É jornalista e gosta de “incomodar”. Mas não escreve numa redação: rodeia-se de cadeiras em casa. Felícia Cabrita, agora no semanário Sol, acompanhou casos como Casa Pia, Face Oculta ou Monte Branco. Convidada do Artigo 38 de João Miguel Tavares, fala sobre Tancos, aponta o dedo aos “comentadores encartados” da televisão portuguesa e volta a descrever “o maior impostor do século”: José Sócrates (apesar de considerar que tem uma “exemplar história de vida”). Entre política e jornalismo, relembra também o dia em que entrou num estúdio ainda “miúda” para assinar um contrato com a sua banda, as Damas Rock. Pode ouvir a entrevista aqui.
Um dos casos que tens acompanhado ultimamente é de Tancos. É um caso grave. Chega às mais altas instâncias do Estado, primeiro-ministro, Presidente da República. O que é que se passou aqui?
Revela mais uma vez em que país é que vivemos, que é um de ópera-bufa (risos). No fundo, toda a gente sabia, andaram a brincar connosco. Este caso revolta-me pela forma como comentadores e jornalistas o acompanharam inicialmente. Porque quem lê a acusação percebe que há ali duas partes que têm a mesma responsabilidade política.
Rui Rio disse que não falava de casos da justiça, mas que havia uma responsabilidade política e que queria discutir isso. Nessa parte ele tinha razão. Por um lado temos Azeredo Lopes, ministro da Defesa, suspeito de ter sabido de tudo: do achamento e da tramoia feita entre a GNR e a PJ Militar. Ter sabido do achamento através deles, e de ter ocultado tudo isto do Ministério Público e da polícia, que era quem tinha a investigação de facto nas mãos. Mas também temos um ex-chefe da Casa Militar de Marcelo Rebelo de Sousa, a quem são atribuídas praticamente as mesmas suspeitas.
Estás a falar de João Cordeiro, que teve de se demitir. Uma demissão por motivos pessoais que não está explicada.
Certo. E meses após o achamento.
E pouco tempo antes de terem começado as primeiras detenções.
O que me irritou foi a forma como a comunicação social tratou disto, dando a notícia que mais lhes dava jeito. Quem estava ligado ao PSD esquecia a história de Marcelo Rebelo de Sousa, quem estava mais à esquerda atacava o outro lado.
Puxava pelo “papagaio-mor”.
Puxava pelo “papagaio-mor”.
E depois tens comentadores.
Comentadores encartados. E este foi o caso que mais me enervou. Até tenho respeito pelo senhor, que foi Marques Mendes, na sua rubrica ao domingo…
…Que tem alguma fama de ser correio de transmissão de Marcelo…
Também. Ele é o ventríloquo, supostamente, do “papagaio-mor”. Então houve a sua intervenção nesse dia, a defender Marcelo Rebelo de Sousa. Na conversa que nós conhecemos daquela escuta, em que lhe era atribuído este cognome de “papagaio-mor”, é que ele não se vai mexer e vai ficar quietinho porque tem medo. E os jornalistas andaram a discutir imenso tempo quem era o papagaio-mor.
Não é que fosse muito difícil de adivinhar.
Exato. O Marques Mendes disse diretamente que não havia aqui discussão possível. “Papagaio-mor” era o Marcelo Rebelo de Sousa. Mas há aqui uma coisa que é estranha, muito estranha para um homem tão informado como Marques Mendes. É que o “papagaio-mor” é o menor dos males: o que era grave ali, naquela acusação, eram as suspeitas que incidem sobre o ex-chefe da Casa Militar.
Estás a falar do João Cordeiro.
Do João Cordeiro.
Sobre o qual foi retirada uma certidão para ser investigado.
Exatamente. Sobre esse assunto, Marques Mendes não abriu a boca. E aí devia ter feito uma declaração de interesses. Porque é compadre do Cordeiro.
Compadre, como assim?
Uma das filhas é casada com um filho do João Cordeiro. Portanto, quando nós estamos a ver um comentador, que está a passar uma informação parcelar, e a tomar partido, obviamente, para defender o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa… Toda a gente sabe que são amigos; isto não pode ser um mero esquecimento. E é isto tudo, é esta promiscuidade que existe entre a comunicação social, comentadores, universo político, financeiro e económico. É isto que é lixo. Que lixo é este país.
Acompanhaste todos os casos mais relevantes dos últimos tempos. E a lista dos casos que investigaste como jornalista é bastante impressionante: Casa Pia, Freeport, Face Oculta, Operação Furacão, Operação Monte Branco, BPN, o caso do Duarte Lima com Rosalina Ribeiro, a Operação Marquês. E depois também tens casos muito marcantes, já não tão ligados à política, mas em termos sociais, como o caso da Maddie McCann, ou até ao alegado estripador de Lisboa. De todos estes casos qual é que te marcou mais, pessoal e profissionalmente?
Não consigo separar as coisas. Em certos casos sou muitas vezes associada ao jornalismo policial, que é completamente falso. Antes da Casa Pia já tinha uma série de trabalhos, nomeadamente na área da guerra colonial, que depois deu origem a um livro: “Os Massacres em África”. E, nesse capítulo, nesse confronto com homens que estiveram na guerra, que fizeram massacres, no reencontro também com as vítimas, vamos de encontro ao lado mais negro do homem. O que é muito assustador. Colocar estas pessoas a falar não é fácil. Mas depois salta a tampa. Até porque eles precisam de um escape. São situações tão violentas que, às tantas, um jornalista torna-se um escape.
Já te enganaste muitas vezes?
Não me ocorre uma única situação. Pode ter acontecido, mas não me ocorre. Acho que, se isso tivesse acontecido, me lembraria. Posso-me ter arrependido de ter feito certos trabalhos.
Ai é? Dá-me exemplos.
Por exemplo a bibliografia do nosso rei, que acho uma figura deliciosa. Simplesmente o passado dele, aquela coisa de o treinarem para rei: o treino de um príncipe. Ele não era uma pessoa ágil, não era, e não é. Fisicamente é um bocado desastrado. Portanto todo aquele passado no colégio militar, na tropa, aquilo foi caótico para ele. Não posso deixar de dizer e de contar as coisas, e garanto que havia episódios que eram muito humorísticos. E a dada altura pensei: “Para a próxima vez trago alguém para brincar comigo que não tenha coração”. É uma frase de Óscar Wilde, do “Aniversário da Infanta”. Não estou arrependida do que escrevi, não me enganei em nada.
Sentiste é que foste cruel.
Sim, não havia necessidade porque não era um primeiro-ministro, não era uma figura importante. Quer dizer, que poder é que o Dom Duarte tem nesta sociedade? Não tem nenhum.
A Casa Pia foi outro caso que te marcou muito. Foi um processo muito longo, muitas vezes com depoimentos contraditórios, de testemunhas que diziam uma coisa e depois se arrependiam ou eram pagas. Nem aí dirias que cometeste erros?
Não. A convicção que tinha na altura mantém-se. O problema do Ballet Rose…
Quando dizes Ballet Rose, só para as pessoas perceberem: estou a falar da Casa Pia, mas, de certa forma, há contactos entre uma coisa e outra. Fazes essa ligação?
Faço. O Ballet Rose, que é um escândalo que rebenta num Estado Novo clerical, é denunciado pela oposição. Mais tarde na Casa Pia são esses anti-fascistas, os filhos, netos, primos de Estaline, que não aceitam esta vergonha em casa própria.
Na Casa Pia, enquanto o problema se põe ao nível do Silvino, mais conhecido por Bibi, um homem de classes desfavorecidas que também tinha sido despejado pela mãe na Casa Pia, a classe política e os jornalistas diziam “Doa a quem doer!”. Quando entramos no Carlos Cruz, ele que era um pouco o namoradinho da nação, o homem que não envelhecia, as pessoas sentaram-se à porta dos tribunais em sua defesa. Quando se chega ao Paulo Pedroso, aí sim, o país entupiu e houve aquelas reações inesquecíveis, e depois um acórdão que o coloca em liberdade. Ele não foi absolvido com aquele acórdão, saiu em liberdade, foi recebido na Assembleia da República como se tivesse chegado dos anos 50 no Tarrafal. A Assembleia da República é a casa de todos os portugueses.
O Partido Socialista também se queixava de ter havido um país que invadiu o espaço da Assembleia da República…
Mas o juiz fez o seu trabalho. Ele foi notificado e foi detido. Não pode haver uns mais iguais que os outros, porque esta coisa de serem sempre os ricos e poderosos a descobrirem os buracos da lei já chateia. A lei não precisa de ser a justiça, qualquer discípulo de Hegel dir-te-á que a lei é apenas a objetivação da justiça. Agora aqui parece bruxedo, porque são sempre os mesmos que conseguem romper os mecanismos.
Achas que isso é uma constante? Algo que já existia no tempo do Estado Novo, continua em Democracia… que o regime não mudou muito?
Não, não mudou muito. As coisas do Ballet Rose foram abafadas, ainda consegui descobrir o processo daquela gente toda envolvida, e uma prostituta apanhou uma pena de prisão, acho eu…
Só para enquadrar os casos, porque há pessoas que não sabem o que é o Ballet Rose…
É um escândalo de pedofilia que rebenta nos anos 60, em que meia dúzia de fidalgos, políticos, e empresários são apontados como abusadores de menores, neste caso de meninas. O processo é investigado, lembro-me que durante a investigação tive acesso ao processo. Fiz esse trabalho porque tinha levado de férias o processo das virgens…
Que deu um livro lançado pela Afrodite ainda na década de 70…
Em 74, acho que logo após a Revolução. E a ideia com que se fica do livro é que estamos a falar de adolescentes. Não! Estamos a falar de crianças, 7 anos, 8 anos. Pela reconstituição que faço do caso, consigo chegar a grande parte das crianças, que na altura já eram adultas, e a figuras principais, abusadores e outras senhoras que participavam nestes jogos.
Sentes que este esquema foi replicado na Casa Pia?
Este esquema não está no processo. Falei com um inspetor da PJ que estava na investigação e disse-lhe: “E este nome e aquele?” E ele disse: “Se não estão, é porque foram engolidos, porque nós falamos e lidamos com essas pessoas. Os crimes estavam atribuídos, por isso se não estão lá é porque foram engolidos”. E o processo foi abafado de facto, como te disse, resultou dali apenas o nome de Teodoro dos Santos, que era dono do hotel Casino Estoril, que ficou em domiciliária. E, depois, houve uma prostituta ou duas que foram condenadas a penas de prisão ínfimas.
E na Casa Pia a justiça também não foi aplicada da mesma maneira a todos os suspeitos?
Fica no ar alguma desconfiança em relação à posição de um Tribunal Superior como o da Relação. Estávamos a falar do Paulo Pedroso, o acórdão que o restituiu à liberdade quase que condena os miúdos. As crianças aparecem ali como os grandes responsáveis. No dia seguinte sai outro acórdão que diz exactamente o contrário. Mais, diz que os indícios foram reforçados. Isto aconteceu algumas vezes, nós até dizíamos “se for parar a este coletivo, já sabemos o que vai sair dali”.
Mas és sensível à prova direta, indireta, o facto de ser uma prova alicerçada nos testemunhos das crianças?
Não é só nos testemunhos das crianças, as pessoas estão enganadas. Há ali um grande cruzamento de informação…
Crianças, que já não o eram na altura…
Vamos focar-nos no caso do médico Ferreira Dinis, para além das crianças que dizem que foram abusadas por ele naquele momento, há outras crianças que no passado já diziam que o tinham sido. Porque nós conseguimos recuperar processo antigos, nomeadamente o processo dos anos 80 que envolve pela primeira vez Carlos Cruz e Jorge Ritto. Consegui documentação do Ballet Rose dos anos 60 de um grupo de americanos que passavam por gente com muito dinheiro que se deslocava a Portugal em jato privado e arranjava passaportes aos miúdos da Casa Pia de um dia para o outro, para os levar para as Jugoslávia, o que é muito estranho. E esse caso que depois acabou por ser denunciado por um padre e ir a tribunal. Nessa altura a Secretária de Estado era a Teresa Costa Lobo, que veio confirmar tudo, ainda era viva à época. Este processo também foi abafado, mas esta documentação existe, da mesma forma que existem cartas amorosas dos miúdos para os americanos.
Existe também o processo dos anos 80, ou pelo menos partes do processo. E um documento extraordinário do SIS de que ninguém tinha conhecimento, que vim a descobrir em Paris, imagina. Narra o que se passava no Parque Eduardo VII e em que, protegendo os pedófilos, se referem a pessoas conhecidas como “Altas Figuras em carros topos de gama”. Já os intermediários, as crianças, tinham os nomes completamente escarrapachados. Havia aqui uma proteção de uma determinada classe e foi continuando. Lembro-me que quando encontrei a Teresa Costa Macedo e lhe disse que estava a fazer um trabalho sobre o Carlos Silvino, ela perguntou: “Mas o quê? Esse homem ainda não foi preso?”
Ou seja, sabia-se, mas ninguém fazia nada.
Ninguém fazia nada. Lembro-me de uma conversa entre colegas, jornalistas reputados, num aniversário em que um deles me dizia (na altura estava no Público): “Mas isso sempre existiu, lembro-me de ver os putos ali em Belém a sacar dinheiro”. E respondi: “‘Está bem, mas e o que é que tu chamas a um homem que abusa, que leva um miúdo de 7 anos com ele, para ter relações? É pedofilia, não tem outro nome!”. Portanto, ficava-se no discutir se os miúdos eram prostitutos ou não eram prostitutos… e isto porquê? Porque Portugal é muito pequeno, estamos sempre a dizer isso. As classes em todo o mundo são como as bruxas da Galiza: não existem, pero que las hay, las hay.
Portanto, as classes protegem-se. E isso aconteceu na comunicação social, na política, durante o processo Casa Pia. E depois repetiu-se com o Freeport, com a Face Oculta. As pessoas tinham uma grande dificuldade em aceitar… Não há chancela política que nos liberte da noite escura que cai sobre nós. Ou seja, a direita, sempre céptica, sabe isto. Sabe-o, mas esconde-o. A esquerda não aceita a vergonha em casa própria. E portanto isto dividiu-se entre jornalistas e políticos. Quando a Casa Pia começou os políticos diziam “doa a quem doer” tal como agora no caso de Tancos…
Alguma vez perdeste amigos ao longo das tuas investigações?
Vinha para cá e estava a pensar nisto. O jornalismo de investigação não é nada sexy — neste país então não é nada sexy. Não tens grupos económicos a quererem apostar em jornais ou revistas mais ligados à investigação. Não há, porque eles nunca sabem para que lado a mão vai cair. Há duas fases na minha vida de jornalista: há o antes Casa Pia e o pós Casa Pia… No antes Casa Pia era uma jornalista premiada muito bem aceite na classe. Depois da Casa Pia ganhei imensos inimigos. Suporto muito bem viver com isso e espero que isso me acompanhe até abandonar a carreira, porque é bom sinal, é sinal que incomodo. Aquilo que custa mais é perder amigos e, de facto, perdi. Perdi por exemplo gente muito amiga ligada ao Partido Socialista com responsabilidades dentro do partido. Pessoas com quem me dava muito bem. No caso Sócrates, também…
Eu separo o jornalismo e o meu trabalho do resto… Mas ganham-se muitos inimigos. E também se perdem amigos, que é o mais dramático.
Isso significa que vais ficando cada vez mais sozinha?
Mais só, até ao dia em que não consiga trabalhar, porque há-de chegar o dia em ninguém quer falar comigo.
Achas?
Acho que sim. Não sou confiável. Para a classe política, não sou confiável. Não sei como será se fizer agora uma biografia. Era normal estar a fazer a biografia de alguém, do Rio ou do Costa…
Fizeste isso com o Passos Coelho?
Fiz isso com o Passos Coelho. Mas não sei como é que me iam aceitar neste momento, já não seria tão fácil.
Já ninguém te convida para isso?
Nunca me convidaram para fazer biografias! Biografias são propostas do jornal essencialmente. Todos os livros que tenho não foram ideia minha, nem as séries de televisão.
O que te estava a perguntar é se te convidam menos hoje em dia?
Ainda não tinha pensado nisso… O último grande trabalho em que estive envolvida foi o caso Sócrates e saiu um livro. Um livro que considero muito bom e que foi completamente ignorado pela comunicação social. Lá está: há uma censura que não é visível, que as pessoas não dão conta, mas que é feita pelos jornalistas.
Mas o teu livro sobre Sócrates já saiu com ele mais do que detido, não foi? Porque é que houve essa censura então?
Porque eu e o Joaquim Vieira não somos bem vistos na classe.
Porquê?
Já tfalei do problema da Casa Pia. Há muita gente que continua a achar que eles são inocentes… E depois começaram-me a associar, não sei porquê, a um jornalismo sensacionalista, que não sei o que é. Estou há quase 30 anos no jornalismo a fazer — a manter — o mesmo estilo e o mesmo tipo de trabalho.
Achas que as pessoas classificam o populismo ou o jornalismo sensacionalista não propriamente pelo conteúdo das notícias, mas quando elas atingem alguém que lhes é próxima?
Sim, é o problema das classes e sinto muito isso na minha classe. O Sol foi o jornal que trouxe nas últimas décadas os trabalhos mais importantes a nível da Justiça. O Freeport, o Face Oculta, o Monte Branco, o BPN, o Marquês, etc.. Mas são raros os comentaristas encartados que se referem a notícias do Sol. Portanto, é óbvio que o Sol incomoda e que há pessoas que não estão interessadas em falar neste jornal e não percebo porquê. Tentam denegrir a nossa imagem dizendo que somos um jornal de direita, o que acho extraordinário. Devem fazer essa associação por causa do antigo diretor, o José António Saraiva, que é um homem assumidamente do PSD. Nós, por exemplo, fazíamos sondagens à boca da urna na redação e quem ganhava em maioria era o Bloco de Esquerda.
Sim, como em quase todas as redações.
Pronto. Portanto é esta coisa de nos ligarem à direita, é uma das formas de nos denegrir.
Interessa-me essa questão do denegrir. Uma vez queixaste-te numa entrevista: “Arranjaram um plano sórdido para denegrir a minha imagem com a colocação de determinadas notícias sobre a minha pessoa insinuando relacionamentos com polícias e magistrados”. De facto, essa é uma coisa que de vez em quando vem e que se ouve… Como é que a Felícia Cabrita tem tantas fontes? Como é que olhas para isto?
Estou no jornalismo há muito tempo. Nos primeiros dez anos dediquei-me a biografias e a temas de guerra colonial e fui fazendo leitores. Lembro-me que a primeira vez que falei com um senhor deste universo, ele disse-me: “Só a recebi porque gosto do seu trabalho, nomeadamente”… E apontou-me um trabalho! Acho que foi por isso que algumas pessoas começaram não só a fazer denúncias de outros casos a que não estava habituada, como a Casa Pia — que não era nem de longe nem de perto o meu universo. Mas foi a mim que a denúncia veio parar e foi em mim que algumas pessoas da justiça, de facto, depositaram confiança em relação a determinados trabalhos. Isso foi resultado da minha carreira. Quando um jornalista que anda nesta vida há quase trinta anos não tem uma boa agenda, é para esquecer. Não andava aqui a fazer nada.
Haverá aqui também a velha conversa do preconceito machista “ah, aqui está esta mulher a dar estas notícias incríveis e tal”.
Não sei, não quero acreditar nisso. Se tivéssemos aí um jornalista macho que conseguisse ter um leque de trabalhos igual, haveria também muito inveja.
Não estou a falar de inveja. Iam insinuar que um jornalista macho que dava muitas notícias andava a dormir com procuradoras-Gerais da República ou…?
Mas sabes quem é que lançou isso? Processei-o! Quem lançou isso foi o José Sócrates no caso Freeport. Foi ele e foi um magistrado. São fórmulas que pegaram para denegrir os jornalistas. Não sei se é só com uma mulher, se não inventam qualquer dia que tu, por exemplo, andas a dormir com a procuradora…
Não, nunca tive essa…
Eu também nunca tinha tido, sempre andei por outras áreas… Houve outra figura, o Jorge Van Kriken, que aquilo não é jornalista nem é nada, que num blogue que tinha, dizia coisas extraordinárias. Que o meu pai era um pedófilo e que tinha sido o primeiro a abusar do Pedro Namora… Eu não ligava a esse tipo de coisas, não lia. O Joaquim Vieira, um dia, fez um print de tudo e num jantar no Algarve levou as coisas porque achava que eu tinha que reagir.
José Sócrates é uma figura especial? Como é que te relacionas com ele? Qual é a singularidade de José Sócrates na história de Portugal dos últimos 100 anos ou pelo menos da nossa Democracia? É uma figura única ou faz sentido aquela conversa de “ah como este há muitos”?
Não, não há. O José Sócrates faz-me lembrar um conto dos “Contos do Gin-Tonic”. Que era: “Assaltou por três vezes a compota, o pai admoestou-o. Roubou a mercearia da esquina do Sr. Esteves, o pai pô-lo na rua. Passado 22 anos, apareceu de chauffeur fardado e era diretor geral das polícias”.
Aqui não é o diretor geral: é o primeiro-ministro. Quer dizer, já havia muitas suspeitas em relação a José Sócrates, não era novidade; o escrutínio por parte dos jornalistas é que foi curto. Sócrates, para mim — e não é a primeira vez que o digo — é o grande impostor do século, é o homem do embuste. É um homem que, para ter currículo universitário, teve que pagar a um amigo para lhe escrever um livro. Para que esse livro fosse lido teve que alavancá-lo com dinheiro do melhor amigo do mundo, que é o Carlos Santos Silva!
Terá fabricado a licenciatura, também.
Fabricou a licenciatura, a relação que ele tem também com as mulheres — e mesmo com a família — é de mercadoria. Ele paga tudo. Ele paga os afetos: as mulheres, as namoradas, são pagas; os filhos são calados com dinheiro. E chegam a protestar, usando até uma linguagem muito pouco própria de um filho para um pai, com alguns palavrões que são conhecidos. Chegam a protestar por viver em luxo, em grande luxo. Eles queriam ser podres de ricos. Eram ricos, muito ricos. Mas queriam ser podres de ricos.
O José Sócrates mantém afetos e amizades pagos com dinheiro. O problema da Operação Marquês é que deixa, de facto um estigma na classe política e no regime. E nós podemos pensar que ele não é o único. Eu até já pensei fazer um dicionário para lobistas, porque existem muitas expressões no processo Marquês. E também na operação Face Oculta: até tens uns tipos que dizem “agora é preciso mamar até ao fim”. É tudo muito mau…
Mas era só dinheiro? Aquilo que fazia mover José Sócrates era o dinheiro por si? Não tenho essa tese.
José Sócrates é um megalómano. E queria ser… Ele constrói um personagem. É um personagem a que ele é alheio. Portanto, não é um homem culto.
Mas tu não achas que o dinheiro é sobretudo um instrumento… Para ser amado, para ter poder, para poder agregar à sua volta as pessoas.
Foi o que eu disse.
Ou seja, era o cimento. Não era o último objetivo?
O livro, o mestrado… Isto é a preparação de um terreno para voltar à lide política. E ao contrário do que se diz, não era ser Presidente da República: era primeiro-ministro. Porque é aí também que se pode chegar ao dinheiro. É evidente que o dinheiro é que lhe proporcionava isso, nomeadamente o regresso à política, que para ele era fundamental. Foi completamente enxovalhado quando perdeu as eleições. E queria regressar rapidamente. E o dinheiro foi-lhe servindo para isso tudo.
Ainda não o achas uma personagem fascinante?
É um bocado uma Ópera-Bufa. (risos). Já são muitos anos de Sócrates. Desde o Freeport. Mas quando eu te digo que é o maior impostor do século, é fascinante. Não que seja um homem exemplar, mas tem uma exemplar história de vida.
Quando é que tu desconfiaste que Sócrates era o que era?
Penso que foi no Freeport. Aquelas ligações aos primos… Investiguei muito, no Freeport. As relações familiares, todas as empresas… Havia uma série de empresas formadas e que não tinham existência. Não se percebia. Até davam prejuízo. Era, de facto, muito estranho. A Operação Marquês, depois, veio apanhar aquilo tudo. E quando o Ministério Público diz que o Sócrates tinha um projeto de enriquecimento apoderando-se dos mecanismos do Estado é uma acusação gravíssima. E tinha desde a formação de uma empresa com o Carlos Santos Silva, se não estou em erro, em 2005.
Se desde o caso Freeport começaste a desconfiar, porque é que a maior parte das pessoas demorou tanto tempo a ver?
No Sol começámos a dar notícias durante um ano. Os únicos que nos acompanhavam eram o Correio da Manhã. Umas vezes citando, outras vezes não citando. Os outros jornalistas não falavam nisto, as televisões não falavam nisto. Houve pessoas que tiveram que se vir retratar. Estamos a falar destes comentadores encartados do país. Este fenómeno repete-se — e volto ao mesmo: as classes em todo o mundo são como as bruxas da Galiza: não existem, pero que las hay, las hay.
Uma vez disseste: sou uma pessoa normal, uma pobre provinciana algarvia ,que apenas leva a sua profissão muito a sério. Continuas a identificar-te com esta descrição de ti própria.
Sim. De mim própria diria que sou uma pessoa que gosta da vida e da liberdade.
O facto de seres esta “pobre provinciana algarvia”, como tu te descreveste, é importante para o trabalho que fazes?
Sem dúvida. Sou um bicho do mato. Não tenho praticamente vida social. Ninguém me vê a aparecer em festas… Precisamente porque há um perigo, de que tu falas recorrentemente: sendo este país um país pequeno, onde é fácil conhecer todo o mundo e frequentar os mesmos restaurantes, isso torna muito mais difícil a nossa tarefa.
Sentia-me à vontade a fazer biografias, porque não frequentava o meio. Fiquei a ganhar com isso ao nível das biografias. Deu-me uma independência incrível. O trabalho resultava. Acho que é a investigação que conduz o jornalista, não o contrário. Quem fizer isso não é jornalista.
Como o Luís Pacheco, preciso de umas desintoxicações, porque nós lidamos com o lado mais obscuro da sociedade. Preciso de umas desintoxicações e essas desintoxicações são a minha casa. Sou um bicho de casa. Não trabalho em redações, era incapaz de escrever numa redação. Sempre fui assim. Nunca escrevi numa redação. A minha filha talvez um dia me vá odiar, porque me cerco com cadeiras… Não sei quem fazia isso, se era o Torga, se era o Sena… Havia um escritor português que fazia isso, rodeava-se de cadeiras para que as crianças não o incomodassem. E eu sou assim.
E essa tua famosa vida de juventude na banda Damas Rock, que ainda gravou dois singles, não foi?
Foi.
Então e essa tua vida rock and roll? O que estás a descrever não é nada rock and roll.
Tenho ainda a esperança de cantar com o Fausto. Estou a tentar convencê-lo já há muito tempo. Aliás, estou a tentar convencê-lo também a musicar um fado meu. Mas ele agora está um bocado cansado, está em meditação. Ele faz isso. Após um trabalho, o Fausto retira-se.
Portanto, o bichinho da música não morreu.
Adorava cantar com o Fausto. Gosto muito do Fausto. Sou amiga dele e, para mim, a referência nessa altura das Damas Rock, era o Zeca Afonso, o Fausto, o Zé Mário Branco. Essa história é muito simples: o que queríamos, de facto, era entrar na música popular portuguesa. Com estes mestres! Chegamos à PolyGram, éramos umas miúdas… Não tínhamos idade para assinar contrato. E não assinámos. E o Tozé Brito, com a experiência que tinha, olhou para nós, quatro miúdas, ouviu-nos a cantar música popular portuguesa, e no fim diz: “Hmm, vocês…” (risos)
Quis fazer umas Doce.
E fez a primeira banda de rock feminino em Portugal.
Portanto, vocês são as professoras das Doce.
As Doce já existiam (risos). Não tinham nada a ver com rock and roll. Ainda dei algumas dores de cabeça a alguns senhores com essa banda…