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AFP/Getty Images

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"Eu vim para ficar". Na História, Telma, na História

Telma Monteiro venceu a medalha de bronze nos JO. Voou, caiu e soube desapegar-se do ouro. Em pequena queria ser como o Michael Jordan. Agora é um Jordan do judo. A reportagem da Arena Carioca 2.

Demorou quatro anos a chegar aos Jogos Olímpicos. Tinha 18, surpreendeu o mundo. Subiu e desceu na corda bamba da vida, qual montanha russa imprevisível. Aprendeu umas coisas, ganhou moral, queria mais. Caiu. Era obsessão. Afinal, não dava, não tem o que é preciso. Bom, agora é que é. Não foi. Se calhar, Telma treme. Mais uma moedinha, mais uma voltinha. Ui, uma lesão. Operação. É para esquecer. Tem 30 anos, vai estar mais tempo a recuperar do que a treinar. Não dá. Deu. Já ganhou. Oops, a mongol enganou-a: repescagem. Terá capacidade para mudar o chip? Deve ser complicado. Se calhar dá, acabou de eliminar a número 1 da Europa. Os olhos já se arregalavam. Será? Olha, está à rasca do ombro. Está cansada. Hmm. A outra é rija. A Telma já está a abrir os braços. Olha, levou uma solha. Vamos ver, vamos ver…

Telma é garota do bairro, fazia asneiras e pisava o risco. Ganhou carapaça. Morde o lábio e range os dentes, se for preciso, embora ouvisse então música pop e lamechas como Backstreet Boys. Tentou o atletismo, mas fartou-se de andar às voltas dos prédios cansados, promessas de esqueletos por abandonar. Não era para ela. Tentou o futebol, mas cedo pendurou as botas porque nunca, nunca, era chamada pelo treinador. Estava farta. Quando brincava com os amigos, seja em que desporto fosse, queriam todos vestir a pele do herói. A glória é irresistível, é gasolina no sangue, que ferve por mais e mais. Um dia meteu na cabeça que ia afundar no cesto de basquetebol ao pé de casa. E arranjou maneira, apesar de a seguir ter-se magoado a sério. Todos querem ser Michael Jordans, certo? É isto que Telma Monteiro lembra no seu livro “Na vida com garra”. Chegar um pouco mais longe, sentir a brisa do céu.

Numa noite de insónias, a irmã Ana sentiu o suspiro e a agitação e perguntou o que se passava. Ouviu a pequena Telma e convenceu-a a ir para o judo com ela. E ela foi. Tinha 14 anos.

“Eu vim para ficar!", gritou depois de vencer Automne Pavia por ippon

“Eu vim para ficar!” Este grito, após a vitória contra Automne Pavia, foi o ponto de viragem. Para ela, para os portugueses, para os jornalistas e até para os brasileiros na Arena Carioca 2, que demoraram a dar por ela. Telma berrou, com raiva, com o dedo rijo, capaz de furar o tatami. Acabava de eliminar a número 1 da Europa.

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O torneio (-57 quilos) de Telma começou com uma vitória contra Darcina Manuel, depois de a portuguesa ter beneficiado de uma folga na primeira ronda (isenta). Começou forte, com dois yukos no primeiro minuto

O torneio (-57 quilos) de Telma começou com uma vitória contra Darcina Manuel, depois de a portuguesa ter beneficiado de uma folga na primeira ronda (isenta). Começou forte, com dois yukos no primeiro minuto. Cerrou os punhos quando acabou. Estava sólida, convicta. O totó no cabelo, uma imagem de marca que preservou conscientemente, teve de ser arranjado mais do que uma vez. O judo da televisão parece mais amigo. Ao vivo ouve-se, sente-se o peso das chapadas que prometiam uma pega. O ritmo é outro, parece estar em fast forward. As marcas na cara vão surgindo. Não há milagres. É duro.

Os televisores na tribuna de imprensa permitem ver mais de perto a ação. Os olhos falam. Telma queria a redenção da menina de 18 anos, de Atenas 2004, que não soube gerir o fracasso. Não soube cair, não soube alterar o chip. Ou tudo ou nada. Ou ouro ou casa. Esse é, aliás, um dos capítulos do seu livro — “Saber cair”. É essa a primeira lição do judo. Defender e evitar quedas que esbanjam pontos para o outro lado ou, na pior das hipóteses, ippons, o KO do judo (projeção e queda de costas). A sedução da ideia é simples, porque é complexa: isto é literal e metafórico. Pode significar cair e levantar.

Mongolia's Sumiya Dorjsuren (white) competes with Portugal's Telma Monteiro during their women's -57kg judo contest quarterfinal match of the Rio 2016 Olympic Games in Rio de Janeiro on August 8, 2016. / AFP / Toshifumi KITAMURA (Photo credit should read TOSHIFUMI KITAMURA/AFP/Getty Images)

Telma Monteiro vs. Sumiya Dorjsuren (Photo credit should read TOSHIFUMI KITAMURA/AFP/Getty Images)

Seguiram-se os quartos-de-final. A rival era a número 1 do mundo, Sumiya Dorjsuren, que tem um olhar avassalador. É da Mongólia, tem 25 anos e em 2012, em Londres, não foi além do 17º lugar. Mas as preocupações dos mais entendidos no assunto, quando a viram colocar-se na possível caminhada de Telma, impunha respeito só por si só. O combate arrastou-se. Havia muito respeito, algumas investidas, mas ninguém dominava. Telma não vergava. Seguiu-se para o “ponto de ouro”. Qualquer ponto ou, em sentido contrário, qualquer penalização pode resolver o duelo. E foi isso que aconteceu: Telma foi penalizada por “falta de combatividade”. Aqueles segundos de impasse, sem se perceber muito bem o que aconteceu, foram angustiantes. Telma estava de pé. Não foi dominada. Perdeu daquela forma. Ingrato. Saberia cair, 12 anos depois da primeira desilusão?

Durante a hora de almoço as conversas multiplicavam-se. A desconfiança também, que lá mudava a cara a cada rabanada de vento, que tem abanado o Rio de Janeiro. Tem de mudar o chip, esquecer o ouro. Vai lutar na repescagem para chegar ao bronze. Portugal só tem uma medalha de bronze em judo, homem. É histórico. Ela já não tem 18 anos. Depois lá voltam aqueles pensamentos que minam qualquer mente onde o sol brilha a toda a hora: ela foi operada a meio ano dos JO. Bom, o café estava bom (tem sido um guerra nesta capítulo, uma espécie de ippon mental). Vamos a isto.

"Eu disse à minha equipa: se passar a francesa, levo a medalha para casa", diria no fim

Voltámos à Arena Carioca 2 com a cabeça arrumada. Às vezes sente-se a tensão dos atletas. Passa a fazer parte das entranhas de quem escreve. O ambiente no pavilhão ia aliviando a coisa, porque aquilo virava do avesso quando Rafaela Silva combatia ou puxavam pelo Brasil. “Pega ela, Rafa!”, ouviu-se tanta e tanta vez. A brasileira ganharia a medalha de ouro, precisamente contra a atleta mongol que eliminou Telma Monteiro.

A repescagem era contra a francesa Automne Pavia. Voltou a velocidade. Telma tenta muitas pegas e enfiar-se pelas pernas abaixo das rivais, para tentar a projeção. Muitas vezes vê o sinal vermelho, porque aquela gente tem muita força e técnica. Mas a portuguesa tentava. E tentava. Até que, quando o relógio namorava o primeiro dos quatro minutos, Telma faz um ippon à francesa. O tal “Eu vim para ficar!” foi arrepiante, acendeu as bancadas, ligou-lhe a alma. O compromisso, a garra do costume, tinham ganho agora luz. Seria até ao fim — “Eu disse à minha equipa: se passar a francesa, levo a medalha para casa”, diria no fim.

Aconteça o que acontecer, será a melhor prestação de sempre da judoca lisboeta. Segue-se a romena Corina Caprioriu, que tem a mesma idade da portuguesa (30). Era mais um osso duro de roer: medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Londres. O silêncio ganhou terreno no pavilhão. Aqui e ali ouve-se um “Vamos, Telma!”, com os dois sotaques da língua portuguesa de mão dada. Os brasileiros estavam do lado de Portugal. Telma era o país irmão. “Portugal, Portugal!!!”, ouve-se desta vez, já durante o combate, por fugazes segundos.

Muito cedo Telma assinou um yuko, que lhe dava a liderança. Depois foi uma troca de galhardetes: pegas falhadas, os pés a chocar, tentativas de ataque, resistência. Telma mais tarde admitira que a romena queria apanhá-la em falso, aproveitar um erro. O desconforto no ombro esquerdo começou a gritar. A face da judoca não enganava, era dor, era lamento. Limitava. Ajeitou o cabelo e o quimono. Voltou à bulha. A romena bufa, está irritada. Telma já ia gerindo, evitando grandes aventuras. Controlou. Mais tarde, já medalhada, daria toques de Fernando Santos: “não vim aqui para lutar bonito, vim para ganhar”.

Tic-tac, tic-tac! Já está: Telma é medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. É histórico, senhoras e senhores. O corpo dá sinais contrários à ética jornalística. A pele está como a canja: de galinha. O bom feeling engole aquele pavilhão, que já puxa em uníssono pela portuguesa. Há um alívio, o alívio de não tremermos apenas com o futebol. Aqui e agora, acabou-se de ver uma grande lição de vida. O desporto ensina tudo: a cair, a respeitar o outro, a perceber que há quem seja melhor. E a ganhar. É o horizonte.

RIO DE JANEIRO, BRAZIL - AUGUST 08: Telma Monteiro of Portugal (white) celebrates after defeating Corina Caprioriu of Romania in the Women's -57 kg Contest for Bronze Medal A on Day 3 of the Rio 2016 Olympic Games at Carioca Arena 2 on August 8, 2016 in Rio de Janeiro, Brazil. (Photo by David Ramos/Getty Images)

Já está! É medalha de bronze, Telma (Photo by David Ramos/Getty Images)

Telma abria os braços, sorria. Abraçou o treinador com a força de 1000 mulheres. E depois, a lembrar o Michael Jordan que era na sua infância, saltou a vedação para abraçar os seus. Talvez tenha ganho umas medalhas, daquelas negras, que choram na pele amassada. Mas não interessa. A própria diria algo semelhante na zona mista: “Acho que lixei o ombro. Se fosse para casa de cadeira de rodas com a medalha era indiferente…”

Ainda com emoções de bronze, foi possível navegar na mente de Telma Monteiro, com algumas palavras, recados para a própria, para a menina de 18 anos, e ainda mensagens inspiradoras para quem a segue e que cai todos os dias como o comum dos mortais.

RIO DE JANEIRO, BRAZIL - AUGUST 08: Silver medalist Sumiya Dorjsuren of Mongolia, gold medalist Rafaela Silva of Brazil, bronze medalist Telma Monteiro of Portugal and bronze medalist Kaori Matsumoto of Japan celebrate on the podium after the Women's -57 kg Judo Contest on Day 3 of the Rio 2016 Olympic Games at Carioca Arena 2 on August 8, 2016 in Rio de Janeiro, Brazil. (Photo by David Ramos/Getty Images)

Telma Monteiro com Sumiya Dorjsuren (prata), Rafaela Silva (ouro) e a amiga Kaori Matsumoto (bronze) – David Ramos/Getty Images)

“Provei que vale a pena não desistir dos nossos sonhos”, começou por dizer. “Não interessa a idade, não interessa o tempo que temos de esperar, o mais importante é não desistir. Persigo esta medalha há 12 anos. Costuma dizer-se que à terceira é de vez. À terceira é de vez, à quarta é medalha…”, sorriu, roubando outros tantos sorrisos a quem a rodeava num abraço invisível.

Mostrou que, afinal, sabia gerir e mudar o chip, que não estava cega pelo ouro, que havia mais por conquistar. “As coisas acontecem como tem de ser. O mais importante para mim é ter sabido reagir. Há oito anos, em Pequim, não tive essa maturidade: perdi na repescagem, porque estava obcecada com a medalha de ouro”, reconhece. “Hoje não, hoje sabia que o mais importante era fazer História pelo meu país.”

E a História foi feita.

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