O desfecho é, salvo uma enormíssima surpresa, mais do que previsível: apesar de terem formalizado esta segunda-feira o pedido para a realização de um referendo à despenalização da morte medicamente assistida, os sociais-democratas estão bem cientes de que qualquer tentativa para travar a aprovação do diploma está condenada à partida. No entanto, o objetivo da direção social-democrata, sabe o Observador, foi vincar a posição de princípio do PSD e provocar uma clarificação.
Publicamente, Montenegro prometeu comprometimento total com o pedido de referendo à eutanásia. “Não estamos a apresentar este projeto de resolução para fazer um número político. Queremos convencer a maioria dos deputados”, afirmou o líder social-democrata esta segunda-feira à tarde. Mas é uma questão de aritmética: ainda em junho, o mesmo referendo foi chumbado no Parlamento com 71 votos a favor, 147 contra e duas abstenções.
Não há nada que indique que a votação seja diferente. “Achámos que valeria a pena dar mais uma oportunidade à verdadeira deliberação popular e sublinhar a nossa posição de princípio”, comenta com o Observador fonte da direção. “Se o referendo não passar, a posição política fica vincada”, atesta outro elemento do núcleo duro de Montenegro. “Ou se tomava posição agora, ou não se tomava”, completa um outro destacado dirigente do PSD.
Quanto ao momento que Montenegro escolheu para apresentar este pedido de referendo, a questão responde-se em dois momentos: primeiro, com a atenção mediática e política que o tema voltou a receber terminada a discussão do Orçamento do Estado para 2023 (com Aníbal Cavaco Silva a liderar a oposição à direita).
Em segundo lugar, argumentam os sociais-democratas, a redação final do diploma só agora ficou concluída. “Só agora ficou estabilizado o texto legislativo. O que permite fazer a pergunta com clareza”, salvaguarda fonte da direção.
A direção do partido também não ignora que os últimos episódios em torno de um diploma que continua a andar para trás e para a frente nos corredores do Parlamento fez crescer “a interrogação pública sobre o que está em causa e o que se está para decidir”. “As complexidades subsistem”, atenta um elemento da direção social-democrata.
Colagem ao Chega não preocupa. Voto católico conforta
Com esta decisão, o PSD acaba por colocar-se ao lado do Chega na defesa do referendo à eutanásia – são os dois únicos partidos que o defendem. Ainda assim, a coincidência de posições preocupa pouco ou nada a direção social-democrata. Pelo contrário, existe até quem pense que, no final do dia, pode ser positivo para consolidar a posição do partido.
“Ainda recentemente foi notícia um estudo que sugeria que os nossos [PSD] militantes são mais católicos do que o Chega. Se for para cativar um eleitorado mais conservador, seremos nós a fazê-lo e não o Chega”, argumenta um destacado dirigente social-democrata.
Seja como for, os socialistas, pela voz de Eurico Brilhante Dias, aproveitaram de imediato para criticar esta posição. “O PSD vive condicionado pela extrema-direita parlamentar e por uma atitude seguidista do partido da extrema-direita que tem assento neste hemiciclo”, criticou o líder parlamentar do PS. Na direção social-democrata, as palavras do socialista fazem parte do manual de instruções adotado pelo PS – e não deve ser levado a sério.
“A repetição do argumento PS da colagem ao Chega já serve para tanto que cada vez é menos levado a sério. Cada vez há menos dúvidas sobre a desesperada estratégia deles — Eurico Brilhante Dias, Santos Silva e sobretudo António Costa — em puxar pelo Chega o máximo que possa. Começaram tão cedo, e repetem-no tão sem critério e fundamento, que se estão a ridicularizar”, afirma um destacado dirigente social-democrata.
No Twitter, Luís Montenegro escreveu isso mesmo: “Já defendo o referendo sobre a eutanásia há quase dez anos. Nessa altura não havia Chega e alguns socialistas davam os seus primeiros passinhos na política pela mão de AJSeguro. Os franco-atiradores do PS e os seus argumentos pueris não estão a enobrecer a política.”
De resto, a própria posição sobre o tema divide opiniões dentro do núcleo duro de Montenegro, há muito um defensor convicto do referendo à eutanásia e “tendencialmente contra” a despenalização, como assumiu esta segunda-feira.
Por exemplo, Margarida Balseiro Lopes, vice-presidente do partido, é a favor da despenalização, mas entende que a questão deve ser referendada; Paulo Rangel é “convictamente contra” a despenalização da eutanásia e defensor do referendo; Miguel Pinto Luz, também vice do partido, é, por princípio, a favor da morte medicamente assistida e não necessariamente por referendo; no passado, António Leitão Amaro, igualmente vice, juntou-se a manifestações pelo ‘sim’ ao referendo.
Ainda assim, a direção social-democrata entendeu que este era o momento de pedir uma consulta popular. No passado, recorde-se, o tema chegou a motivar uma dura troca de acusações entre Luís Montenegro e Rui Rio, quando o agora líder do PSD acusou o seu antecessor de estar a “pressionar” os deputados a votarem ‘sim’ durante a discussão parlamentar, ainda em 2018.
Já defendo o referendo sobre a Eutanásia há quase dez anos. Nessa altura não havia Chega e alguns socialistas davam os seus primeiros passinhos na política pela mão de AJSeguro. Os franco-atiradores do PS e os seus argumentos pueris, não estão a enobrecer a política.
— Luís Montenegro (@LMontenegroPSD) December 5, 2022
Três anos depois, em 2021, o caso ganhou outra dimensão depois de Rui Rio ter sido alvo de um processo disciplinar por parte do ‘tribunal’ do partido acusado de não ter feito o suficiente para orientar a bancada parlamentar a votar ‘sim’ ao referendo – meses antes, na reunião magna do partido, os congressistas sociais-democratas aprovaram uma moção temática em que se defendia, precisamente, que o único caminho capaz de legitimar uma eventual despenalização da morte assistida seria um referendo.
Ao contrário de Rui Rio, Luís Montenegro tem o conforto dos seus antecessores. Ainda recentemente, Cavaco Silva defendeu publicamente que “a legalização da eutanásia não respeita o espírito da Constituição”. No passado, Pedro Passos Coelho argumentou contra o “não” e descartou a realização de um referendo. Pedro Santana Lopes também já se mostrou contra, embora admitisse como possibilidade um referendo. Luís Marques Mendes, por sua vez, sempre defendeu a consulta popular como única forma de legitimação.
Ainda que tenha garantido sempre que a sua experiência de católico não se iria nunca sobrepor ao seu papel presidencial, Marcelo tem funcionado como travão neste processo. Em 2021, a seu pedido, o Tribunal Constitucional chumbou o diploma; em 2022, foi o próprio Presidente a usar o seu poder de veto para rejeitar o diploma; agora, mais de um ano depois, resta saber o que fará o Presidente da República.
O que se segue
Tal como explicou Luís Montenegro, na conferência de imprensa desta segunda-feira, o objetivo é discutir e votar o referendo à despenalização da morte medicamente assistida ainda antes da votação do texto assinado por PS, BE, IL e PAN. Para tal, os sociais-democratas pediram para que a votação acontecesse na sexta-feira, dia em que está também agendada a votação do diploma em concreto.
Ora, se conseguirem aprovar o referendo – uma improbabilidade teórica ao dia de hoje – o processo legislativo ficaria suspenso e a palavra seria dada a Marcelo Rebelo de Sousa, a única figura com poder constitucional para convocar ou não referendos.
Todavia, as hipóteses do PSD são muito limitadas: não só o PS conta com uma maioria confortável de 120 deputados, como contarão com o apoio da IL (8), PCP (6), BE (5), PAN (1) e Livre (1) para travar as pretensões dos sociais-democratas, que têm na sua própria bancada quem defenda a despenalização da morte medicamente assistida e que entendem que os deputados têm competência para legislar sobre esta matéria e/ou que não deve ser uma questão resolvida por democracia direta.