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Explicador. Há mesmo risco de "interferência política" na Justiça?

O Parlamento Europeu voltou a levantar a suspeita de violação de separação de poderes por parte do Governo Costa. PS faz mudanças à última hora para evitar envio dos diplomas para o Constitucional.

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Há uma sensação de déjà vu com o caso do procurador europeu — mas agora foi o Parlamento Europeu a colocar na agenda a retirada à Polícia Judiciária (PJ) dos gabinetes nacionais da Europol e da Interpol.

Numa carta simbolicamente forte, os eurodeputados da Comissão LIBÉ (equivalente à Comissão dos Assuntos Constitucionais da Assembleia da República) falam no “risco inerente de interferência política ou acesso indevido a informações sobre investigações criminais em andamento” que pode ser promovido pelas alterações legislativas que o PS se prepara para aprovar no Parlamento.

Esta é uma ideia antiga de António Costa, que já vem do seu tempo como ministro da Administração Interna. Por duas vezes tentou aplicá-la, por duas vezes as direções nacionais da PJ ameaçaram demitir-se, caso a mesma fosse avante. O Observador explica-lhe o que está em causa.

Parlamento Europeu questiona Governo sobre diploma relativo à Interpol e Europol

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 Que polémica é esta do Ponto Único de Contacto?

O Ponto Único de Contacto é, como o próprio nome alude, uma forma de reunir na mesma estrutura todas as linhas de comunicação da cooperação policial internacional.

Ou seja, qualquer pedido de cooperação policial dirigido pela Polícia Judiciária (PJ) ou por outro órgão de polícia criminal (como a PSP, a GNR ou outra entidade policial) à Europol ou à Interpol passa a ser feito através desse Ponto Único de Contacto.

Tal Ponto Único de Contacto abrange igualmente outras comunicações, como aquelas que são emitidas ou rececionadas pelo Gabinete SIRENE. E o que é o Gabinete SIRENE? É a unidade que emite e recebe informação sobre a gestão do Espaço Schengen com os seus congéneres europeus.

O que fazem os gabinetes nacionais da Europol e da Interpol?

Esses gabinetes podem solicitar informações a um congénere europeu ou internacional no âmbito das boas práticas de cooperação policiais. Por exemplo:

  • A PJ pode solicitar informações a uma polícia europeia para localizar um determinado suspeito;
  • A Judiciária pode utilizar as linhas de comunicação com as suas congéneres europeias e internacionais para solicitar informações sobre o património de um determinado titular de cargo público ou político em vários países estrangeiros;
  • Como também pode receber informação sensível sobre investigações sobre titulares de cargos políticos estrangeiros.

Estes exemplos são meramente teóricos para o leitor perceber o potencial sensível das informações que podem ser transmitidas, sendo certo que a maior parte dos processos que levam a trocas de informação policial têm mais a ver com a criminalidade comum.

A PJ pode solicitar informações a uma polícia europeia para localizar um determinado suspeito, como pode utilizar as linhas de comunicação com a Europol e a Interpol para solicitar informações sobre o património de um determinado titular de cargo público ou político em vários países estrangeiros. Como também pode receber informação sensível sobre investigações sobre titulares de cargos políticos estrangeiros.

As informações financeiras, nomeadamente aquelas que estão relacionadas com a quebra do sigilo bancário num país europeu (como a Suíça, por exemplo) ou noutra parte do mundo, seguem outros trâmites e têm de ser enviados pela Procuradoria-Geral da República e ao abrigo da cooperação judiciária (e não policial) internacional.

O que pretende o Governo alterar?

Pretende que o Ponto Único de Contacto seja criado fora da alçada da PJ e seja transferido para a Secretaria-Geral de Segurança Interna — organismo que reúne todas as forças policiais e serviços de informação.

Daí que as propostas de alteração da Lei de Organização e Investigação Criminal e da Lei da Segurança Interna, apresentadas pelo PS, estipulem claramente que as competências e as plataformas informáticas relacionadas com a cooperação internacional passam da PJ para o Sistema de Segurança Interna, sob a alçada da Secretaria-Geral de Segurança Interna.

Qual é o problema?

A Secretaria-Geral de Segurança Interna, nomeadamente o seu secretário-geral, é nomeado e responde diretamente ao primeiro-ministro.

Isto é, há uma tutela formal que pertence ao primeiro-ministro. Sendo que o secretário-geral não é um órgão judicial, nem responde ao poder judicial do ponto de vista formal (como a PJ), logo não está obrigado ao segredo de justiça.

A Secretaria-Geral de Segurança Interna responde diretamente ao primeiro-ministro. Isto é, há uma tutela formal que pertence a António Costa. Sendo que o secretário-geral não é um órgão judicial, nem responde ao poder judicial do ponto de vista formal (como a PJ), logo não está obrigado ao segredo de justiça.

Esta é uma questão teórica que tem algumas semelhanças com a tutela política da PJ. Durante muitos anos, e até do ponto de vista legal, o ministro da Justiça podia pedir informações ao diretor nacional da PJ sobre processos criminais em curso.

Com o aprofundamento da democracia e do principio da separação de poderes isso mudou e a própria lei colocou restrições a essa prática.

Qual é o papel do primeiro-ministro António Costa nestas propostas de alteração?

António Costa empenhou-se pessoalmente nesta alteração. Apesar de a mesma também nascer de uma exigência da autoridade europeia que fiscaliza o Espaço Schengen, certo é que esta é uma ideia antiga do primeiro-ministro.

Já em 2006, como ministro da Administração Interna, António Costa tentou levar esta ideia avante. Na altura, a direção nacional da PJ, liderada pelo conselheiro Santos Cabral, ameaçou demitir-se.

Mudanças sobre Ponto Único de Contacto não anulam preocupações da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da PJ

Quando António Costa tomou posse em novembro de 2015 como primeiro-ministro, o tema voltou à agenda e a direção nacional, então liderada por Almeida Rodrigues, também ameaçou apresentar a sua demissão, caso a ideia fosse concretizada.

Naquele momento, o líder da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal (ASFIC) disse mesmo ao DN que essa ideia indicava que o “PS tem uma fixação em controlar a investigação criminal”, numa alusão a uma acusação que foi por diversas vezes feita ao Governo de José Sócrates.

Isso significa que a criação do Ponto de Contacto pode colocar em perigo o princípio constitucional da separação de poderes?

O Parlamento Europeu entende que esse risco é real. A carta da Comissão LIBÉ, equivalente à 1.ª Comissão de Assuntos Constitucionais da Assembleia da República, diz mesmo que existem “preocupações” sobre “um risco inerente de interferência política ou acesso indevido de informações sobre investigações criminais em curso”.

E recorda que o Parlamento Europeu está fortemente comprometido com a ideia de separação de poderes e da independência do poder judicial.

O Parlamento Europeu entende que esse risco de violação de separação de poderes é real. A carta da Comissão LIBÉ diz mesmo que existem “preocupações” sobre “um risco inerente de interferência política ou acesso indevido de informações sobre investigações criminais em curso”. E recorda que o Parlamento Europeu está fortemente comprometido com a ideia da independência do poder judicial.

Daí que tenha pedido explicações ao Governo português e acesso às propostas que ainda estão ser debatidas no Parlamento.

A carta da Comissão LIBÉ é datada de 27 de setembro e foi assinada pelo presidente Juan Fernando López Aguilar (socialista espanhol e membro do Grupo S&D, a que o PS pertence).

A carta do Parlamento Europeu é relevante?

Sim, a carta tem relevância política. Em primeiro lugar, porque é dirigida ao próprio primeiro-ministro António Costa, à ministra Catarina Sarmento e Castro (da Justiça), ao ministro José Luís Carneiro (da Administração Interna) e ao secretário-geral de Segurança Interna, Paulo Vizeu Pinheiro.

Por outro lado, causa um problema reputacional a Portugal devido ao risco do princípio da separação de poderes — um princípio estruturante do Estado de Direito e da União Europeia e que é acompanhado com grande interesse pela Comissão LIBÉ.

Parlamento Europeu formaliza ação contra Comissão por não ativar mecanismo do Estado de direito

Basta recordar que são precisamente as alegadas violações do princípio da separação de poderes por parte dos governos da Hungria (Viktor Orban) e da Polónia (Partido Lei e Ordem) que levaram à ameaça ou mesmo à aplicação de sanções a esses países, nomeadamente ao congelamento dos fundos comunitários do Programa de Recuperação e Resiliência.

O Parlamento Europeu, nomeadamente a Comissão LIBÉ, fez uma pressão muito forte sobre a Comissão Europeia para agir no caso da Hungria e da Polónia.

A situação portuguesa está muito longe desse plano de sanções, mas certo é que já é a segunda vez em relativo pouco tempo que o Governo de António Costa recebe alertas da Comissão LIBÉ. O primeiro aconteceu no caso do procurador europeu.

E pode ter consequências?

Para já, a Comissão LIBÉ vai esperar pelo envio da documentação solicitada às autoridades portuguesas. Também seguiu uma carta semelhante para a Europol, para auscultar a visão deste organismo de cooperação policial.

Caso não fiquem satisfeitos, os eurodeputados podem obrigar os ministros da Justiça e da Administração Interna a explicar-se no Parlamento Europeu, como aconteceu com a ministra Francisca Van Dunem a propósito do caso do procurador europeu.

O PS fez alguma alteração de última hora às propostas de lei que estão no Parlamento?

Sim. Como o Diário Notícias noticiou esta quinta-feira, o PS fez uma alteração de última hora às duas propostas de lei que estão a ser discutidas na Comissão de Assuntos Constitucionais.

Na Lei de Organização e Investigação Criminal, o PS deixou claro que a chefia dos gabinetes da Europol e da Interpol compete ao secretário-geral da Segurança Interna mas que a referida chefia “é exercida por um quadro da Polícia Judiciária.” Idêntica alteração foi feita na Lei da Segurança Interna.

Os socialistas querem garantir, como o deputado Pedro Delgado Alves defendeu na Rádio Observador, que “nada muda”. Ou seja, que a PJ continua a gerir os gabinetes nacionais da Europol e da Interpol.

Os socialistas querem garantir, como o deputado Pedro Delgado Alves defendeu na Rádio Observador, que "nada muda". Ou seja, que a PJ continua a gerir os gabinetes nacionais da Europol e da Interpol. Mas, na realidade, tudo muda: as plataformas informáticas relacionadas com a cooperação internacional, e respetiva informação, saem da PJ e passam para o Sistema de Segurança Interna, que está na alçada de António Costa.

Mas, na realidade, tudo muda: as plataformas informáticas relacionadas com a cooperação internacional, e respetiva informação, saem da PJ e passam para o Sistema de Segurança Interna, que está na alçada do primeiro-ministro.

Por outro lado, os quadros da PJ que serão nomeados respondem funcionalmente e hierarquicamente ao secretário-geral da Segurança Interna e não ao diretor nacional da PJ.

Note-se, por último, que o Diário de Notícias já tinha noticiado no final de Agosto que Luís Neves, diretor nacional da PJ, e Paulo Vizeu Pinheiro, secretário-geral da Segurança Interna, tinham chegado a um acordo muito idêntico ao que o PS veio a colocar agora nas suas propostas de alteração de lei.

O Presidente da República já se manifestou publicamente sobre estas alterações legislativas?

Sim, Marcelo Rebelo de Sousa alertou publicamente durante o verão para o risco de estar em causa o princípio da separação de poderes, porque o Governo poderia ter acesso indevido a informações em segredo de justiça.

Marcelo pode enviar o diploma para o Tribunal Constitucional?

Sim, O Presidente deixou no final de agosto a ameaça velada de enviar o diploma aprovado pelo PS para o Tribunal Constitucional, caso tivesse alguma dúvida sobre a constitucionalidade.

Certo é que o PS foi o único partido a aprovar os diplomas da Lei de Organização e Investigação Criminal e a Lei de Segurança Interna no Parlamento na generalidade, sendo que a proposta não dava as garantias pedidas por Marcelo.

Só agora é que o PS clarificou nas suas propostas aquilo que o Presidente da República sempre quis: que a PJ se mantenha no controlo da coordenação dessa informação.

O que diz a Polícia Judiciária? A direção nacional é a favor desta transferência?

A direção nacional liderada por Luís Neves manteve sempre a posição histórica da PJ: contra qualquer retirada dos gabinetes nacionais da Europol e Interpol. Tal posição foi mesmo manifestada por escrito e de forma fundamentada.

ASFIC/PJ repudia retirada de gabinetes da Interpol e Europol da alçada da Polícia Judiciária

A atual direção da ASFIC, liderada por Carla Pinto, também está contra a transferência da cooperação internacional e o Ministério Público não fica atrás.

O que aconteceu nos outros países?

De acordo com informações recolhidas junto da PJ, Portugal deverá ser mesmo o único país em que a cooperação policial internacional passará para as mãos de alguém que responde e é tutelado pelo primeiro-ministro.

Qual a razão de a cooperação policial estar nas mãos da Judiciária?

Por força dos crimes para os quais tem competência exclusiva de investigação, a PJ sempre foi a grande beneficiária do sistema.

Se olharmos para o Relatório de Segurança Interna de 2020, percebemos facilmente que a esmagadora maioria das comunicações pedidas ou recebidas pertence à PJ: cerca de 328 comunicações que corresponde a cerca de 84% do total.

Se contabilizarmos o período de 2016/2020, o número total de comunicações da PJ para o sistema de cooperação internacional policial varia entre 70% e os 84%. E com a transferência das competências de investigação criminal do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras passará para os 90%.

Acresce a tudo isto que os temas da maior parte das comunicações de cooperação policial têm por base crimes ou situações que são da competência da Judiciária: cibercrime, crimes de guerra e genocídio, terrorismo, tráfico de droga, fraude de carrossel do IVA, entre outros.

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