Defende que não houve qualquer recuo no desenho final da lei da morte medicamente assistida, apesar de o diploma aprovado priorizar o suicídio assistido em detrimento da eutanásia. Recusa fazer juízos de intenção sobre Marcelo Rebelo de Sousa ou sobre os juízes do Tribunal Constitucional, mas vai argumentando que o Presidente da República perdeu margem para vetar politicamente a lei e que houve uma aproximação relevante aos receios levantados pelo Palácio Ratton. Insiste que esta diploma, tal como foi aprovado, não é um “mal menor”; é a lei possível. “Haver uma lei, para mim que defendo a despenalização da morte assistida, nunca poderá ser um mal”, diz.
Em entrevista ao Observador, no programa “Vichyssoise”, José Manuel Pureza, antigo deputado do Bloco de Esquerda e uma das principais figuras políticas pela defesa da despenalização da morte medicamente assistida, diz acreditar que a aprovação conseguida esta sexta-feira foi definitiva e que o processo não voltará a esbarrar no Tribunal Constitucional. “Não vejo que outro argumento pode agora vir a acolher”, argumenta.
Na frente interna, o bloquista assegura ter total confiança na capacidade de Mariana Mortágua para liderar o partido, mas acrescenta outra leitura: não basta mudar de coordenadora; é preciso fazer mais e melhor. “Reconheço muitas qualidades à Mariana Mortágua, estou muito confortável e satisfeito e tenho entusiasmo por ela se dispor a ser o principal rosto do Bloco. Mas o que precisamos de discutir é a orientação política do partido para ser percebido como um pólo de confronto com o pior lado da maioria absoluta.”
Quanto a um futuro diálogo à esquerda, quando ou se o PS perder a maioria absoluta, José Manuel Pureza evita entrar em reflexões sobre um eventual redesenho da ‘geringonça’. Nem tão pouco comenta a hipótese “Pedro Nuno Santos” em substituição de António Costa. “O que está em jogo não é a coleção de cromos. Ser fulano ou sicrano não é indiferente, mas na exata medida em que isso corresponda a correntes de fundo transportadoras de uma orientação política diferente.”
[Ouça aqui a Vichyssoise com José Manuel Pureza]
“Fascista” Moedas, o melão aberto de Costa e o amor caribenho de Marcelo
“Temos a lei da eutanásia que é possível fazer”
A nova versão do decreto da eutanásia é um recuo? Um paciente só poderá recorrer a ela se estiver fisicamente impedido de cometer suicídio assistido.
Acho que não é um recuo porque o espírito da lei foi sempre esse, o de prever a possibilidade de hetero-administração da substância letal, da intervenção ativa de um terceiro, médico, sempre como subsidiária da hipótese de ser a própria pessoa que deseja a antecipação da sua morte ser ela própria a proceder a essa antecipação.
Sente-se confortável com este desenho final?
Muito. O último acórdão do Tribunal Constitucional não se referia a isso explicitamente. Nesta matéria é sempre acompanhado de um conjunto de declarações de voto onde os vários juízes exprimem pontos de vista que podem e devem ser levados em conta porque exprimem sensibilidades que são relevantes. Neste caso havia efetivamente um conjunto de juízes que, ao lado da decisão sobre o assunto central, entenderam exprimir este ponto de vista. Não fiz parte do processo legislativo, mas percebo que tenha sido esse o motivo que levou a adotar esta formulação. A explicitar o que já fazia parte do espírito da lei.
Mas isto não defrauda as expectativas de quem esteve envolvido na elaboração desta lei desde o primeiro momento?
Não creio. O que seria defraudar seria deixar de prever a lesão definitiva de gravidade extrema para solicitar a antecipação da morte. Ficar só com a situação de doença grave e incurável. Isso sim, seria limitar em demasia o alcance da lei. Acho que ele se mantém, relativamente à versão anterior da lei. Simplesmente há uma explicitação sobre aquela que é a escolha por parte do legislador.
Percebe o desconforto que Eurico Brilhante Dias, líder parlamentar do PS, disse sentir em relação a este projeto?
O problema é que numa lei desta natureza tem de haver compromissos, atenção a uma série de pontos de vista para que haja lei e para que haja a possibilidade de dar resposta às situações concretas das pessoas. Podíamos perfeitamente afinar mais aqui ou acolá. Compreendo isso. Cada um transporta para o debate as mundividências que traz consigo. Temos a lei que é possível fazer para ir ao encontro dos vários pontos de vista.
É uma espécie de mal menor?
Não, não é mal menor. Não é mal. Haver uma lei nunca poderá ser um mal. Tem de ser a mais ponderada, equilibrada e mais rigorosa possível. Durante muito tempo, fiz debates por todo o país, durante muito tempo acompanhado pelo João Semedo, e havia sempre críticas cruzadas. Havia a crítica de que era medicalizado demais e de que era de menos. Mas depois, diante das históricas concretas, esse tipo de argumentação acabava por perder a sua intensidade.
E no futuro pode voltar-se a esta questão e alargar o que existe, voltar à versão que ficou para trás?
Esta lei teve processo longo de maturação. Estar a falar de uma alteração legislativa quando nem sequer temos lei não me parece nada o caminho certo. É preciso que seja bem regulamentada, porque há uma série de detalhes da sua operacionalização que precisam de ser regulamentados, e precisa de entrar em vigor, fazer caminho na sociedade portuguesa. E com muita pedagogia e desdramatização, que só será possível na medida em que a lei se mostre efetivamente rigorosa. Não me aprece adequado estar a falar de outros cenários.
“Chega está a tentar lançar o descrédito”
As convicções pessoais de Marcelo Rebelo de Sousa têm sido um grande travão à aprovação da eutanásia?
Limito-me a observar factos e a não fazer qualquer tipo de especulação. Por duas vezes o Presidente decidiu não afirmar a sua posição pessoal e dirigir a questão para o plano da litigação constitucional. A interpretação que faço é que, ao enveredar pela via da constitucionalidade, o Presidente da República tem de encarar a possibilidade de, uma vez superados os vários obstáculos que o Tribunal Constitucional foi colocando, haver lugar à promulgação. Não faria muito sentido mandar duas vezes a lei para o Tribunal Constitucional e depois de a situação estar estabilizada do ponto de vista constitucional vir dizer “mas eu…”. É uma possibilidade e tem todo o direito de o fazer. Mas depois deste processo, vir um veto político, não seria muito abonatória da sua posição.
Acredita que é desta que o projeto passa pelo Tribunal Constitucional e pelo Presidente da República?
Acredito sim, no sentido em que vejo que as afinações feitas no texto não só respondem ao último acórdão do Tribunal Constitucional, como para lá do que está inscrito no texto, vão ao encontro de sensibilidades relevantes de um número significativo de juízes. Não vejo que outro argumento pode agora o Tribunal Constitucional vir a acolher. E parece-me que o Presidente da República não fica numa posição muito fácil do ponto de vista do veto político. Mas é perfeitamente legítimo.
A questão do possível confronto com o Código Penal que André Ventura levantou – uma vez que o Código Penal proíbe o incentivo ou auxílio ao suicídio – preocupa-o?
Não me preocupa rigorosamente nada. Do ponto de vista jurídico, esta lei identifica uma causa de exclusão de ilicitude destes artigos.
Acha que o jurista André Ventura se enganou?
Não, nem sequer ligo a isso. O que o Chega está a fazer é o que era expectável: tentar lançar o descrédito sobre este processo, inventando um argumento jurídico que não existe.
“Costa ou Pedro Nuno? O que está em jogo não é a coleção de cromos”
Uma sondagem publicada pelo Expresso e SIC mostra a esquerda em minoria, o Bloco a descer e sem sinais de recuperar face às eleições de há um ano. Afinal, não há arrependidos da maioria absoluta que queiram voltar aos braços do Bloco?
A maioria absoluta foi constituída com base num argumento de medo. Sobretudo na última semana da campanha eleitoral, pairou sobre o eleitorado o espectro de que poderia haver uma aliança entre o PSD e o Chega e isso fez com que muita gente se deslocasse para o PS para garantir o mínimo. Mas está diante das pessoas a prática política da maioria: o próprio António Costa disse que as pessoas não podem estar satisfeitas. Claro que não podem. E não é só por causa das circunstâncias externas; é também muito pela falta de resposta do Governo. Estou convencido de que, diante de uma degradação da capacidade de resposta do Governo, que é patente e mostra a dimensão mais negativa de uma maioria absoluta, o Bloco tem condições para se bater por um alargamento do seu espaço político e eleitoral.
Mas não tem conseguido, ainda por cima num momento de contestação social e de mobilização dos sindicatos e da esquerda nas ruas. O que está a falhar para não conseguir capitalizar?
Resisto por princípio a ver a coisa dessa maneira. Há um crescendo de contestação social, é inequívoco, e de mobilização para a indignação. Isso traduzir-se em intenção de voto tem muito a ver com a capacidade de fazermos interlocução com esse espaço. Eu sei que isso está a acontecer, mas leva tempo.
Acredita que Mariana Mortágua é a pessoa certa para isso? Ela tem fama de ser mais radical. É uma vantagem neste contexto?
Acredito que a moção de que ela é a primeira subscritora e que também subscrevo permite melhor do que a moção dos outros camaradas fazer uma interlocução com estas expressões dispersas de contestação à maioria absoluta. Reconheço muitas qualidades à Mariana Mortágua, estou muito confortável e satisfeito e tenho entusiasmo por ela se dispor a ser o principal rosto do Bloco. Mas o que precisamos de discutir é a orientação política do partido para ser olhado, percebido, como um pólo de confronto com o pior lado da maioria absoluta.
E isso passará por dar um sinal de diálogo à esquerda, numa altura em que está de costas voltadas?
O Bloco tem essa cultura, desde o seu nascimento, de não faltar à procura de convergências políticas e sociais à esquerda para transformar coisas.
Mas tem visto isso nos últimos tempos?
Com certeza, em todos os aspetos em que é preciso a esquerda mobilizar-se. Naturalmente isso hoje tem outra dimensão: o confronto com a maioria absoluta do PS. Na habitação, na resposta à inflação, nas leis do trabalho é manifesto que a mobilização à esquerda tem do outro lado esse intérprete.
E se o intérprete for outro?
Não entro em campeonatos.
Com Pedro Nuno Santos ficava mais fácil?
O que está em jogo não é a coleção de cromos. É qual será a orientação política das várias forças à esquerda que permita convergências ou não.
Pedro Nuno Santos ainda é um melão, para si?
Não é isso… Ser fulano ou sicrano não é indiferente, mas na exata medida em que isso corresponda a correntes de fundo transportadoras de uma orientação política diferente. Com franqueza: não sei.
E como é que o Bloco evita que se repita o cenário desta campanha em que o PS agitou o papão do Chega e voltou a pôr os eleitores de esquerda entre a espada e a parede?
O Bloco faz isso mostrando como é a política da maioria absoluta. Independentemente dos juízos de intenção dessa relação dialética entre PS e Chega, cabe à esquerda e ao Bloco em especial dar evidência a todo um conjunto de faltas de resposta do Governo que alimentam o ressentimento que faz crescer a extrema-direita. Quando a Habitação é o que é, a resposta à inflação é o que é, quando as pessoas sentem as suas vidas mais castigadas, isso alimenta a extrema-direita.
Uma última pergunta antes de avançarmos para o segundo segmento para falar sobre o futuro de Catarina Martins. Seria uma boa candidata do Bloco de Esquerda às eleições europeias ou presidenciais?
Com franqueza, não sei. Com certeza que era uma boa candidata, mas isso é evidente. Isso não tem reservas. Mas já sei que se disser “não, é uma excelente candidata” isso será lido de uma maneira que acho que não é leal para com o partido de que sou militante.
“Preferia que a extrema-direita não fosse uma força forte”
Vamos agora ao nosso segundo segmento, o bloco “Carne ou Peixe”.
Ai chama-se “Bloco Carne ou Peixe”? Isso é muito bem.
Não. Chama-se “Carne ou Peixe”. É o bloco do “Carne ou Peixe”. Só pode escolher uma de duas opções. Da última vez que esteve cá, não respondeu a nenhuma pergunta.
Há sempre a hipótese da abstenção violenta.
Deu bom resultado da última vez. Mas vamos a isso. Preferia voltar a ser deputado com a direita em maioria no plenário ou nunca mais entrava no Parlamento, mas António Costa era primeiro-ministro mais um mandato?
Preferia que a extrema-direita não fosse uma força forte no Parlamento.
Com quem é que ia ver um concerto dos “Jesus Quisto”*: Mariana Mortágua ou Pedro Soares?
Ia ver com quem tivesse um grande sentido de humor. E os dois têm um bom sentido de humor.
Quem levava a uma noite de fados de Coimbra, Pedro Nuno Santos ou Fernando Medina?
Tenho dificuldade porque não iria ver uma noite de fados de Coimbra. Bem queria responder, mas não vou a essas coisas.
Quem é que podia integrar melhor o elenco da série “Pôr do Sol”: André Ventura ou Nuno Melo? E pode escolher uma personagem para eles.
Não…
Não metia uma cunha por nenhum?
Não, isso não metia. Por ninguém. O realizador tem uma autonomia total.
Podia responder a esta.
Sem escolher nenhum deles, já estou a imaginar cenas com imensa graça.
Nuno Melo talvez desse uma boa personagem na série.
Isso é a sua opinião.
*José Manuel Pureza é pai de Manuel Pureza, realizador de “Pôr do Sol”, série que parodia os lugares-comuns das telenovelas portuguesas. Os “Jesus Quisto” são uma banda fictícia dessa mesma série.