De um lado há Steve Carell, um homem mais habituado à comédia do que ao drama (mas sempre bem quando o faz, como em “O Amor e a Vida Real”). Interpreta David Sheff, jornalista e autor do best-seller Beautiful Boy, um relato dos anos de luta contra a toxicodependência do filho e uma das fontes de inspiração para este filme (mas também foi ele que escreveu Game Over: How Nintendo Zapped an American Industry, Captured Your Dollars, and Enslaved Your Children, título fundamental na bibliografia de jogos de vídeo). Do outro lado, Timothée Chalamet, num papel distante do menino bonito de “Chama-me Pelo Teu Nome”. Ele é Nic Sheff, o filho toxicodepente, que também escreveu a sua versão da história em Tweak: Growing up on Crystal Meth.

“Beautiful Boy” é o novo filme de Felix van Groeningen (“Ciclo Interrompido” e “Bélgica”), o realizador belga que pegou nos dois livros, as versões de David e Nic, e transformou as suas histórias num filme. Consolidou bem os dois lados: a versão firme do pai, tentando salvar o filho, entre a eterna esperança e o desespero; e o filho, tentando vencer o vício enquanto é confrontado com a vontade de cumprir as expectativas da vida: estudar, começar a ter uma carreira.

No meio, mais do que a história de ambos, existem as recaídas e de como elas são vistas pelos centros de reabilitação nos Estados Unidos. “Beautiful Boy” é uma história familiar, de quem tenta tudo para se manter unido, mas nas entrelinhas deixa uma mensagem forte sobre como deve ser vista e tratada a toxicodependência. Em conversa ao telefone, Felix van Groeningen esclarece como todos os detalhes – incluindo a muito certeira banda-sonora – foram importantes para contar a história de David e Nic da forma certa.

[o trailer de “Beautiful Boy”:]

Como é que soube da história do David e Nic?
Foram os produtores do filme que me apresentaram a história. Tinham visto um dos meus filmes anteriores, “Ciclo Interrompido” [2012], e resolveram contactar-me para realizar o “Beautiful Boy”. Há algum tempo que procuravam alguém para adaptar a história deles mas ainda não tinham encontrado a pessoa certa para o fazer. Quando viram o meu filme, pensaram imediatamente no “Beautiful Boy” e de que eu seria a pessoa certa. Depois de saber um pouco mais sobre o projeto, resolvi aceitá-lo.

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O que é que lhe despertou a curiosidade nos livros e nas histórias de ambos?
Foram várias coisas. Senti de imediato uma conexão com a família, pelo modo como acreditam no amor incondicional: eles amam-se mutuamente, não importa o que aconteça, e acho isso muito bonito. Ao mesmo tempo, são confrontados com a toxicodependência, que é um assunto com o qual já tive de lidar na minha vida e que também já trabalhei nos meus filmes. Por já ter estado tão próximo de situações de toxicodependência, já sabia um pouco do impacto que causa nas pessoas e nas suas famílias e amigos. Mas a história do Nic e do David fez-me perceber algo sobre a toxicodependência que não tinha percebido antes: de que é realmente uma doença. Tem de ser vista dessa forma, pois só assim é possível ajudar as pessoas. Não pode ser vista como uma falha moral de alguém. Foi algo que aprendi e que nunca tinha sentido antes. Perceber isso, em conjunto com o resto, motivou-me a fazer este filme. E queria que fosse um filme que celebrasse a vida.

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No final do filme há uma advertência sobre o aumento de mortes por toxicodependência nos Estados Unidos. Falar do assunto agora é mais urgente do que alguma vez foi?
Há uma epidemia nos Estados Unidos, não de metanfetaminas, mas de opiáceos. Mais de 70 mil pessoas morreram de overdose em 2017. É um número que duplicou nos últimos dois anos. Creio que é importante falar disso agora porque há muita gente, muitas famílias a serem afetadas pela toxicodependência. Mas não foi a razão para eu fazer este filme, cruzei-me com a toxicodependência ao longo da minha vida. Tenho 40 anos, tive tios alcoólicos, conhecidos que morreram por causa dos seus vícios. Para mim não é mais urgente agora do que alguma vez foi.

No filme fica subentendido que os processos de reabilitação nem sempre são os melhores para curar os vícios. E que muitas vezes não é exatamente isso que os toxicodependentes precisam. Que tipo de investigação fez sobre o assunto?
É um assunto que está num território cinzento, não pode ser tratado como uma situação de preto ou branco. Nos últimos meses, enquanto fazia alguma investigação, descobri muitos centros de reabilitação privados que são muito caros e que deveriam servir para ajudar as pessoas. Mas nos Estados Unidos muitos dos centros de reabilitação apenas se preocupam em fazer dinheiro. Claro que ajuda algumas pessoas, mas não ajuda muitas. E claro que há pessoas que trabalham nestes centros que têm as melhores intenções e fazem o seu melhor. Não tenho realmente uma opinião sobre o assunto, porque é muito complexo. Por exemplo, a ideia de que a recaída faz parte da recuperação e de que é algo a que um toxicodependente tem que se habituar… isso não deveria ser a norma, porque uma recaída pode ser letal. Se podes recuperar sem recaídas, melhor, por isso não deveria ser referido como uma norma. É uma daquelas situações em que algo que seja dito pode ser facilmente contraposto, não é uma situação com respostas fáceis.

[elenco e equipa técnica falam sobre “Beautiful Boy”:]

Trabalhou ambos os livros para escrever o argumento. Qual foi a solução para consolidar as visões de Nic e David?
Foi sempre muito claro que a história principal seria a visão do David, o arco narrativo do pai que quer salvar o filho. O problema principal foi como decidir e resumir tanto material para caber num filme. Tínhamos de encontrar e perceber quais as histórias que se cruzavam e percebemos que muitas delas estavam relacionadas com as recaídas. A cada recaída, algo acontecia com um e com outro, e ambos percebia algo sobre eles mesmos, a situação e, claro, sobre a doença. A primeira versão do argumento tinha cerca de duzentas páginas, daria para um filme de três horas e meia. Tínhamos mesmo muito material em mãos e queríamos contar tudo.

Esteve em contacto com eles durante a produção de “Beautiful Boy”?
Desde o início. Conhecemo-nos pessoalmente e eles foram sempre muito abertos, disponíveis para responder a qualquer pergunta. Mas também disseram que não queriam interferir. Ao serem tão disponíveis permitiram-se trazer mais autenticidade ao filme, permitiram que a nossa equipa fosse visitar a casa deles, na Califórnia, e isso também possibilitou que toda a gente envolvida se sentisse mais próxima deles e da sua história.

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No primeiro terço do filme utiliza a música muito intensivamente. A escolha recai muito sobre música da década de 1990s, principalmente da segunda metade, isso foi uma escolha sua ou encontrou essas referências nos livros?
É uma combinação, foi inspirada nos livros, porque eles têm um gosto muito eclético. E algumas bandas são mencionadas ao longo do filme, como os Nirvana, que são referenciados muitas vezes, ou a canção “Beautiful Boy”, do John Lennon, que o David canta para o Nic. A música surgia na história de ambos em diferentes níveis, mas eu e o editor tomámos a liberdade de colocar canções que realmente gostávamos.

Mas porque é que é usada tão intensivamente no início?
Não é só no início.

Mas no início há uma série de momentos que são construídos em volta das músicas escolhidas.
Foi uma forma de nos ajudar a criar os momentos altos e baixos do filme. O filme é sobre alguém que está constantemente em recaída e há algo de potencialmente aborrecido nisso. Mas o espectador tem de aceitar, porque o filme é sobre isso, porque é algo que pode acontecer a qualquer momento e, nesta história, acontece. E como começa a acontecer tão cedo no argumento, quis usar isso a nosso favor, porque queres criar algo de excitante no teu filme, como se fosse uma montanha russa. E a vida deles, no início, está a ser contada muito depressa, e é uma viagem muito emocional e complexa. A música ajuda a suavizar isso tudo e, simultaneamente, puxa pelo lado emocional. Porque é algo que se relaciona com as personagens.

[elenco e equipa técnica falam sobre “Beautiful Boy”:]

Alguns dos atores secundários são mais conhecidos pelos papéis que desempenharam em séries de televisão. Por exemplo, o Spencer [André Royo], o Bubbles de “The Wire”. Foi uma coincidência escolhê-lo para aquele papel?
Não, não foi uma coincidência. Adoro “The Wire” e o André Royo é fantástico na série. A ideia de o colocar naquele papel foi de lhe prestar um tributo, imaginar que a personagem dele em “The Wire” tinha evoluído e que agora estaria a ajudar alguém, neste caso o Nic.

Faz sentido. Quando se ouve o Royo a falar ao telefone parece-se mesmo com o Bubbles. É um gesto simpático.
Encontrar a pessoa certa é sempre um processo complicado, este foi um daqueles casos em que encaixou pelas razões certas.