam-nos: ‘Apanhem as beatas’. Punham-nos a varrer todo aquele lugar. E quando pensávamos que íamos partir, gozavam connosco, diziam que não, que não íamos nada. Sempre a gozar.

As mulheres e as crianças estavam numa sala grande. Nós, as mulheres, tivemos depois de ir dormir para outro lugar, de barriga para cima, todas mesmo juntas, porque não havia espaço. Nem conseguíamos olhar umas para as outras. Seríamos umas 300 e tal. Já não podíamos sair do quarto quando nos deitávamos, porque não conseguíamos passar e ir à casa de banho.

Estivemos lá quatro dias. Mas ainda fiquei mais horrorizada quando me disseram que ia seguir num atrelado, um contentor daqueles do gado. Fizeram-nos entrar, uns ao lado dos outros, filas de quatro pessoas, do princípio do atrelado até ao fim. Todos de pé. No meu coubemos 547. Só as mães com as crianças iam na parte da frente e sentadas. Mas o lugar onde iam eram um horror, porque não tinha nenhuma ventilação. As crianças choraram sempre, por causa do calor.

Os guardas ficaram na parte de cima e atiravam-nos água pelas grades, como se fôssemos animais. Também levavam soro e álcool para as pessoas que desmaiavam. Só podíamos usar uma blusa, ou uma roupa bem fina, por causa do calor. Molhavam-nos, para que não sufocássemos. As pessoas que desmaiavam, içavam-na para cima do contentor, punham-lhes álcool no nariz para despertar, e depois voltavam ao lugar. Foi uma viagem de 16 horas.

Horrível, porque também tínhamos de passar por controlos da polícia. Num, a bebé de oito meses começou a chorar quando fomos parados e correram a tapar a boca à menina, quase a asfixiavam. Quando os pais protestaram, apontaram-lhes uma arma à cabeça e pensei que os iam matar. Houve um momento incrível em que todos, mas todos, nos pusemos a rezar. Todos também a chorar. As mães a abraçar os filhos, a pedir que lhes dessem força. Também pedi para resistir, a pensar na minha filha Verónica.

No destino final puseram essas mais de 500 pessoas todas na mesma casa. Todos apertados. Até que cada grupo foi sendo recolhido pelo seu ‘coiote’ para mais uma viagem, em carros privados. Nunca soubemos os nomes deles. Nunca os disseram. Usam apelidos estranhos. A ‘Rã’, o ‘Sapo’. Nomes verdadeiros só os dos ‘coiotes’. Já havia muitos cubanos que tinham feito esta travessia com este ‘coiote’. É tido como um dos melhores. O que aconteceu foi que diziam que a fronteira ia fechar, que não iam permitir mais entradas de imigrantes. E tudo ficou mais difícil.

Dali fomos até ao DF [Distrito Federal de México] e parámos num hotel ótimo. Deram-nos boa comida, pudemos dormir numa cama. Mas dei o meu lugar à senhora de 60 anos, não gosto de dormir com muitas pessoas, e éramos os sete na mesma cama. Preferi dormir no chão, tinha uma carpete cómoda. Ficámos lá dois dias.

Já estávamos no fim de novembro. Levaram-nos para apanhar um autocarro, subimos, éramos 115. Estivemos dentro desse autocarro três horas, com tudo completamente fechado, porque não podiam saber que lá estávamos. Entrámos às três da tarde e só partimos às seis. Com o ar condicionado desligado, todos a suar com o calor. Afinal, o ar condicionado nem funcionava, estava estragado. Éramos quatro mulheres em cada assento e os homens de pé. Não nos podíamos mexer. Depois o autocarro avariou e tivemos de parar e ficar fechados dez horas. Muitas pessoas desmaiaram.

Tinham mandado desligar os telefones, mas liguei o meu. Telefonei ao ‘coiote’ a pedir para nos tirar dali porque estávamos todos a asfixiar, trancados hermeticamente, com tantas pessoas não tínhamos oxigénio. Havia cubanos, nicaraguenses, guatemaltecos e do Equador também. Falei também com a minha família, que me foi dando conselhos. Tive que tirar a roupa. Despi a blusa, fiquei só de sutiã, descalcei os sapatos. Molhei uma toalha e fui molhando a cara, para não desidratar por completo e não desmaiar. Não sei como resisti dez horas horríveis.

Chegou a pessoa que estava responsável por nós, pagou, e o ‘coiote’ mandou vir um outro autocarro. Mas avisaram que havia um bloqueio da polícia e tivemos de voltar ao hotel da madrugada. Disseram que já só saíamos de manhã cedo e que seríamos muito menos pessoas. Afinal, não fomos 115, fomos 98. Quase o mesmo. Mas o autocarro seguiu e foram mais 12 horas. Chegámos a um lugar onde nos esperavam mais carros privados. Levaram-nos para outra casa de segurança onde ficámos por três dias. Fomos recebidos por mais uma dessas pessoas que trabalham para o ‘coiote’, mas depois não o vimos até 30 de novembro, quando partimos, às seis da tarde. Só vinham umas pessoas trazer-nos comida e mais nada.

Quando voltaram explicaram-nos que essa viagem ia ser feita outra vez num contentor, agora um completamente fechado. E que quem não quisesse, teria de esperar. Mas que seguíamos já para a fronteira, onde nos iria buscar uma senhora chamada Lupe.  Primeiro iríamos descansar e comer e depois ela entregava-nos para passarmos para os EUA.

Nesse contentor éramos 110 pessoas. Dividiram-nos, sentaram-nos no piso, uns à frente dos outros, de dois em dois. Havia bastantes crianças. Seriam 16 horas. Aí quis sair. Quando vi que era tudo completamente fechado, achei muito perigoso. Só seguia connosco o condutor. Deu o seu número de telefone a um dos homens do grupo, para que o avisasse se houvesse qualquer coisa e fosse preciso parar. Mas disse logo que não podia parar em qualquer lugar.

Parámos só três vezes: uma para perguntarem se precisávamos de água; outra para tirarem as crianças, porque um menino ia a chorar muito e não se calava — levaram-no para a cabine; e a terceira porque desmaiou uma pessoa e tiveram que chamar um carro pequeno. Aí muitos queriam sair. Já não suportavam mais. Estava muito frio, estávamos molhados porque no atrelado suávamos e ficava muita humidade. Quando parecia que íamos todos asfixiar, disseram-nos que faltava uma hora para chegar perto da fronteira.

Ao descermos havia homens armados, com passa-montanhas, os rostos cobertos. Puseram-nos todos dentro de um quarto, recolheram os telemóveis e separaram-nos em grupos de 30.

O rapaz que vinha a falar com o condutor, a quem ele tinha dado o contacto, pensaram que vinha a informar a polícia da nossa localização, que não era dos deles. Tinham medo que pertencesse a um ‘coiote’ de outros, que pudesse acontecer uma guerra de cartéis. Ameaçavam-nos para dizer se o conhecíamos. Que se não disséssemos nada, começavam a matar as crianças. Só que ele era apenas mais um do grupo. Ele tentou explicar-se e espancaram-no à nossa frente. Primeiro na cara, depois com pontapés quando já estava caído no chão. Por último, apontaram-lhe uma pistola à cabeça. Aí ele disse que tinha dinheiro para pagar, separaram-no de nós e levaram-no para outro lugar. Só no final soube dele.

Este novo negócio dos cartéis, alguns dos mais violentos cartéis de droga mexicanos, envolve dinheiro. Muito. E para obter dinheiro é preciso que os imigrantes paguem. É preciso extorqui-los. Muitas vezes de forma cruel. Yaima foi uma das vítimas. Esteve sequestrada 16 dias. O sequestro é uma das estratégias mais usadas pelo crime organizado. Mantêm grupos de imigrantes reféns até que as suas famílias paguem um resgate. O pagamento é muitas vezes calculado de acordo com a perceção das possibilidades financeiras que acham que cada um tem. As ameaças podem ser só psicológicas. Mas muitas vezes são também físicas. E até sexuais. Há sempre homens armados. O rapto pode demorar apenas dias. Ou muitos meses. No ano passado, quase todos os dias houve operações das autoridades mexicanas junto à fronteira para resgatar imigrantes. Alguns foram encontrados mortos ainda fechados em contentores.

Um ‘coiote’ estava muito chateado. Disse-nos que trazia dez pessoas com ele, pediu a localização do atrelado, não lha deram, e por isso teve de nos levar a todos. Afinal estávamos sequestrados. Mas nenhum de nós o sabia. Ficámos numa casa, até bem cuidados, mas não podíamos sair. Foram 20 minutos primeiro, até sermos separados outra vez, em grupos de dez. No meu éramos seis cubanos e quatro equatorianos.

Mandaram-nos num carro, explicaram que íamos para mais uma casa de segurança. No caminho fizeram-nos sair numa pequena ribanceira, tínhamos de atravessar a pé porque havia um controlo mais à frente, disseram que se fossemos parados podíamos ser deportados para Cuba. Acreditámos, não percebíamos nada.

Foi ao nosso encontro um miúdo mexicano de 16 anos. E seguimos num outro carro para a tal suposta casa de segurança. O condutor foi muito amável, disse que se chamava Pancho, perguntou se éramos todos cubanos, quais eram os pratos principais dos nossos países. Contou coisas sobre ele, disse que estávamos a seis minutos da fronteira, quase a cruzá-la.

Quando chegámos à casa, era apenas um quarto pequeno, com um pequena cozinha e uma pequena casa de banho. Os dois equatorianos foram falar ao telemóvel com alguém. Quando voltaram um deles falou com um rapaz, que também não devia ter mais de 17 anos.

Foi ele que nos disse que o nosso ‘coiote’ nos tinha abandonado. Podíamos falar com os nossos familiares para os informar que cada um precisava pagar 12 mil dólares [11 mil euros] se quisesse sair dali. Os 9 mil que já tínhamos pago não contavam. Os 12 mil eram para ele, para que nos deixasse seguir. Ficámos todos desesperados e a chorar, não sabíamos como conseguir esse dinheiro.

Chegavam a qualquer hora da madrugada, abriam a porta bruscamente, sempre armados, apontavam-nos armas à cabeça, diziam que nos iam matar. Passavam vídeos para ver como torturavam outras pessoas. Vídeos horríveis, horríveis. De como matavam lentamente imigrantes. Estive lá 16 dias. Disparavam tiros contra a parede, para nos assustarem.

As famílias não o tinham. A mim era a minha amiga que me estava a fazer um favor. Os meus pais em Cuba não arranjariam forma de pagar. Explicámos que não conseguíamos. Disseram que não se importavam, não havia outra forma. Que ficaríamos ali o tempo que fosse necessário. Dois meses, três meses. Até que as famílias reunissem o dinheiro, peso a peso, e pagassem por nós. Se não o fizessem iríamos para outro lugar, com outras pessoas. Que se encarregariam que pagássemos.

Foram vários dias de agonia. Eles próprios telefonaram a alguns familiares. Eu telefonei à minha amiga e pedi que não dissesse nada aos meus pais. Para eles, eu supostamente já estaria a cruzar a fronteira.

Pensámos que podíamos morrer. Eu não tinha esperança. Achei que tinha acabado ali. Não falei com ninguém, não quis que soubessem. Foram dias de muita angústia. Todos sempre a chorar. Nenhum de nós, nenhum, tinha o dinheiro.

Trouxeram a seguir mais dois nicaraguenses de um outro grupo, que tinha sido sequestrado antes. Já lá estavam há um mês. Foram eles que nos disseram para não desesperarmos, que não nos iam matar, só tínhamos que pagar, mesmo que demorasse muito tempo. Isso tranquilizou-nos um pouco.

Traziam-nos um saco de arroz para os 12 e uma cebola. Era o que tínhamos para comer por dia. Foi assim três ou quatro dias. Como as famílias continuavam a dizer que não podiam pagar, passaram a trazer-nos cada vez menos comida. Não nos davam água. Chegavam a qualquer hora da madrugada, abriam a porta bruscamente, sempre armados, apontavam-nos armas à cabeça, diziam que nos iam matar. Maltrataram mais os homens, as mulheres nem tanto. Mas passavam vídeos para ver como torturavam outras pessoas. Vídeos horríveis, horríveis. De como matavam lentamente imigrantes. Só havia uma porta. De vidro. E quando se foram embora da casa onde estávamos, pintaram os vidros de preto para que não víssemos nada para fora.

Estive lá 16 dias. Disparavam tiros contra a parede, para nos assustarem. Nós, os cubanos, nunca tínhamos visto nada daquilo. Os equatorianos disseram que para eles era mais habitual.

Dois venezuelanos saíram ao fim de cinco dias. Demos-lhes os números das nossas famílias para que ligassem e dissessem o que se passava. Mas nunca mais soubemos deles, nunca mais. Nunca telefonaram. Ao sexto dia, a família de um equatoriano começou a pagar. A família da senhora mais velha do nosso grupo, que fez comigo a viagem desde o início, também começou a pagar. A de um outro equatoriano também. Uns pagaram dez mil dólares. Começaram a baixar o valor porque viram que não tínhamos mesmo dinheiro. Foi quando garantiram que nos deixavam sair antes de 24 de dezembro, que no Natal não queriam lá ter ninguém.

A minha amiga pôs-se em contacto com algumas outras amizades que tínhamos em comum em Cuba. Ligou ao meu irmão, que tinha chegado aos Estados Unidos, num bote, por mar, com um amigo e a minha cunhada, muito recentemente, depois de vender a casa. Entre o meu irmão, esse amigo do meu irmão, e a minha amiga, foram reunindo dinheiro. Chegaram aos 8.500 dólares [7 700 euros].

Houve um momento em que já não aguentava a angústia e falei com a esposa do chefe dos que nos tinham ali como uma espécie de reféns. Como só havia duas mulheres, o resto deles eram homens, pedi-lhe para telefonar à minha filha ou para lhe mandar uma mensagem do seu telefone. Que lhe dissesse que era minha amiga. Tínhamos feito um acordo: antes de ir dormir eu dizia-lhe sempre ‘boa noite’ e de manhã ‘bom dia’. Então pedi para ela dizer que era uma amiga da mamã e que a mamã mandava dizer que a amava muito, que gostava muito dela e para ela se portar bem.

Parece que essa mulher sentiu pena, ou se comoveu, nem sei, porque era muito dura. Pediu-me desculpa, disse-me para ser forte, para ter esperança, que haveria de sair dali. Infelizmente tinha ido parar àquele grupo, mas tinha de compreender que eles só estavam a fazer o seu trabalho. Ela não podia mudar nada, mas prometeu mandar a mensagem à minha filha. Na realidade, nunca lhe telefonou, nem lhe enviou mensagem nenhuma.

Mas, depois, nesse dia, consegui ligar aos meus pais. Contei-lhes o que estava a passar. Afinal o meu irmão já tinha dito à minha mãe. E ela já estava mais ou menos preparada. A minha filha é que não entendia nada. Mas deu-me muito mais força para sobreviver. E deixei de estar sempre deitada a chorar. Continuávamos a rezar o dia inteiro, pedindo a Deus que nos ajudasse e que as nossas famílias conseguissem arranjar o dinheiro.

A mulher do chefe passou a levar-me leite. Numa ocasião deu-me pão, noutra um doce. Era só para mim. Eu dividia. Um doce partíamos em dez bocados para todos. Mas também houve dias em que tivemos de ir buscar restos de comida ao lixo para poder comer e sobreviver. E beber água com um pouco de açúcar para matar a fome. Cheguei a ter apenas um pacote de três bolachas, que partíamos, e era só o que comíamos.

No dia 16 de dezembro soube que a minha família já tinha pago. E que podia então ir. Sai cerca do meio dia com um outro cubano, um dos do meu grupo inicial. Levaram-nos para um parque, onde fomos recolhidos por um outro rapaz, num carro. Disse-nos para ficarmos tranquilos, que não nos ia acontecer nada. Mas começámos a suspeitar, porque não sabia o que fazer connosco. Estávamos assustados, tínhamos medo de voltar a passar pelo mesmo. Não sabíamos nada dos dois equatorianos e da senhora mais velha que tinham partido antes. Não nos disseram o que lhes tinham acontecido.

Levaram-nos para outra casa e estivemos quase até à meia noite lá fechados num carro. Às seis tinha chegado um ‘mero mero’, como eles lhes chamam [o chefe, o que dá ordens, sem o qual é impossível dar qualquer passo]. Eram horríveis, todos tatuados, mesmo na cara. Quando os vi, tremia muito. Tive muito medo. Explicaram-nos que estávamos outra vez numa situação muito complicada. Tínhamos de voltar a pagar. Tudo. Do zero. Novamente. Desatámos a chorar. O outro rapaz cubano muito mais do que eu. Ficou mesmo mal.

Dissemos-lhe que tinham de nos matar. Porque as nossas famílias já tinham pago uma segunda vez. 9 000 ao ‘coiote’ e mais 8 500 para nos deixarem ir. E não tínhamos mesmo mais dinheiro. Os cubanos não têm investimentos, não têm poupanças, nada dessas coisas. Não sei o que se passou. Estávamos a chorar tanto que eles fizeram várias chamadas e responderam-nos que estávamos a falar verdade, que iam negociar com as pessoas que nos tinham entregue a eles. Que nos iam deixar ir e que os iam matar, que eram os ‘mero mero’, que com eles não se brincava.

Estivemos nesse desespero, dentro do carro, quase até às duas da manhã. Eles entravam e saíam do carro, eu só pensava no que nos podia acontecer. Mas o dono da casa foi muito amável, acabou por nos chamar lá para dentro. Deu-nos de comer, ligou até a televisão, deixou-nos tomar banho e perguntou-nos o que se passava. Explicámos-lhe tudo. Ele disse ‘não, não e não’ ao chefe desse cartel a quem emprestava a casa para negócios. Que não permitia aquelas coisas, os abusos que estavam a cometer connosco. Que tinham que resolver a situação ou acabava-lhes com o negócio. Contou tudo à mulher, tinham uma filha pequena. Foi graças a essas pessoas que hoje estamos vivos.

Chegaram então mais três rapazes, dois aí com uns 16 anos e um outro com 20 e picos. Só lhes dissemos que nos deixassem ir, que nos entregaríamos à polícia. Já não nos importávamos que nos deportassem para Cuba. Eles disseram que não, que tinham ordens para nos fazer entrar nos Estados Unidos.

Não sabíamos onde estávamos. Nunca mais me tinham devolvido o telemóvel. Nem a mim, nem ao outro rapaz. Depois soubemos. Ciudad Juarez. Levaram-nos por uma colina, onde passava a fronteira. Para mim foi terrível, porque quase sufocava, não tinha forças para os seguir, era muito alto, tínhamos que subir, o frio era horrível, nem sentia as mãos e os pés.

Foram duas horas a andar por essa colina. Era preciso cruzar na zona controlada pela imigração e explicaram que teria de correr muito depressa. Mas eu não conseguia ir tão rápido como eles, eram rapazes novos com força, e nós já vínhamos há muito tempo em viagem, a comer mal. Um deles ainda tentou carregar-me e correr comigo ao colo, mas era impossível. Eles eram magros e eu sou um pouco forte. A intenção era chegar a um casario onde tínhamos de nos esconder e um carro nos iria buscar. Foi quando desmaiei. E a ‘migra’ [a polícia de imigração na fronteira] apanhou-nos.

Dois dos rapazes também se entregaram. Já nos tinham avisado que se fossemos apanhados não podíamos dizer que eles eram os guias que nos estavam a levar. E foi o que fizemos. Não contámos nada sobre eles.

De acordo com a Lei de Ajuste Cubano, assinada em 1966, há uma série de facilidades para os imigrantes cubanos que entrem nos Estados Unidos, legal ou ilegalmente. Os que não recebem liberdade condicional após a travessia ilegal, geralmente são libertados com uma notificação para comparecer em tribunal mais tarde e podem pedir asilo ou alguma forma de visto que lhes permita a residência permanente. Donald Trump interrompeu este acordo em 2018, mas Joe Biden retomou-o em abril de 2022. Suavizou muitas das restrições da era Trump, permitindo que grande parte dos imigrantes fossem libertados em poucos dias, em vez de ficarem fechados meses em centros e depois devolvidos ao México. Yaima ainda beneficiou deste modelo. Esteve detida menos de 24 horas e saiu com liberdade condicional por dois meses, tendo agora de a renovar ou conseguir um visto de trabalho. Perante a grandeza do fluxo migratório, o presidente dos EUA reverteu já no início deste ano parte das suas próprias decisões e determinou que imigrantes de Cuba, Nicarágua, Haiti e Venezuela fossem proibidos de solicitar asilo caso cruzassem a fronteira mexicana sem a autorização dos postos de entrada. 

Levaram-nos para um centro. Fui para junto das mulheres. Eles ficaram com os homens. Estivemos lá o resto da madrugada, até que amanheceu e fomos para a USI (U.S.Immigration and Customs Enforcement) do Texas. Mas na manhã seguinte já me estavam a libertar.

Tinham-me dito que estavam a fazer entrevistas duras aos cubanos e a dificultar as coisas, mas mim não me perguntaram nada. Encontrei cubanos que estavam ali há 10 dias, outros há três ou quatro. Eu entrei às nove e um quarto da manhã de um dia e às cinco da manhã do dia seguinte já estava cá fora. Menos de 24 horas. Foi muito rápido.

Mas não tinha dinheiro para seguir. Para nada. O pouco que trazíamos, em notas, eles tinham também roubado. Tiraram-nos tudo, tudo. Entrei nos Estados Unidos apenas com a roupa que levava no corpo. Mas fomos para um lugar onde podíamos telefonar aos familiares, para que nos pagassem uma passagem até ao destino para onde queríamos ir. Liguei à minha amiga. Estava a rezar, porque não tinha sequer dinheiro ou forma de chegar ao aeroporto [de El Paso].

A minha amiga já não queria que ficasse na sua casa. Tinha de ficar em casa, com tudo fechado, porque ninguém podia saber que estava ali. Os proprietários não admitiam mais nenhuma pessoa no apartamento, estava no contrato. Quando eles saiam para trabalhar, ficava sozinha, sem poder sair, não podia ver televisão, tinha de falar muito baixo. Parecia que continuava sequestrada. 

Encontrei uma das pessoas que estava no grupo dos cubanos que tinha ido para outro lugar. Contou-me que pagaram 10 mil dólares para poder sair. E que à família da senhora que tinha vindo connosco cobraram 30 mil. O rapaz a quem apontaram a arma à cabeça porque pensavam que era guia esteve sequestrado com esse senhor com quem me encontrei. Disse-me que a ele lhe pediram 250 mil. Mas não sabia mais. Foi ele que me deu cinco dólares para apanhar um táxi.

Tive de estar no aeroporto dois dias, mal comi, porque não tinha dinheiro para nada. Só depois a minha amiga conseguiu comprar-me um bilhete para um voo [40 a 50 euros]. Cheguei a Miami a 21 de dezembro.

Mas aconteceu-me mais uma história. A minha amiga já não queria que ficasse na sua casa. Porque estava muita gente. Não podia lá ter mais ninguém. Liguei ao meu irmão, que vive com o amigo e a mulher, e também não tinham lugar para mim. Foram eles que me foram buscar ao aeroporto, mas o amigo do meu irmão explicou-me que não poderia mesmo ficar com eles.

Acabei ainda assim por ir ter com a minha amiga, mas tinha de ficar em casa, com tudo fechado, porque ninguém podia saber que estava ali. Os proprietários não admitiam mais nenhuma pessoa no apartamento, estava no contrato. Quando eles saíam para trabalhar, ficava sozinha, sem poder sair, não podia ver televisão, tinha de falar muito baixo. Parecia que continuava sequestrada. Foram dois dias assim. Entrei entretanto em contacto com um primo, que já estava em Miami há dois anos, e pedi-lhe que me tirasse dali.

Acabei por ir viver com ele. É onde estou até hoje. Mas ainda não encontrei trabalho. Estou farta de procurar, mas não consigo. Estou desesperada. Aqui, para viver, é preciso dinheiro. Para pagar a renda, para mandar para a família, para ajudar com as despesas. É desesperante. Eu entrei com ‘parole’ [liberdade condicional], deram-me esse perdão por dois meses, não entrei ilegal, mas preciso de um advogado para tratar de tudo, ter um visto de trabalho, todas essas coisas. Pedi o visto de trabalho logo a 27 de dezembro, mas ainda não tive resposta, e só posso ficar à espera.

Só trabalhei um dia. Não me voltaram a chamar. Nesse dia pagaram pouco, mas mesmo assim foi a 11 dólares à hora. Trabalhei menos de 12 horas, recebi 122 dólares. Comparado com Cuba é muito dinheiro. Lá conseguia tirar por mês 2.500 pesos, 100 dólares em Cuba [ganhou mais num dia, do que em Cuba num mês]. A diferença é tão grande que é impossível imaginar.

O meu objetivo é trabalhar muito, em tudo o que possa, qualquer trabalho ajuda. Para poder trazer a minha filha o mais rapidamente possível e a minha mãe, pelo menos. Quero dar à minha filha tudo o que não pude ter. Quero que estude muito, é o que mais me preocupa, que seja uma mulher feliz.

A fuga é a única forma de ter esperança, porque em Cuba agora não há esperança. Foi bastante difícil, ainda não recuperei. Emagreci muito, fiquei doente. E passei a ter muito medo de ir à rua, não quero andar sozinha, ainda não o consegui fazer.

Como o meu primo trabalha, fico o tempo todo em casa. Se alguém toca à porta, não abro. Entro no mercado e estou sempre a olhar para toda a gente, para todo o lado, sempre sobressaltada. Dependo de outra pessoa para sair, para procurar trabalho, para comprar água. E isso é muito difícil.

Não voltei a falar com ninguém da travessia. Perdemos a comunicação todos uns com os outros. Nem soube o que passou com os três cubanos que estiveram sequestrados comigo. Não faço ideia se conseguiram sair. Éramos 110 pessoas no contentor. E tenho a certeza que nem todos conseguiram partir rapidamente. Talvez muitos ainda estejam sequestrados. Nem imagino o que possa ter acontecido com eles.

Achei sempre que ia morrer. Nunca acreditei que ia sair dali. Não tinha nenhuma esperança que alguém conseguisse pagar aquele dinheiro por mim. Era impossível. Sei que agora tenho uma grande dívida, mas que a posso pagar se conseguir trabalhar. Não em meses, mas, com trabalho, talvez num ano, pouco a pouco.

Não voltaria a fazê-lo. Por nada deste mundo. Vim muito arrependida, até por deixar a minha filha para trás. Nunca me tinha separado dela. Ela é a coisa mais importante que tenho. Ainda a quis trazer comigo. Mas quando vi todas as coisas que se passaram… Sofria muito com as crianças que vinham com as mães, ao ver como choravam, pelas coisas que tinham de passar. Quando estive sequestrada só imaginava se ela estivesse comigo, o que podia ter acontecido. E não me arrependo agora dela ter ficado. Se algum dia a puder trazer de Cuba, e à minha mãe, não será desta forma. Tem que ser tudo legal. Não as farei passar por isto. Nem assim, por travessia, e muito menos por mar. Mesmo que tenha de estar muito tempo sem vê-la.

Se algum dia, por acaso, tiver a possibilidade de ir de férias ao México, não o farei. Para mim o México é como se se tivesse apagado. Porque foi horroroso. Nas Honduras, na Nicarágua e na Guatemala não passei muito mal, foi difícil, mas não o horror do México. A partir do momento em que entrei no México, tudo se tornou um caos. Para mim o México é o inferno, já não existe.

Vai ser uma vida completamente diferente nos Estados Unidos. Até gostava muito de poder ajudar, como psicóloga, pessoas que passaram pelo que passei. Nunca exerci a profissão, mas sempre que estou com alguém, aplico o que aprendi, tento ajudar. Quase que faço uma consulta. Ainda cheguei a ser assistente social, passava quase todo o dia a falar com pessoas. Acho que tenho capacidades de ajudar quem passou pelo que vivi.

Só não tenho essa capacidade em relação a mim mesmo. Fecho-me, tento ocupar o tempo a fazer coisas cá em casa, não falo com ninguém, não socializo, e estou a tentar ser forte para recuperar de tudo o que passei. Mas foi tão difícil. Não sei onde está a lutadora que eu era em Cuba.

Nos EUA, os cubanos contam com uma comunidade de mais de 1,3 milhões de pessoas que ajudam os familiares que querem deixar a ilha. São eles quem lhes manda dinheiro e muitos bens. E também quem paga as travessias: quer as de bote, alguns artesanais, meros pneus colados, outros já profissionais, que cruzam o estreito; quer as novas, através da América Central. Nenhuma delas, que vai dos tais 9/10 mil dólares aos 15 mil [8 300 a 13 600 euros], está ao alcance de qualquer ordenado pago na ilha. A maioria segue para Miami, onde há na cidade uma Little Havana, tantos são os cubanos que lá vivem. É relativamente fácil trabalhar num restaurante, numa loja ou num outro negócio. E é também relativamente fácil ganhar num dia (11 dólares à hora) o que ganhariam num mês. Sendo que há ajudas do Estado para a alimentação e a saúde. Yaima vive com o primo, tem lá um dos três irmãos e espera em breve pagar a dívida à amiga que lhe emprestou o dinheiro para a viagem e também ajudou a pagar o resgate. A meio de janeiro recebeu uma boa notícia.

As pessoas que me sequestraram foram detidas quarta-feira, dia 18 [de janeiro]. Ainda faltava libertar dois cubanos, uma rapariga e um rapaz. A família do rapaz pagou 7 mil dólares para o deixaram ir, mas depois pediram mais 3 mil e a família negociou com eles.

Disseram que só pagariam se lho entregassem diretamente. A família informou a polícia, que montou uma operação e deteve-os. Conseguiram assim resgatar a rapariga.

Ainda estão no México, mas pelo menos estão vivos. Foram eles que entraram em contacto comigo e me deram a boa notícia. Não sabia nada deles desde que parti, a 16 de dezembro.

Sinto que me tiraram um grande peso de cima.

(até esta sexta-feira, dia 2, Yaima ainda não tinha trabalho: mas preparava-se para uma entrevista de emprego na qual depositava grande esperança. As fotos da reportagem são as que enviou a amigos durante a viagem e que eles lhe enviaram de volta: porque perdeu todas as que tirou quando lhe roubaram o telemóvel durante o sequestro e está a tentar recuperar algumas. A foto na qual sempre pensou durante as mais de duas semanas em Ciudad Juarez é a primeira deste artigo: o último abraço à filha Verónica antes de partir de Cuba a 10 de novembro)

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