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Deixe-se ficar. Beba mais um copo, dê mais um mergulho ou então não faça nada. É verão, não se esqueça, mesmo que o tempo esteja incerto. Aproveite os intervalos dos horários e das obrigações e leia. Se não sabe que livros escolher, esta é a lista que mais importa nesta altura do ano. As sugestões veem dos jornalistas e colaboradores do Observador. Tome nota e não fique sem companhia.

Ana Markl

“A Única História”, de Julian Barnes (Quetzal)

Só li dois livros do Julian Barnes, apesar de ter mais uns quantos à espera na prateleira. Por coincidência, li dois livros em que o autor britânico aborda uma temática semelhante: a subjectividade da memória, assunto que muito me agrada enquanto pessoa algo obcecada com o passado. Nas férias de 2012, li O Sentido do Fim e, há umas semanas, li de um fôlego este A Única História. No primeiro, um homem é obrigado a confrontar a sua interpretação do passado com uma verdade que altera toda a história de vida que escolheu escrever para si. Neste último, um homem conta-nos a melhor versão da sua história de vida, ressalvando por vezes que possa não ser a mais verdadeira mas que também não é a mais bonita.

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Concordo que a verdade não se deve interpor entre nós e uma boa história, desde que não se transforme radicalmente numa mentira, apenas numa narrativa mais interessante para contar à mesa do jantar. No entanto, cá dentro, esforço-me bastante por questionar a minha interpretação das memórias. Assusta-me a tendência para as transformarmos no que mais nos convém só para nos desresponsabilizarmos pelo que nos acontece na vida e podermos ser uns otários até morrer.

“Like a Mother: a Feminist Journey Through The Science and Culture of Pregnancy”, de Angela Garbes (Harper Collins)

Quando uma pessoa acaba de saber que está grávida, tende a correr para a internet para tirar algumas dúvidas — rapidamente se aprende que é o pior que uma pessoa pode fazer. Depois, com algum bom senso, decide comprar livros. Mas também chega logo à conclusão de que boa parte da literatura sobre gravidez e maternidade é condescendente ou assente em estereótipos e clichés bafientos e pouco úteis. Like a Mother foi o único livro sobre gravidez que li avidamente de uma ponta à outra, por vezes com alguma dificuldade em engolir descrições mais violentas ou mais gráficas de alguns processos. É um livro que respeita a mulher e as suas circunstâncias, que menciona detalhes científicos que o mundo prefere ignorar e que conta a história, ainda tão frágil, da obstetrícia na cultura ocidental.

Like a Mother não é de todo um bota-abaixo ao milagre da vida, é apenas o relato honesto da experiência de uma futura mãe, com a ressalva de que cada gravidez é única e, por isso mesmo, talvez seja sensato doutrinarmos menos e mandarmos menos palpites sobre a gravidez alheia.

“Sabrina”, de Nick Drnaso (Porto Editora)

Duas pessoas ofereceram-me esta magnífica graphic novel nos meus anos. Uma delas teve de ir trocar (Filipe, estou à espera). Isto criou imediatamente elevadas expectativas, mas depois apercebi-me de que o hype era generalizado: Sabrina foi a primeira graphic novel a constar da lista do Booker Prize e é totalmente merecido. É um perturbador ensaio sobre a era das fake news e da proliferação de teorias da conspiração, que começa por nos dar a volta à cabeça como um thriller só para nos tornar cúmplices da paranóia e especulação que caracteriza esta era.

Todas as manhãs, na Antena 3, assino uma rubrica sobre comentários nas redes sociais, por isso sou obrigada a ler as mais assustadoras opiniões e sentenças de pessoas cuja voz não devia ser ouvida para lá do balcão onde bebem a bica — e já é muito. Podemos optar por nos rirmos só desses comentários mas, ao lermos Sabrina, percebemos o quão perigosos e destruidores podem ser estes ecos de estupidez.

Carlos Maria Bobone

“Vultos e Perfis”, de Gonçalo Sampaio e Mello (BookBuilders)

Há uma série de intelectuais que moldaram o pensamento e a mundividência do Estado Novo que parecem esquecidos pela História. Este livro, numa série de biografias rigorosíssimas e minuciosas, recupera alguns deles: João Ameal, Luís Almeida Braga, e outros, mais importantes do que lembrados na História do pensamento político português.

“Quinas e Castelos: Sinais de Portugal”, de Miguel Metelo de Seixas (Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Haverá poucos livros de introdução à heráldica tão úteis e tão informados. Além de traçar a História dos símbolos portugueses e dos seus significados, consegue dar conta da importância da representação simbólica enquanto tal. Antes da existência de semióticas e estruturalismos, já a heráldica estudava a importância e as subtilezas da linguagem não escrita com métodos e regras que importa conhecer.

“Pirates: A new History, from Vikings to Somali Raiders”, de Peter Lehr (Yale University Press)

Histórias exóticas e aventurosas de um mundo cheio de riscos e patifarias, estudado com um rigor admirável, dada a dificuldade de encontrar boas fontes sobre a pirataria através dos séculos. É uma História abrangente, que combina o lado bizarro com a análise política das fraquezas que permitem o advento da pirataria.

“Le Négationnisme de Gauche”, de Thierry Wolton (Éditions Grasset)

O tom do livro é um tanto revanchista e recupera uma argumentação de barricada que não é a mais interessante: porque é que chamamos negacionistas a quem nega o Holocausto e não o chamamos a quem nega os Gulags? No entanto, o livro evolui para uma reflexão sobre os mecanismos de resistência e de superioridade das ideias que é mais interessante.

Joana Emídio Marques

“Odisseia”, de Homero (Quetzal)

Terminada a guerra, um soldado embarca numa viagem de regresso a casa, mas a viagem será longa, aventurosa, perigosa. Há monstros, ventos adversos, mulheres sedutoras e malignas, há a morte, os inimigos. A viagem de Ulisses rumo à sua Ítaca natal é, antes de mais, uma metáfora da nossa vida e um ensinamento sobre a ousadia, a astúcia e a coragem. Todos os livros de aventuras, os romances, todos os filmes, dos western à ficção científica, nasceram deste livro-fonte de onde jorra há milénios a civilização Ocidental, os seus sonhos e mitos, os seus medos, o seu imaginário.

Pode-se viver sem conhecer este livro? Pode, mas não é a mesma coisa. Lê-lo é só por si uma viagem que replica o próprio livro; desde logo pela coragem que se pede ao leitor para mergulhar numa linguagem poética, numa forma narrativa muito diferente das que enformam hoje o nosso mundo. Homero pede-nos que façamos o contrário de Ulisses, e nos atiremos às ondas mortais para onde nos chamam as sereias. Porque, de que vale a vida se não mergulharmos sem medo na beleza? Lê-lo é também compreender de outra forma esta Europa do nosso descontentamento, é compreender o nosso passado.

A tradução de Frederico Lourenço, tanto nesta edição da Quetzal, como na anterior da Cotovia, é prodigiosa na forma como torna esta obra acessível, sem nunca menosprezar as suas complexidades e deixa o nosso universo repleto de imagens poderosas desse mar nunca vindimado, da aurora de róseos dedos, de sereias de bela voz. E, se por fim descobrirmos que o destino que nos esperava afinal era um desapontamento, lembremo-nos do que escreveu o poeta Constantin Kavafis:

“Por pobre que a descubras
Ítaca não te traiu
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência
terás compreendido o sentido de Ítaca”.

“Ver uma Mulher”, de Annemarie Schwarzenbach (Relógio d’Água)

As ligações humanas podem equivaler-se a uma viagem, uma travessia, uma peregrinação, uma excursão. Cada um empreende o tipo de deslocação de que é capaz. A escritora e jornalista suíça, de língua alemã, Annemarie Schwarzenbach foi uma viajante pioneira quando, nos anos 20 dos século XX, nem todos os caminhos estavam abertos, muito menos para as mulheres, muito menos para uma mulher homossexual.

As suas viagens de carro pelo Médio Oriente, pela então URSS, pelo Sul dos EUA, por Lisboa estão documentadas em vários livros publicados quer na Relógio D’Água, quer na Tinta-da-China e que mostram como cada lugar não é apenas um amontoado de monumentos e paisagens, mas cada um contém o desafio de nos tornarmos outros, de nos impormos desafios e de respondermos a cada lugar com a transformação que ele nos exige. Annemarie as sua viagens serviram para denunciar o nacional socialismo, a miséria em que viviam os negros nos EUA, a vida das mulheres muçulmanas.

Talvez por isso, este livro, Ver uma Mulher, escrito antes dessas viagens, quando a escritora tinha apenas 21 anos, surpreenda e nos comova. Nele toda a viagem se faz apenas pelos salões, corredores e quartos do Grand Hotel da vila suíça de Saint-Moritz. Esta não é uma história de amor, mas uma história de fascínio erótico de uma jovem por uma mulher mais velha e desconhecida, onde ela vai projetar todo o seu imaginário amoroso e sexual mas também todo o seu desejo de escapismo. O livro, autobiográfico, foi encontrado no espólio de Annemarie depois da sua morte, com apenas 34 anos.

“As Estações da Vida”, de Agustina Bessa-Luís (Relógio d´Água)

Este é um livro excêntrico à obra de Agustina Bessa-Luís e uma pequena maravilha do triunfo da inteligência sobre o pensamento vulgar, ou como ela diria, “os miasmas da vulgaridade”.

O ponto de partida é falar sobre os painéis de azulejos que decoram as estações da linha do Douro, mas rapidamente se torna uma viagem às memórias de infância de Agustina, que são as memórias de um país que foi sendo apagado e troca de outras obras e outros desígnios ditos maiores, dos seus costumes que são, antes de mais “devaneios da alma antes de serem razões da necessidade”.

Embarcando no Porto em direção a Espanha, em 2002, Agustina torna cada coisa que nomeia um alimento para “o sangue das veias” e faz desta breve viagem uma epopeia lendária toda feita de pequenas coisas, pormenores que o olhar alcança e que a reflexão redimensiona fazendo de cada detalhe uma aprendizagem sobre a condição humana, mas também sobre o país que somos.

“O Sangue a Ranger nas Curvas Apertadas do Coração”, de Rui Caeiro (Maldoror)

Esta é a antologia de cerca de 800 páginas que reúne a obra de um poeta que foi, até à sua morte em Janeiro deste ano, quase desconhecido para o grande público e um autor de culto para uma pequena minoria maioritariamente urbana. Mas, como dizia um outro poeta português, “hoje em dia, em Portugal só o apagamento é uma forma de consagração”.

Rui Caeiro [1943-2019] poeta, tradutor e editor, fez a sua travessia nas pequenas editoras como a &Etc, a Averno e em edições de autor. E, e se quase todos os jornais mencionaram a sua morte, e até Marcelo Rebelo de Sousa a lamentou, quase nenhum o mencionou em vida. Nem a ele nem à sua poesia. Esta edição da Maldoror tem pois um duplo objetivo: dar a conhecer a obra de Rui Caeiro e mostrar como, atualmente, a edição de novas vozes comunicantes da poesia portuguesa não passa pelo circuito das editoras mainstream com praça montada na feira do livro mas por pequenas chancelas do subterrâneo.

“Tratado de Funambulismo”, de Phillipe Petit (VS editores)

Ainda que tantas vezes o mundo nos tente convencer que devemos gastar o nosso tempo apenas com aquilo que é considerado “útil”, há que nunca perder de vista os prazeres do inútil; seja ficar a ver as mudanças de forma das nuvens no céu, seja andar sobre um arame a vários metros de altura sem ganhar dinheiro por isso ou procurar conchas bonitas à beira-mar.

Este Tratado de Funambulismo, escrito pelo homem do arame, Phillipe Petit, é pois uma aprendizagem sobre a arte de andar sobre cabos e cordas, de andar entre as nuvens, de habitar o vazio, de aprender a saudar a morte e não temê-la. Intensamente metafórico, poético, operando sobre as palavras com a mesma delicadeza e a assertividade com que se desloca no ar, este é um livro que só os que ousarão o impossível poderão compreender. Paul Auster, que lhe assina o prefácio, lembra que “andar no arame é uma arte solitária, uma maneira de desafiar a própria existência nos recantos mais sombrios e secretos de si”.

Joana Marques

“No passado e no futuro estamos todos mortos”, de Miguel Esteves Cardoso (Porto Editora)

Confesso que ainda só li duas das crónicas do livro, uma sobre sardinhas, outra sobre UCAL, enfim, os grandes temas que normalmente me interessam e sobre os quais MEC tem vindo a debruçar-se cada vez mais. Nunca hei-de esquecer um tratado sobre torradas que publicou há uns anos no Público, e onde podíamos ler coisas como: “consultadas as várias revistas imparciais de defesa do consumidor (a Which britânica e congéneres) chega-se à conclusão que cada marca que fabrica uma boa torradeira fabrica também muitas más — e que só por rara coincidência é que as mais caras são as melhores”.

Não é o género de texto que esperamos ver assinado por um intelectual. Quando se chega a uma certa idade já não precisamos de fingir que andamos a ler os clássicos russos, podemos assumir que temos andado de roda do manual de instruções da torradeira Dualit. Ainda só posso fazer uma avaliação prematura do livro mas numa semana em que MEC disse, numa bonita manifestação de amor próprio, “sou extremamente inteligente, tenho um grande sentido de humor e escrevo muito bem” só posso acreditar que o resto da obra me vai encher as medidas…

“O grande compêndio de audiogésicos da doutora Ana Correia”, de Ana Markl (IN)

Das pseudociências, tão em voga atualmente, a audiogesia parece-me o menor dos males. A doutora Ana Correia (só agora, em livro, percebi que tem doutoramento e não apenas licenciatura) promete curar todo o tipo de patologia com recurso a música. Parece-me mais credível que a cromoterapia…

Ana Correia é o nome de falsa médica de Ana Markl mas não contem a ninguém. Recomendo este livro, em primeiro lugar, porque faltam compêndios nas prateleiras das nossas livrarias. E, sobretudo, porque nele encontramos de facto a cura musical para os maiores problemas da vida: desde défice de motivação matinal até incontinência de amor parental. Como recomenda a Doutora, “leiam, oiçam e comam uma peça de fruta”. Pelo menos a fruta é garantido que faz bem. O resto logo se vê.

“O livro que diz não!”, de Cédric Ramadier e Vincent Bourgeau (Bizâncio)

Obra dedicada à faixa etária dos 2/3 anos. A indicada para mim, neste momento, enquanto leitora que não tem tempo para ler nada para si, em silêncio, só lê alto para um leitor muito exigente. Leitor esse que, durante meses a fio, insistia em dizer que não a tudo, pelo que achei sensato comprar esta obra que é quase interativa (apesar de não ter QR codes nem nada dessas modernices), já que o pequeno leitor é convidado a interagir com o livro, convencendo-o a ficar mais bem disposto e a substituir, no final, o teimoso “não” pelo “sim” (desculpem o spoiler).

João Pedro Vala

“Pensamentos”, de Pascal (Relógio d’Água)

A vida é feita destes trágicos desencontros. James Joyce e Proust cruzaram-se uma única vez, em Paris, em 1922, durante breves minutos e terão alegadamente conversado sobre brigadeiros de chocolate. Não menos tragicamente, no momento em que por fim a tradução dos Pensamentos chega a Portugal, o nosso maior especialista em Pascal abandona-nos para ir treinar o Flamengo.

“Pequenas Cadeiras Vermelhas”, de Edna O’Brien (Cavalo de Ferro)

Pequenas Cadeiras Vermelhas é uma espécie de vá para fora cá dentro. Embora aparente ser sobre um criminoso de guerra bósnio fugido à justiça que se tenta fazer passar por curandeiro sexual, o penúltimo romance de Edna O’Brien é, na verdade, sobre uma Irlanda rural que nos é muito familiar. Ler Pequenas Cadeiras Vermelhas é, portanto, semelhante a planear umas férias cosmopolitas e requintadas em Nova York e acabar a comer uma bifana em Newark. E é excelente.

“Schlump”, de Hans Herbert Grimm (PIM! Edições)

Grimm tem a rara capacidade de misturar o horror da vida nas trincheiras na Primeira Grande Guerra com histórias hilariantes como a do moço que, numa brincadeira, ficou com um bacio preso na cabeça e que, graças a isso, quase iniciava um ataque das forças militares contra o inocente povo de Loffrande.

“Pão de Açúcar”, de Afonso Reis Cabral (Dom Quixote)

Muitos disparates foram ditos sobre o segundo romance de Afonso Reis Cabral, onde se conta a história de Gisberta e do bando de adolescentes do Porto que a espancaram até à morte. Talvez o maior desses erros tenha sido o de se achar que o livro é sobre a história de Gisberta e do bando de adolescentes do Porto que a espancaram até à morte. Pão de Açúcar é sobre crescer e não saber para onde dirigir a energia da juventude.

“Monsieur Proust”, de Céleste Albaret (Imprensa da Universidade de Lisboa)

O livro que recolhe as memórias de Céleste Albaret, a criada de quarto de Marcel Proust desde 1914 até à morte do escritor, trata-se muito provavelmente  do único caso na história da literatura de uma autobiografia não autorizada escrita postumamente. Ao longo das páginas de Monsieur Proust, percebemos que Céleste Albaret olha sempre para onde Proust quer que esta olhe, repara no que Proust quer que repare e, mais importante, não presta atenção ao que Proust precisa que Céleste não preste atenção.

Rita Cipriano

“O Doente Inglês”, de Michael Ondaatje (Relógio d’Água)

O Doente Inglês, do autor srilandês Michael Ondaatje, está longe de ser uma novidade literária. Contudo, dois acontecimentos recentes servem de desculpa para ler este clássico da literatura de língua inglesa, talvez mais famoso pela adaptação cinematográfica de meados dos anos 90 do que por outra razão qualquer.

Em 2018, o Man Booker Prize, o mais importantes prémio de literatura em inglês, celebrou o seu 50º aniversário. Para assinalar a data, criou-se o Golden Man Booker Prize, um galardão para premiar o melhor romance das últimas cinco décadas de Booker. A escolha dos leitores recaiu sobre O Doente Inglês, que recebeu o prémio em 1992, quando foi originalmente publicado. A editora Relógio d’Água aproveitou a oportunidade para lançar uma nova edição do romance em português. Esta saiu cerca de meio ano depois da atribuição do Man Booker, em março deste ano, com tradução de Ana Luísa Faria.

E qual é a história deste Doente Inglês, tão adorado pelos leitores de língua inglesa? O romance passa-se no final da Segunda Guerra Mundial, em Itália. Numa vila transformada em hospital e posteriormente abandonada, um aviador inglês com o corpo totalmente queimado e sem memória de quem é e uma jovem enfermeira canadiana que escolheu ficar ao seu lado quando todo o pessoal médico partiu, tentam sobreviver. A este par pouco provável juntam-se depois um ladrão sem polegares chamado Caravaggio e um sikh ao serviço do exército britânico que trabalha na desativação de minas. À medida que a história avança, as personagens, isoladas numa vila decrépita que parece ter sido esquecida pelo mundo, vão revelando um pouco de si — os seus segredos mais íntimos, as suas histórias mais tristes, e como acabaram envolvidos numa guerra que lhes é alheia e num país estrangeiro.

“As Moscas de Outono”, de Irène Nemirovsky (Cavalo de Ferro)

É quase impossível separar a vida da ucraniana Irène Nemirovsky da sua obra. Nascida em 1903, em Kiev, no seio de uma família abastada, Nemirovsky assistiu a alguns dos acontecimentos mais marcantes do século XX — à Revolução Russa e ao fim do czarismo, à Primeira Guerra Mundial e à Segunda, que ditou o fim precoce da sua carreira e a arrastou para um campo de concentração nazi, onde morreu de tifo, com apenas 39 anos. Estes acontecimentos traumáticos marcaram profundamente os seus romances, nomeadamente Suite Française, obra maior publicada postumamente, em 2004, e motivo da redescoberta tardia da autora, famosa antes da guerra e esquecida depois dela.

Com vários dos seus romances disponíveis no mercado português, faltava publicar As Moscas de Outono, escrito no final dos anos 20. Este conta a história trágica de uma aristocrática família ucraniana que, tal como a da escritora, teve de fugir do seu país durante a Revolução. Os acontecimentos são narrados da perspetiva de uma velha serva, Tatiana Ivanovna, que acompanha os Karine até à sua derradeira morada — deles e dela — em Paris. Testemunho belo e comovente das consequências da guerra, As Moscas de Outono mostra um lado diferente da Revolução Russa, humanizando um episódio que, para muitos, não passa de um mero apontamento histórico. Recorda-nos também que, apesar de todas as dificuldades, há uma coisa que pesa mais do que todas as outras — as saudades da casa que deixámos para trás.

“Good Will Come From the Sea”, de Christos Ikonomou (Archipelago Books)

Nome importante da literatura grega atual, Christos Ikonomou é um completo desconhecido em Portugal. Isso deve-se ao facto de a sua obra não se encontrar traduzida para português, mas também à pouca ou nenhuma divulgação que se faz por cá dos autores gregos contemporâneos. Este vazio faz com que certas maravilhas literárias se percam “in translation”, como é o caso de Good Will Come From the Sea, o terceiro livro de Ikonomou que saiu recentemente em inglês, pela editora norte-americana Archipelago Books (também responsável pela publicação do seu livro anterior, o badalado Something Will Happen, You’ll See).

Christo Ikonomou é um escritor de contos, e são contos que enchem este Good Will Come From the Sea. No entanto — e tal como nos livros que publicou antes — existe um fio condutor que parece ligá-los a todos. São quatro ao todo, e todos falam de uma realidade profundamente marcada pela crise económica da Grécia, na qual um grupo de atenienses se vê obrigado a migrar para uma ilha à procura de trabalho e de melhores condições de vida. Só que, ao contrário do que esperavam, acabam por encontrar na ilha, em forma de algemas, os mesmos problemas do continente. Perdidos dentro deles próprios e uns dos outros, falham no que devia ser mais essencial — a procura de uma razão capaz de os manter juntos.

Livro violento, Good Will Come From the Sea é, ao mesmo tempo, profundamente belo. Talvez porque, no meio da escuridão, há sempre algo que permanece — a esperança sem a qual não é possível continuar a respirar.

Christos Ikonomou: “Os escritores de ficção curta não têm segundas oportunidades, têm de fazer tudo bem à primeira tentativa”

Susana Romana

“Sabrina”, de Nick Drnaso (Porto Editora)

Sabrina fez história pouco depois de ser editado: tornou-se na primeira novela gráfica de sempre a ser nomeada para o prestigiado prémio literário Man Booker Prize. Foi considerado um dos romances do ano de 2018 por várias publicações, sendo o modelo banda desenhada pouco mais que um pormenor – apesar de permitir uma certa imersão que lembra o cinema. Não é a habilidade estética, bastante simples, que atrai: é a história do assassinato da personagem título e do modo como isso afeta aqueles em seu redor. Em Abril de 2019 chegou a edição portuguesa, com a chancela da Porto Editora.

“Miga, Esquece Lá Isto: Como Transformar Problemas em Risadas de Amor-Próprio”, de Clara Não (Ideias de Ler)

Clara Não tem cerca quase 40 mil seguidores no Instagram – e eu desconfio que estavam todos na fila para autógrafos na última edição da Feira do Livro de Lisboa. A ilustradora do Porto quer mudar o mundo, um texto ilustrado de cada vez. Com humor e insubordinação, faz o papel da amiga que chega com uma grade de minis e um camião cisterna de verdades. O feminismo é provavelmente o tema mais recorrente e faz pelo nosso ego aquilo que nenhum Gustavo Santos pode sequer ousar tentar.

Clara Não. Um desgosto de amor, cinco cadernos com desenhos, e um livro depois

“Miracle Workers”, de Simon Rich (Back Bay Books)

Admito já aqui uma pequena batotice, antes que apareça o VAR: originalmente, este livro é já das calendas de 2012, altura em que foi publicado com o nome What In God’s Name. Mas este ano a HBO estreou uma série baseada no romance humorístico, chamou-lhe Miracle Workers e a reedição foi atrás, com direito àquele aborrecimento vagamente pindérico de colocar a cara dos actores e na capa.

O autor, Simon Rich, tem 35 anos mas uma já consistente carreira, com dois romances e três colecções de contos – além de ter trabalhado na Pixar e de ter sido um dos guionistas mais novos de sempre do mítico Saturday Night Live. Miracle Workers conta o dia-a-dia do anjo Craig num Céu particularmente burocrático e não particularmente bem gerido (lembra alguma coisa?). O chefe, Deus, está desanimado e passa os dias a jogar golfe em vez de resolver a guerra e a fome no mundo – até que resolve reformar-se, tendo para isso de destruir a Terra. A não ser que Craig o consiga convencer do contrário, claro. A série tem Daniel Radcliffe no papel do anjo Craig e Steve Buscemi como Deus – e tem os seus sete episódios disponíveis por cá na plataforma da HBO.

Vasco Rosa

“Verde. História de uma cor”, de Michel Pastoureau (Orfeu Negro)

Continuando o seu inquérito erudito à presença social, cultural e simbólica das cores na civilização ocidental, da Antiguidade grega até aos nossos dias, Pastoureau lança-se ao verde em capítulos como “Uma cor incerta”, “Uma cor cortês”, “Uma cor perigosa”, “Uma cor secundária”, “Uma cor calmante”, fazendo corresponder a cada um destes adjetivos um período histórico, plurissecular. Interessantíssimo!

“Tóquio: Diário, 1946”, de Franco Nogueira (Tinta-da-China)

Depoimento extraordinário (o embaixador tinha 25 anos apenas e estava na sua primeira missão, na capital japonesa quatro meses depois da rendição) conservado inédito até agora, mas com entrada direta para o melhor da literatura portuguesa sobre aquele país. “Vagueio pelo desconhecido, sou todo olhos deslumbrados para a realidade nova que me cerca” (p. 18). “O Japão vai saindo das cinzas” (p. 111). Não estará na coleção Literatura de Viagens — que claramente lhe daria outra posição editorial — por implicância ideológica de Carlos Vaz Marques?

“Ficções da Memória”, de Alberto da Costa e Silva (Imprensa Nacional)

O nome do autor é já firme garantia de grande interesse para quem queira saber mais sobre o Brasil — esse fascinante e inquietante enigma —, que o longevo poeta, historiador e diplomata narra nestas Memórias, aglutinação de dois livros, Espelho do Príncipe e Invenção do Desenho (em que se refere amiúde a sua vida em Lisboa enquanto embaixador). Uma delícia de leitura que serve de antídoto ao tóxico estado das coisas actual, e mostra que aquele país “também não é isto”.

“Moléstias, embustes e pontinhos amantes. Escrita quotidiana em Portugal entre os séculos XVI e XIX”, de Rita Marquilhas e outro (Arranha-Céus/Abysmo)

Trabalho originalíssimo, até na sua apresentação gráfica arriscada mas divertida (passe o termo fofinho), que coloca a epistolografia no epicentro da vida social, com personagens socialmente as mais díspares confrontadas com inquisitores e polícias de todo o tipo, ou discretíssimas combinações de quotidiano privado — que linguistas agora estudam na sua “oralidade retórica”, à qual o ilustrador Nuno Saraiva confere colorido e humor bastantes. Toda a novidade de um admirável mundo velho, na idade do sms e do twitter.

“Tipografia Damasceno 50 anos”, de Joana Monteiro e outros (Editora dos Tipos)

De como uma antiga tipografia da Baixa de Coimbra se transformou num dinâmico laboratório de artes gráficas artesanais que serve de guia e vanguarda ao experimentalismo atual, com a fortíssima expansão artística das edições de tiragem limitada. “Memórias tipográficas: das materialidades da escrita à materialidade dos afetos” é o título do ensaio histórico. Na sua reconstituição, o portefólio documental conta uma encantadora ilustração de vida urbana, umas vezes pública ou política, e outras privada, quase anónima.