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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

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Filipe Raposo: "Não poder tocar piano seria como não poder falar, ter um braço e não o poder usar"

Tem 39 anos e um novo disco-livro a editar pela Tinta da China. Em entrevista ao Observador, fala de cinema, da ligação a Sérgio Godinho e de inquietação: "Sem curiosidade acho impossível viver".

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Foram vinte e duas as vezes que Filipe Raposo disse a palavra “curiosidade” durante esta entrevista. Foi a palavra que o pianista, compositor, arranjador e orquestrador nascido em Lisboa mais utilizou na conversa com o Observador e serve tanto de defesa de um estilo de vida — “sem curiosidade acho impossível viver” — como de síntese de um percurso de década e meia de inquietação e desassossego, que terá novo desenvolvimento na próxima sexta-feira, 29 de março, com a edição em formato físico de um novo disco: ØCRE.

A capa do novo disco de Filipe Raposo, que o pianista apresentará ao vivo na próxima sexta-feira, 29 de março, no Teatro São Luiz, em Lisboa

Tudo começou há quase três décadas, quando a mãe, ao vê-lo “sempre de volta do teclado” lá de casa, perguntou-lhe se não queria ter umas aulas de piano. Tudo acelerou a partir de 2004, ano em que Filipe Raposo começou a trabalhar como pianista residente da Cinemateca Portuguesa (fazendo o acompanhamento musical de filmes mudos) e conheceu e tocou pela primeira vez com José Mário Branco. A partir daí, nunca mais parou.

Esta é uma síntese possível do percurso de um pianista inquieto: estudou no Conservatório Nacional de Lisboa (sobre o qual fala criticamente) e na Escola Superior de Música de Lisboa e fez um mestrado em performance de piano jazz no Royal College of Music de Estocolmo; começou por ser chamado para uma digressão de José Mário Branco há 15 anos e a partir daí já tocou com Sérgio Godinho (com quem ainda colabora regularmente), Fausto Bordalo Dias, Vitorino, Janita Salomé, Camané, Amélia Muge, Maria João ou Ricardo Ribeiro; trabalhou como orquestrador, tanto com a Orquestra Sinfónica Portuguesa e Orquestra Metropolitana de Lisboa quanto com a L.A. Big Band e a KMH Jazz Orchestra; já gravou discos de várias formas e feitios, a solo e em grupo, em estúdio e ao vivo; e compôs bandas sonoras para cinema (nomeadamente para os filmes “O Gelo” e “Refrigerantes e Canções de Amor”) e teatro, para peças como “Quem tem medo de Virginia Woolf” e “Banda Sonora”.

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O seu novo álbum, ØCRE, é o quinto da sua discografia e tem várias peculiaridades: é um regresso do músico português aos discos a solo de piano (convidou apenas a cantora Rita Maria para um tema) e é o início de uma trilogia discográfica dedicada às cores. Este primeiro volume será publicado pela editora livreira Tinta da China e virá acompanhado por um livro. É uma espécie de “ensaio sonoro”, assume nesta conversa. Será apresentado pela primeira vez ao vivo no mesmo dia em que é editado em formato físico (sexta-feira, 29 de março), em concerto no Teatro São Luiz, enquadrado no Festival de Jazz de Lisboa. Já pode, porém, ser ouvido em formato digital, na plataforma Spotify.

A conversa com o Observador estendeu-se além do seu interesse recente pela história e simbologia das cores (resultante da sua paixão pelo cinema e fotografia): Filipe Raposo explicou o que o fascina na mistura de música erudita com música tradicional e jazz improvisado, falou da sua luta constante contra a formatação e o academismo e sublinhou que não pode falar de referências como Bach ou Keith Jarrett sem falar de referências como Picasso, Pessoa, Saramago ou Kubrick.

Avesso à especialização e ao afunilamento da curiosidade — numa disciplina artística ou em outra coisa qualquer –, Filipe Raposo contou como é dar aulas de música e como tenta estimular nos alunos a reflexão crítica em detrimento da aprendizagem por imitação ou eco. Para o músico, os índices gerais de curiosidade andam pelas ruas da amargura (“através do que passa na televisão, percebemos que a curiosidade está na vida alheia”), mas em cada geração há elementos que a vão tendo e “vão renovando” assim a humanidade, porque ela é “o motor” do seu desenvolvimento e dos seus avanços. Só não lhe tirem o piano: “Morreria. Não poder tocar seria como ter um braço e ter esse braço paralisado com uma placa, ou simplesmente não o poder usar. É uma voz e não tocar é não poder falar. Acho que morreria”, concluiu.

“Consigo imaginar cores quando estou a tocar”

O que tem feito estes dias, entre acabar o disco e começar a preparar a apresentação no Teatro São Luiz?
O processo é muito intenso, sempre. A partir do momento em que há qualquer coisa na nossa mente — nossa, dos criadores — que aponta para a data de estreia, pode ser até um ano antes, há uma bola de neve que vai crescendo até deixarmos de ter controlo. Essa bola de neve domina todo o processo criativo. Para mim funciona assim, a partir do momento em que começo uma fase de investigação artística até ao momento da gravação há um sem fim de pequenas etapas que têm de acontecer.

Há um momento chave: o dia da gravação. E há o pós-gravação, que é uma espécie de parto. Depois de toda a intensidade vem uma espécie de ressaca, vem libertarmo-nos de uma coisa que é imaterial e que se torna material no dia da gravação, seja um disco, um filme, o que for. Há uma espécie de corte de cordão umbilical, de repente preciso de uns dias para me afastar da obra. Gravei este disco em janeiro e estive aí um mês e meio afastado do som, já depois da fase de misturas. Há um outro lado que emerge quando me afasto do som: questões relacionadas com a promoção do disco, com a editora, com entrevistas. Há uma espécie de bipolaridade criativa: por um lado, sinto uma necessidade intrínseca de estar ligado, por outro tenho necessidade de me afastar um tempo antes de regressar à obra.

[“Blombo’s Cave”, um dos temas do novo disco de Filipe Raposo:]

Quem vai assegurar a edição do disco, já agora?
Hoje em dia os discos podem ter diferentes existências: a digital e a física. Digitalmente vai ser editado pela Lugre Records, que é a minha distribuidora digital. A distribuição física vai ser feita curiosamente pela [editora livreira] Tinta da China, o que é uma novidade. Também acontece porque o disco vai sair acompanhado por um livro, trata-se de um ensaio sonoro. Com os discos habitualmente não se fala muito do que está por detrás, aqui há uma pré-conceção e uma investigação artística à volta deste tema do Ocre, para o início de uma série de trilogia das cores.

Já lá iremos. Antes disso, porém, pergunto-lhe: qual é a parte mais extenuante de fazer um disco? Extenuante para si, pelo menos.
Há várias etapas e cada etapa tem uma fase. A primeira parte, chamemos-lhe fase A, é de escrita, de composição. Quando estamos a compor há um momento crítico em que nos aproximamos da data de gravação e misturas, que é outra fase — a fase B. A fase final, ou fase C, é a fase da edição. Quando as datas de gravação começam a apertar há necessidade de chegar a um alinhamento final. Acontece-me muito ter repertório a mais, tenho de escolher o que é que faz sentido e ‘editar’. Isso também acontece com os filmes, às vezes os realizadores têm 50 horas de filme.

"A experiência vai-nos ensinando que o melhor resultado fica num universo utópico. Vou identificar sempre imperfeições técnicas, isso nunca muda, mas a vida humana é feita também de imperfeições — e a obra de arte precisa também da imperfeição.

É preciso fazer a montagem.
É isso, sim. Essa fase para mim é um bocadinho angustiante: fechar o alinhamento e a dramaturgia do disco. O dia da gravação também é intenso, chego ao final muito extenuado. Há um foco muito grande porque parece que cada detalhe conta, estamos a gravar uma coisa que vai ficar, há uma responsabilidade grande de procurar o melhor resultado. Ainda assim, a experiência vai-nos ensinando que o melhor resultado fica num universo utópico, que é preciso saber aceitar o estado em que estamos. Vou identificar sempre imperfeições técnicas, isso nunca muda, mas a vida humana é feita também de imperfeições — e a obra de arte precisa também da imperfeição.

Este é o primeiro volume de uma trilogia. Quando é que teve esta ideia de fazer uma investigação e um conjunto de três álbuns dedicados a três cores?
Tenho uma ligação muito forte ao universo cinematográfico, não só pela ligação que tenho à Cinemateca Portuguesa como pianista residente mas também por ter uma paixão pelo cinema e pela fotografia, duas artes que estão intimamente ligadas. Há uma coisa que me fascina muito: o tratamento de cor dos filmes. Conseguimos lembrar-nos de um filme através de uma palete de cores que é decidida pela direção de fotografia — basta pensarmos nos filmes do Wes Anderson, por exemplo. Qual é o efeito psicológico que uma cor tem em nós quando vemos uma determinada obra de arte, por exemplo uma pintura?

Comecei a ler dois livros muito curiosos, da série “A História de uma Cor”, da [editora] Orfeu Negro. Um dos volumes é sobre o preto, o outro é sobre o azul. Fui descobrindo uma série de curiosidades incríveis, uma delas prende-se precisamente com as três cores que fazem parte desta trilogia: vermelho, preto e branco. Estas três cores estão presentes desde a Antiguidade Clássica, na vida social mas também nas obras de arte. Há cores que num contexto podem provocar-nos repulsa — por exemplo, quando as vemos em alimentos — e que noutros contextos atraem-nos. Um cogumelo vermelho, por exemplo, instintivamente e por uma memória residual presente há algumas centenas de milhares de anos, não nos atrai, sabemos que é melhor não comer. No entanto, uma mulher com os lábios pintados de vermelho, por exemplo, evoca imediatamente um símbolo sexual muito grande. A mesma cor vai ganhando diferentes significados e isso despertou em mim uma curiosidade sociológica e antropológica sobre a cor, sobre a forma como lemos os códigos da cor, sobre como esses códigos chegaram aos nossos dias.

Como é que isso depois se traduz em música?
A questão em parte era essa: como é que se reproduziria musicalmente? Lembrei-me que a harmonia em música está muito associada à cor, há pessoas para quem um determinado acorde está associado a uma cor. Tenho também um bocadinho essa relação com a cor e com a harmonia: consigo imaginar cores quando estou a tocar. Aquilo que quis fazer aqui foi construir uma narrativa que neste caso será tripartida, com cada disco inspirado numa cor. Para a cor vermelha designei em específico o ocre, porque é uma variação do vermelho que já tem um significado simbólico muito grande. O ocre é o óxido de ferro, é a cor mais presente à face da Terra  e está presente desde a primeira representação de arte na história da humanidade: as primeiras + pinturas rupestres foram feitas com ocre. Achei que era uma cor perfeita para servir de início a esta trilogia, por estar associada ao nascimento da arte.

"A música tradicional é um património imaterial imenso que está presente em todas as culturas e suporta a erudição, o gesto a que se segue essa primeira fase. Na minha perspetiva, não existe erudição sem compreendermos a cultura e matriz popular"

Consegue associar as cores que escolheu a artistas ou obras que tenha como referências?
Ainda não tinha pensado nisso, mas consigo: o branco, que inspirará o último disco da trilogia, para mim é uma sonoridade escandinava. Há um minimalismo inerente à cor branca, tal como também há na cor preta, que parece ser oposta mas também tem aspetos de confluência com o branco. O preto irá dar origem a um disco que se chamará Obsidiano. O nome é uma rocha vulcânica que tinha um extremo valor no paleolítico, porque algumas pedras que eram usadas para cortar eram feitas deste material. Obsidiano é uma rocha brilhante e de material resistente, pelo que associaria a cor e o nome a Bach, cuja obra é muito resistente e consistente. É considerado o pai da música ocidental, há um antes de Bach e um depois de Bach. Toda a história da música ocidental europeia parte daquela obra e muito daquilo que sou devo a Bach, também.

O ocre, por sua vez, é um pigmento que está presente na terra, que para mim significa simbolicamente a tradição. Quando penso na tradição, penso por exemplo na tradição musical mas também na literária. Recordo os primeiros contadores de histórias, as primeiras vezes que se contaram histórias através do som e da música. A música tradicional é isso mesmo, é um património imaterial imenso que está presente em todas as culturas e suporta a erudição, o gesto a que se segue essa primeira fase. Na minha perspetiva, não existe erudição sem compreendermos a cultura e matriz popular.

“A curiosidade é o motor para que a humanidade avance”

Trabalhar e recriar melodias tradicionais é algo que marca muito este disco — mas já lá iremos. Numa entrevista antiga, afirmou que os discos “são a síntese de um período da história da vida de um compositor/músico”. Também já disse: “As minhas composições também são narrativas no sentido em que contam as minhas experiências e histórias. Acabam por ser um acompanhamento das minhas imagens poéticas”. Se é assim, o que é que este disco e o início desta trilogia refletem do momento em que está, das experiências recentes pelas quais passou como músico e como pessoa?
Costumo dar o exemplo do Jorge Luis Borges, que a um um jornalista que lhe perguntou “quem é Jorge Luis Borges?” respondeu — de forma incrível — “Jorge Luis Borges são todos os lugares que visitei, todos os livros que li, todas as pessoas que amei”. Costumo juntar a isto outra coisa: além de ser tudo aquilo, serei também todos os filmes que vi e  todas as melodias que escutei.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

E quanto ao que reflete de si?
Chego a este momento com um pé num sítio que me é muito querido. Estou a trabalhar com o artista visual António Jorge Gonçalves sobre o nascimento da arte, sobre as primeiras gravuras e pinturas rupestres. Obviamente, trouxe muito dessa investigação para este trabalho. A cor era um dos elementos mais fortes dessas gravuras. Além disso, um dos primeiros temas do disco chama-se “No Princípio Era o Fogo” [é aliás o primeiro tema]. O início do Evangelho Segundo São João diz algo como: “No Princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus. Nada das coisas que foram criadas [o seriam] sem ele”.  Decidi trocar Verbo pelo fogo, que é a primeira tecnologia de ponta que nos afastou da condição animal. A tribo que possuía o fogo estava, de alguma forma, à frente de todas as outras, porque podia cozinhar, proteger-se das feras, derreter metais e cozinhar o barro.

“Blombo’s Cave” [nome da segunda  faixa do disco], por exemplo, é um sítio arqueológico na África do Sul, perto da Cidade do Cabo, onde foram descobertos vestígios de uma oficina de fabrico de ocre. Aquela oficina é extremamente simbólica: conseguimos perceber a importância da tinta daquele pigmento, que era usado em rituais diários, pensava-se que tinha funções curativas e que protegia a pele contra insetos. Curiosamente, foi descoberto em várias antas cadáveres com uma presença muito grande de ocre. O ocre era uma espécie de invólucro, uma espécie de sangue exterior e protetor. Há aqui uma série de símbolos que têm a ver com as leituras que ando a fazer nos últimos dois anos. De repente tudo se conjuga e ganho um conceito. Este momento é o início de uma síntese musical de um período de investigações e leituras.

"Estamos embebidos de academismo. Do primeiro momento em que nos sentam numa cadeira na escola primária ou no jardim de infância até ao ensino superior, há obviamente uma formatação. Enquanto compositor e artista, tenho uma luta constante comigo para me libertar disso."

Num texto promocional sobre o disco, usa algumas expressões curiosas relativamente ao processo de o fazer, nomeadamente “organização do caos pré-composicional” e “destruição da suposta ordem esperada”. Que suposta ordem esperada é esta e porquê destruí-la? O que é que isto significa, musicalmente?
Diria que a “ordem esperada” é o academismo. Estamos embebidos de academismo. Do primeiro momento em que nos sentam numa cadeira na escola primária ou no jardim de infância até ao ensino superior, há obviamente uma formatação. Enquanto compositor e artista, tenho uma luta constante comigo para me libertar disso. Este discurso não é contra o academismo porque acho que ele é deveras importante, mas há um momento em que tem de haver um corte com o academismo, uma emancipação da condição de estudante para a condição de criador.

O Arnold Schoenberg, que é um dos autores mais importantes do início do século XX, fez uma coisa incrível: quebrou mil anos de tradição modal tonal na história da música ocidental. Isto implica uma destruição para construir novamente — e ele quebrou a tradição criando um sistema de música atonal com regras próprias.

Destruir o esperado para dar origem a uma coisa nova, é esse o objetivo?
Muitas vezes quando estou a criar uma melodia parece que estou a ouvir algo que me sugere que deveria ir por aquele sentido. Às vezes tenho de contrariar esse sentido — e é por isso que digo que às vezes é preciso destruir a ordem esperada. Também é preciso organizar o caos. O início da criação é como despejar uma caixa com 20 mil peças LEGO na mesa, são tantas as variáveis que uma obra pode ter — se for musical, pode variar a escolha de notas, alturas, duração das notas, timbre e textura das notas, a forma de uma peça….

Há tantas variáveis que parece que inicialmente há uma espécie de caos antes de se construir alguma coisa. Porém, acontece-me construir tudo para no final olhar e pensar: isto está demasiado organizado, é preciso voltar a destruir para construir. É um bocadinho a história do Homo Sapiens, a destruição e renovação construtiva está presente em várias histórias universais. Nas epopeias está muito presente. Na Ilídia, por exemplo, em Gilgamesh ou até em “Os Lusíadas” há sempre um momento de destruição e de criação por parte dos deuses, essenciais na nossa cultura judaico-cristã. Segundo essa cultura há dilúvios que acontecem, por exemplo, por arrependimento de criação. Ora, se os deuses têm liberdade para fazer isso, nós também temos [risos].

Este é um regresso aos álbuns ancorados no piano a solo, depois de um disco gravado em quarteto e de um disco gravado [ao vivo] com a cantora Rita Maria. Quão diferente é para si fazer um álbum a solo, musicalmente e pessoalmente?
O trabalho coletivo é sempre um trabalho de partilhas maiores, há uma partilha do processo criativo. Isto apesar de haver sempre uma parte de composição que é muito individual quando edito um disco em meu nome, aí por norma levo o material já muito organizado para as sessões de ensaio [com os músicos que colaboram e tocam no disco]. Há também uma base de trabalho individual, depois é que há um processo muito mais partilhado — e com isso as angústias também são partilhadas. Quando está mais gente acaba por ser um bocadinho mais leve porque cada um leva um fardo, que ainda assim não é semelhante porque quem assina o disco acaba por ter mais destaque e a obra acaba por ser sua.

Na parceria que tenho com a Rita Maria, que deu origem ao último disco que gravei, há um caminhar lado a lado, para o bem e para o mal. Há um apoio muito grande lado a lado.

Quando se faz um disco a solo, haverá uma necessidade de diplomacia mais interna, do criador com o criador, em vez de uma diplomacia externa, de um autor perante quem ele convidou para o disco?
[Risos] Às vezes é tudo um pouco bipolar, tanto podemos achar que o caminho é aquele, que as coisas estão a andar bem e é mesmo por ali, como de repente pode surgir uma dúvida: “tens a certeza?” [risos]. Esse discurso interno às vezes pode ser bastante crítico, pode ser difícil, porque parece que a responsabilidade… Eu não mostro logo o trabalho aos meus pares, normalmente vou deixando a obra crescer até que consulto os meus pares mais próximos.

Quem são? E quem foram, no caso deste disco?
Lembro-me de para este disco ter uma sessão com o João Godinho, que é um compositor, e com a Rita Maria — isto antes de ir para estúdio. De repente senti: “Este é o momento de vos mostrar”. Lembro-me de mostrar ao Sérgio Godinho, também, que tem um texto no livro que acompanha este disco. Quando acho que a matéria está pronta para ser mostrada, mostro um bocadinho, vou mostrando.

"Como é que transformo a minha música na minha música, em algo que tenha uma assinatura pessoal? É precisamente sabendo fazer somas: as melodias que ouvimos com os livros todos que lemos, por exemplo, porque não é só uma questão de referências musicais. Falava do Bach e do Keith Jarrett mas também tinha de falar do Stanley Kubrick, do Picasso, do Saramago ou do Pessoa."

Falava há pouco de Bach. Este é mais um disco a solo e mais uma revisitação de Bach, depois de o ter feito por exemplo no A Hundred Silent Ways. Bach foi e mantém-se uma figura tutelar para si? E teve outras?
Bach é como se fosse o início da fonte, até porque não era só compositor, era um performer incrível e um improvisador nato. Não falamos da linguagem de improvisação que conhecemos hoje em dia no mundo do jazz, mas era um grande improvisador. Reunia em si aquilo que considero existir no músico que sempre desejei ser: alguém que dominasse a técnica da escrita, que fosse tecnicamente exímio e que comunicasse através do seu instrumento. É curioso porque obviamente ao longo da história existe um sem número de grandes músicos que seguiram estes exemplos e passaram a ser figuras de referência para outros.

Há também uma figura no universo da música improvisada que acho importantíssima, o Keith Jarrett. É um pianista tecnicamente irrepreensível e tem gravações dedicadas só a Bach, também, é alguém que soube apropriar-se daquilo que é a técnica da música erudita e trazê-la para a sua própria sonoridade, para a sua casa. É isto que fui percebendo que queria fazer: como é que transformo a minha música na minha música, em algo que tenha uma assinatura pessoal? É precisamente sabendo fazer essas somas: as melodias que ouvimos com os livros todos que lemos, por exemplo, porque não é só uma questão de referências musicais. Falava do Keith Jarrett, podia falar do Brad Mehldau, do Mário Laginha, de figuras da música que para mim são essenciais — mas também tinha de falar do Stanley Kubrick, do Pablo Picasso, do José Saramago ou do Fernando Pessoa. A vivência diária pode ser usada na direção do que queremos fazer.

Essa multidisciplinaridade, também musical, ouve-se aqui com uma mistura de várias linguagens que tem explorado nos últimos anos: as melodias tradicionais, a música erudita, o jazz e a improvisação. Esse interesse por misturar linguagens terá alguma coisa a ver com o ambiente que encontrou quando estudou no Conservatório, onde estavam alunos de música mas também de teatro, de dança, de outras disciplinas artísticas?
Isso é quase uma pergunta de psicoterapia [risos]. Já pensei sobre isso. Porque é que gosto tanto de trabalhar com vozes, por exemplo? Gosto porque aos 11 ou 12 anos tocava piano numa igreja a acompanhar vozes. Há uma raiz que está lá. Porque é que gosto muito de música clássica ou erudita? Porque a partir dos 12, 13 anos comecei a estudar repertório clássico. Porque é que gosto tanto de jazz? Porque aos 14, 15 anos vi um filme chamado “Round Midnight”, sobre a vida de uma lenda do saxofone [Lester Young], que me empurrou para o universo da música improvisada — e a partir dali comecei a escutar e a querer aprender. Porque é que gosto de música tradicional? Porque a determinada altura da minha vida conheci pessoas que representam esse legado da música tradicional: o José Mário Branco, que é muito influenciado por ela, o Fausto [Bordalo Dias], o Sérgio Godinho, a Amélia Muge, o Vitorino, por aí fora.

Na realidade todas as minhas experiências confluíram para aquilo que é a minha estética. Acho que esse equilíbrio existente no som que quero transmitir é uma gestão interna das minhas influências todas.

"Quando as coisas de que gostamos muito se tornam rotinas, perdem um certo encanto. Acho que a curiosidade é o motor para que a humanidade avance para sairmos da nossa aldeia, da nossa tribo, da nossa zona de conforto, para irmos explorar territórios que nos são desconhecidos. Esses territórios desconhecidos também são artísticos. É preciso ter coragem."

Ainda assim, sendo um reflexo desse passado, não haverá uma motivação artística consciente da sua parte, uma perceção de que só não aderindo totalmente a uma corrente musical ou estética poderá criar uma identidade própria, demarcada?
Vou colocar as coisas assim: se comesse arroz doce com canela todos os dias ia passar a odiar arroz doce com canela. O que quero dizer com isto é: quando as coisas de que gostamos muito se tornam rotinas, perdem um certo encanto. Penso muito no homem e na mulher renascentistas: o que são essas figuras? Têm um saber enciclopédico…

Lembro-me que um dos meus passatempos quando era miúdo era ter uma enciclopédia na mão, mesmo antes de saber ler. Gostava de ver todo o mundo que aqueles livros continham. Há uma condição essencial aqui: a curiosidade. Acho que a curiosidade é o motor para que a humanidade avance — e tem avançado –, para sairmos da nossa aldeia, da nossa tribo, da nossa zona de conforto, para irmos explorar territórios que nos são desconhecidos. Esses territórios desconhecidos também são artísticos. É preciso ter coragem. Claro que é muito mais fácil estar no meu território, na música clássica ou no jazz puro e duro, seguir o cânone. É muito mais difícil esta atitude que tenho perante a música e a arte: querer estar rodeado de todas as coisas que amo. São essas coisas que me dão mundo e tento retribuir de alguma forma com a minha música por aquilo que me faz ser humano e me move enquanto ser humano. Há uma acumulação de experiências e cruzamentos que é essencial. Alimentar a curiosidade é mesmo uma das maiores urgências atuais. Há um livro incrível do Alberto Manguel que se chama “Uma história da curiosidade”, é uma espécie de desconstrução da mente do Homo Sapiens.

Alberto Manguel: “Enquanto sociedade, temos medo da curiosidade”

Estamos hoje mais ou menos curiosos?
Acho que esta fase que estamos a viver é muito triste. Conseguimos perceber onde está a curiosidade através daquilo que se passa na televisão, percebemos que a curiosidade passou a ser sobre a vida alheia. Por se ter medo de arriscar ganhou-se vontade de ver como é que outras pessoas o fazem. Parece que fascina-nos mais ver as tragédias dos outros do que viver a nossa própria tragédia, no sentido grego do termo. Os gregos acreditavam que a própria existência acarretava uma tragédia de existencialismo, do nascimento e da morte. Ter consciência disto é de extrema importância porque vai-nos levar também a querer viver, a sairmos do sofá. Os programas de televisão atuais são programas de conforto absoluto.

“A portugalidade soa-me sempre a uma coisa bafienta”

Também é professor. Sentiu cedo uma predisposição para ensinar, para dar aulas e partilhar conhecimento, ou não foi inato?
Acho que aqui há uma certa carga de responsabilidade de mestres que também tive, que tinham imenso prazer em transmitir conhecimento. Todos tivemos professores de referência, que foram decisivos na escolha dos nossos percursos. Alguns professores meus tinham uma paixão grande por ensinar e foram decisivos. Para mim o ensino é uma partilha bilateral porque também aprendo muito com os alunos, não sou detentor da verdade. As reflexões que surgem a partir de uma aula são sempre bilaterais, fico a pensar nas dúvidas, levo-as para casa. Os meus alunos, a maior parte dos quais já são músicos e meus pares, ajudam-me a refletir sobre o que é a arte. Aqui não falo só de música, é impossível fazê-lo porque o cinema está sempre presente, a literatura está sempre presente, a antropologia está sempre presente. Ensinar é sobretudo a partilha do momento.

"Era bom que os professores tivessem coragem  de estimular ou incentivar a destruição do que os programas indicam. Há um exame e é preciso chegar lá e saber aquilo? Sim, mas mais do que isso é importante estimular a reflexão crítica, que é condição essencial para que haja avanços na sociedade."

O que é que tenta evitar transmitir, enquanto professor?
O ensino, mais do que privilegiar a imitação pura e dura, deveria privilegiar a destruição em algumas fases do processo. Há um exercício que costumo fazer: ensino técnicas de composição e temos de explorar escritas de diferentes períodos históricos, de alguns dos compositores mais importantes. Quando estamos a aprender escrita ao estilo de Bach, o objetivo final do exercício para mim não é escrever o coral perfeito, essa é a parte fácil. A parte difícil é pegarmos nos cânones e destruí-los com autoridade, subvertê-los com autoridade, como Schoenberg fez. Convém conhecer a técnica para que no processo de destruição consigamos reorganizar o pensamento na fase de reconstrução.

Era bom que os professores tivessem essa coragem também, de estimular ou incentivar a destruição do que os programas indicam. Há um exame e é preciso chegar lá e saber aquilo? Sim, mas mais do que isso é importante, pelo menos no ensino artístico — mas se calhar em matemática também é possível descobrir outros caminhos, em história ou nas ciências [sociais] também é possível promover novas perspetivas — é importante estimular a reflexão crítica, que é condição essencial para que haja avanços na sociedade. Se ela não existir, permanecemos num período de estagnação, de marasmo intelectual.

E a qualidade média dos alunos que tem tido — e a curiosidade que têm — tem aumentado, diminuído ou tem-se mantido constante nos últimos anos?
Dou aulas à fase de ensino artístico dos últimos três anos de conservatório. Leciono uma disciplina que se chama Análises e Técnicas de Composição. Quem a frequenta são alunos que já estão na reta do final do estudo artístico secundário, que estão quase a entrar no Ensino Superior. A grande maioria, diria que se calhar 80%, irá seguir música, portanto são pessoas que sabem o que querem e têm uma curiosidade grande. Revejo-me neles, em quem era quando tinha a idade deles. Não leciono assim há tanto tempo, não tenho 20 anos de história de ensino, mas acho que o bom disto é que a humanidade necessita de se renovar e vai havendo sempre, geração após geração, elementos com curiosidade.

Já referiu por mais de uma vez o seu interesse pelo cinema. Já equacionou realizar um filme?
Comecei a fazer a realização dos meus teasers, dos meus videoclips [risos].

Mudando de assunto, o que é que lhe interessou mais nas melodias tradicionais — transmontanas, açoreana e árabe — em que alguns dos temas deste disco se baseiam?
Para já não circunscrevi essas melodias [escolhidas] ao território português porque “a portugalidade” soa-me sempre a uma coisa bafienta. O que é uma cultura? Não existe na realidade nacionalismo, o nacionalismo é construído a partir de muitos nacionalismos. Quando escolho uma música tradicional transmontana, como a “Tirioni” ou a “A Filha do Imperador de Roma”… a última é um romance de tradição oral, foi recolhido no século XX e possivelmente deve ter séculos de existência. Como é que chega aos nossos dias? Possui uma riqueza tão imensa, não só literal como musical e melódica, que não posso fechar-me num quarto e num lugar seguro, tenho de abrir as janelas do quarto. Ao abri-las, claro que sou contagiado por tudo o que está à volta. Essa melodia [transmontana, “A Filha do Imperador de Roma”] tem uma presença de sabor sefardita, de melodias do Médio Oriente.

Neste disco estão presentes melodias que considero que têm uma potencialidade incrível, são melodias que sintetizam muita coisa, poética, literária, musical, sociológica também. Dessa síntese, tento abrir novas janelas para novas sínteses. Se as pessoas que não conhecerem aquelas melodias as ouvirem pela primeira vez através de mim, se calhar vão ter curiosidade, pensar no que é que já foi feito com aquele material. A melodia de origem arábica, “Lamma Bada”, que é uma melodia ancestral do Al-Andaluz, é uma melodia que já foi influenciada por muitas outras culturas anteriores. A existência, na verdade, passa em parte por pegarmos numa herança cultural levando-a para o futuro. Se calhar fazemo-lo sem termos grande consciência mas é uma função, parece que estamos programados para a fazer.

E porquê Monteverdi [o tema “Oblivion Soave” parte da Aria Arnalta da Ópera “L’incoronazione di Poppea”, de Claudio Monteverdi]?
Monteverdi é o início do Barroco, é um compositor que faz a transição do Renascimento para o Barroco. Aí a escolha prende-se mais com o elo de ligação dos temas, o vermelho, o ocre. A escolha dos temas acaba por obedecer a uma dramaturgia simbólica e o vermelho simboliza tanto a sensualidade como a ausência de vida, porque a morte é muitas vezes representada pelo sangue. É uma tonalidade que também está associada ao fogo, enquanto elemento simbólico, e também à ambição e ao poder.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Neste caso, a peça inspirada em Monteverdi para a qual convidei a Rita Maria, única convidada do disco, trata-se de uma ópera que se chama “A Coroação de Popeia”. É considerada talvez a ópera mais imoral da história da ópera, para o cânone judaico-cristão. Na ópera, Popeia convence o imperador Nero, de quem era amante, a matar a sua própria mulher e imperatriz e também o seu conselheiro real, o Séneca, para que ela pudesse chegar ao lugar de imperatriz. A ambição de chegar ao poder é acompanhada por um gesto melódico maravilhoso, por uma melodia quase de adormecer, cantada pela aia da Popeia, para lhe apaziguar a inquietação. A aia canta a melodia no dia em que morre o grande conselheiro do Imperador, o Séneca, no dia dos assassinatos. Canta-a a adormecer Popeia, com um gesto ternura, dizendo que estava tudo bem, que era preciso aquilo ser feito. Há um lado irónico muito grande. Ouvimos muito dizer que “as pessoas não têm escrúpulos”, que lhes falta ética, mas se calhar a falta de ética é uma condição transversal do Homo Sapiens.

Em que medida?
Há um livro interessantíssimo que se chama “O Gene Egoísta”, do Richard Dawkins, que fala de algo que está subjacente à nossa existência. A mensagem é mais ou menos esta: não se esqueçam, temos um lado de consciência que nos tira à bruta da condição animal mas continuamos animais. Esse “Gene Egoísta” diz-nos que em determinados momentos da nossa vida somos confrontados com escolhas éticas e morais que em muitos momentos seríamos os primeiros a criticar. Explora, digamos, o lado mais escuro da humanidade.

"Sair da zona de conforto improvisando é uma libertação muito grande, significa que temos coragem de não estar a cumprir rotinas, de não nos deixarmos formatar. Improvisar é desformatar, é uma ferramenta de libertação."

Ainda não falámos muito da improvisação como método de criação. Como é que explicaria o que é isso da improvisação e o que ela promove?
A improvisação é desde logo sair de uma zona de conforto. Há concertos que faço que são totalmente improvisados. Este não vai ser o caso, existirão, isso sim, secções que são improvisadas. Improvisar passa por predispor-me a ser um veículo de transmissão de algo, neste caso de uma mensagem musical. Havendo público, essa transmissão está assegurada.

Sair da zona de conforto improvisando é uma libertação muito grande, significa que temos coragem de não estar a cumprir rotinas, de não nos deixarmos formatar. Improvisar é desformatar. Nada na escola nos dirige para a autonomia, cria-se uma dependência, é preciso dizer o que o livro ou depois a entidade patronal diz em vez de termos a nossa voz, assumirmos que não temos de pensar todos da mesma forma. Há um feudalismo educacional muito grande porque é importante manter pessoas fiéis aos princípios orientadores das crenças diversas — que tanto podem ser religiosas como de ordem laboral. A improvisação é uma ferramenta de libertação, não é por acaso que na música improvisada norte-americana o jazz é precisamente uma das músicas mais associadas à libertação. Porquê? Porque dava às pessoas a possibilidade de ter voz para exprimir o que sentiam, a par do blues. Se pensarmos no racismo que ainda hoje existe na sociedade americana…

“O conservatório pode ser uma linha de montagem de artistas”

Falava em feudalismo educacional. O ambiente que encontrou no Conservatório enquanto estudante era estimulante ou restritivo?
Só o nome conservatório implica um pensamento conservador [risos], não é? Os conservatórios surgem depois da Revolução Francesa e de certa forma enquadram o ensino da música através de normas bastante rígidas. Há uma linha de montagem de artistas. Eu tive a sorte de ter professores que foram muito estimulantes. Por exemplo, o meu professor de piano, o José Bon de Sousa, dizia sempre quando chegava à aula e eu estava a tocar que invejava imenso a minha liberdade. Às vezes estava a tocar peças que ia estudar com ele, às vezes estava a improvisar com essas peças. Anos mais tarde, já os dois colegas, continuava a dizer isso.

Recordo-me de um dia decisivo para mim: tinha 16 anos e um personagem que era o diretor do Conservatório, chamava-se Wagner qualquer coisa, entra na sala em que estava a estudar sem bater à porta, com uma atitude autoritária, a dizer que era “completamente proibido tocar este género de música nesta escola”. Agradeço-lhe imenso esse momento porque fez-me querer aprofundar mais o conhecimento sobre a música improvisada, querer estudar música e improvisar e querer construir um percurso artístico à volta da música improvisada. Naquele momento não fui capaz de recuar, não tinha espaço para isso, para pensar de que forma poderia aquilo ter ecos no futuro. Fiquei só extremamente intimidado, um miúdo de 16 anos fica intimidado, mas talvez por uma certa subversão da adolescência aquilo deu-me vontade de experimentar mais.

Foi estudante de música, é músico e é professor de música. Muitos pais perguntam-se se devem colocar os filhos a aprender música desde cedo. O que é que aconselharia?
Uma criança é um sem fim de possibilidades, parece que qualquer coisa que seja semeado naquele território irá brotar. Acho que é preciso, enquanto pai, estar-se muito atento às necessidades de uma criança. Hoje em dia está muito em voga colocar a criança no hipismo, nas aulas de ballet, nas aulas de música — há uma dispersão muito grande. Essa dispersão pode ter duas respostas: fazer com que a pessoa sinta maior afinidade por uma coisa em detrimento de outras ou provocar-lhe repulsa por todas, porque de repente é-se massacrado por excesso de informação.

Cada caso é um caso, acho que o papel de um educador é precisamente o de ser sensível e ter tempo para escutar o ser que está a brotar. A minha experiência teve a ver com isso: a minha mãe tinha uma paixão muito grande por música, apesar de nenhum dos meus pais ser músico. Lembro-me perfeitamente que quando tinha 11 ou 12 anos a minha mãe dizia-me: se calhar devias ir para uma escola. Via-me sempre de volta do teclado que tinha lá em casa e dizia-me: se calhar era bom. Foi sensível, nunca me pressionou para estudar. Para mim foi entrar num admirável mundo novo, que hoje continua a sê-lo. Se calhar se não fosse isso poderia ter sido um assassino de artistas, porque há muitos professores que promovem a formatação e medos a jovens, devido às grandes frustrações que têm. Ouço muitas vezes colegas dizer que sofreram uma pressão imensa com professores que os levaram a desistir.

"Descobrir interessa-me muito, a consciência da curiosidade e da importância que a curiosidade tem na vida tem-me acompanhado muito recentemente. Sem curiosidade, acho impossível viver."

Há algum tempo deu um concerto com o fadista Ricardo Ribeiro no qual revisitaram o repertório de José [Zeca] Afonso. Como foi essa experiência?
Resultou de um convite do Centro Cultural de Belém. Acho que correu muito bem. Já conhecia a obra do Ricardo, que tem um potencial vocal maravilhoso, também ligado àquilo que é a herança do Al-Andaluz. Foi ouro sobre azul revisitar o repertório de José Afonso, é sempre muito especial. Ainda há pouco tempo falava com o Fausto [Bordalo Dias] sobre uma experiência que ele tinha tido com o José Afonso, que  compunha em tempo real, gravava uma melodia e um texto num gravador, no momento, e aquilo ficava. É maravilhoso. Sempre que visitamos algum repertório também estamos a estudá-lo, a descobrir mais um prisma de um determinado autor. Descobrir interessa-me muito, a consciência da curiosidade e da importância que a curiosidade tem na vida tem-me acompanhado muito recentemente. Sem curiosidade, acho impossível viver.

Somos muito ou pouco curiosos enquanto população? Por exemplo somos curiosos com a nossa tradição musical e com o nosso património cultural?
Não tenho dados analíticos e sociológicos, só uma opinião. Por acaso era interessante perceber se há estudos para isto. É difícil perceber o que se está a passar. Sei que há uma tendência geral para o facilitismo, que aplica-se por exemplo às fake news e à forma como as pessoas recebem uma notícia, sem sequer se preocuparem em perceber qual é a origem dessa notícia. Há uma espécie de iliteracia de análise na leitura de notícias.

"Isto pode ser um fenómeno sociológico muito maior: se estou endividado e preciso de trabalhar mais vou ter menos horas de sono, vou ter menos contacto com a minha família e os meus amigos, vou isolar-me cada vez mais num mundo de redes sociais. Pode ser uma bola de neve em que se vai criando uma humanidade cada vez mais conformada com a sua vida."

Nas redes sociais é especialmente notório.
Para mim denuncia uma preguiça intelectual imensa. As pessoas se calhar estão muito cansadas, isto pode ser um fenómeno sociológico muito maior: se estou endividado e preciso de trabalhar mais vou ter menos horas de sono, vou ter menos contacto com a minha família e os meus amigos, vou isolar-me cada vez mais num mundo de redes sociais, vou estar mais cansado. Pode ser uma bola de neve em que se vai criando uma humanidade cada vez mais conformada com a sua vida, em que desde que haja pão e segurança na sua casa e no seu espaço privado está tudo bem. Acho que há uma falta muito grande de sentido coletivo. Sempre vivemos em tribos, maiores ou menores — uma família é uma tribo e um grupo de amigos também. A questão é que a partir do momento em que nos transformámos numa mega tribo, como é que não nos havemos de tornar protecionistas de um território que está sempre a ser disputado? É preocupante.

Tem tido um conjunto muito alargado de colaborações com músicos nacionais na última década e meia. Uma das mais mediáticas e regulares é com o Sérgio Godinho. Como é trabalhar com ele, por comparação com trabalhar com outros artistas?
O Sérgio é um ser humano extremamente curioso, tem muita curiosidade. Tem a idade do meu pai. Sempre que estamos juntos há uma partilha muito grande de histórias, de curiosidades, há um fascínio muito grande pela vida, também. Para mim tem sido uma descoberta muito importante. Todo o cancioneiro do Sérgio é muito sedimentado numa base literária muito forte e acho que isso é de extrema importância, mas também é potenciado por uma vida muito grande e rica de parceiras em outras áreas além da música. O cinema e o teatro são influências muito grandes para ele, por exemplo, tal como o são os seus pares, outros músicos. Acima de tudo essa tem sido uma parceria de curiosidade de ambos os lados, sempre com um desejo muito grande de descobrirmos a vida um do outro.

O mercado para a música instrumental, não radiofónica, em Portugal, é hoje maior do que era quando começou a gravar, é semelhante ou é menor? Está numa posição privilegiada para perceber se a curiosidade das pessoas por música menos pop mudou nos últimos anos.
A música instrumental é uma música que não é tão imediata. Ou melhor, até o pode ser mas no contexto do cinema, por exemplo. O Stanley Kubrick usou bandas sonoras de compositores completamente ligados a nichos composicionais como o [György] Ligeti ou o [Krzysztof] Penderecki e conseguiu colocar uma música que supostamente seria ouvida por nichos em salas de cinema. O cinema também veicula essa possibilidade. [Pausa] É difícil, de facto, percebo que seja mais imediato a voz e o texto do que uma linguagem meramente musical. Ainda assim, acredito que pode haver esse espaço e que esse espaço também pode ser fomentado.

Filipe Raposo: cinco etapas para compor uma banda sonora

Trabalhar com cantores e letristas da canção pop continua a ser necessário para os instrumentistas e compositores de música instrumental ganharem espaço musical e mediático em Portugal? Estou a pensar nas suas colaborações, no facto de o Filipe Melo ter trabalhado recentemente com o António Zambujo, na parceria atual do Júlio Resende com o Salvador Sobral…
É importante, não digo que não, mas é importante numa relação simbiótica. Pelo menos na minha experiência sinto que da mesma forma que tenho uma grande admiração pela obra do Sérgio [Godinho], ele também tem uma grande admiração pelo meu trabalho — alimentamo-nos mutuamente. No caso dos restantes pianistas que referiu acredito que haja também uma admiração grande entre aquelas pessoas e é isso que nos faz crescer. É também uma forma de o grande público conhecer géneros musicais que podem não lhe estar tão associados, é verdade.

Permite sublinhar a faceta de compositor, arranjador, orquestrador? Às vezes são facetas um pouco esquecidas, por comparação com a de intérprete e cantor.
É verdade. Pelo menos ajuda a despertar curiosidade — que estou a perceber que é uma das palavras centrais desta entrevista. Acontece muitas vezes pessoas que não conheciam o meu trabalho irem ver um concerto meu e do Sérgio [Godinho], ganharem curiosidade e irem ao Spotify, por exemplo, ou irem ao iTunes, ou comprarem um disco. Acho que é saudável para todos.

Para iniciar esse conjunto já alargado de colaborações, conhecer o José Mário Branco foi um momento decisivo?
É o primeiro cantautor com quem começo a trabalhar. A partir daí surgem muitas derivações que me deram acesso a um grupo restrito de cantautores com os quais aprendi muito, não só musicalmente mas humanamente, poeticamente e literariamente. Obviamente, são áreas que também fazem parte do meu crescimento como músico e ser humano.

Como é que conheceu o José Mário Branco?
O José Mário Branco tinha gravado um disco que se chamava Resistir É Vencer, em 2004. Fui convidado para fazer uma digressão com ele. Na altura tinha 23 ou 24 anos, lembro-me de ter sido… não conhecia tão bem a obra dele, conhecia aquelas coisas [mais emblemáticas]. De repente encontrar-me com ele e perceber que era e é um homem com uma grande curiosidade pela vida fez-me pensar em algo anterior.

Lembro-me de ter tido uma experiência que foi importante e poderia ter sido destrutiva. Uma vez fui ao Casino Estoril fazer um concerto com uma big band que tocava todas as noites o mesmo repertório. Tinha ido substituir um pianista para fazer o chamado “trabalho de hotel”, que é horrível, é o trabalho “linha de montagem”, sem espaço criativo nenhum. Lembro-me de olhar para aqueles meus colegas muito mais velhos do que eu e pensar: não quero acabar assim a vida. Conhecer músicos e compositores como o José Mário e o Sérgio foi precisamente passar para o lado contrário, estar no lado oposto da margem, perceber que a vida pode ser vivida de outra forma, com curiosidade, estando também atento ao próximo. Percebi que era possível ter um vida embebida não só de valores mas da curiosidade que nos faz levantar com uma vontade imensa de viver.

Atualmente, o que é que representa para si o ato de compor e tocar, o gesto musical? Que importância tem a música hoje na sua vida e no seu dia-a-dia?
A analogia que faço é esta: precisamos de respirar? Sim. Precisamos de comer? Sim. Precisamos em suma de responder às nossas necessidades fisiológicas de base, que fazem parte da nossa existência. Para mim, enquanto criador, compor e tocar já faz parte dessas necessidades básicas. Iria morrer sem a presença do meu instrumento, do piano. A infelicidade iria apoderar-se de mim rapidamente.

"Estou a lembrar-me do 'Pianista', o filme do Polanski, sobretudo daquele momento em que ele está refugiado numa casa que tem um piano e de repente não pode tocar. Não imagina a carga simbólica que tem para mim aquele momento de tensão absoluta em que o pianista coloca as mãos em cima do piano e imagina o som. Que angústia profunda seria, a dor que deve ser... é como ter um braço e obrigarem-nos a ter esse braço paralisado com uma placa, ou simplesmente não o podermos usar."

Estou a lembrar-me do “Pianista”, o filme do Polanski, sobretudo daquele momento em que ele está refugiado numa casa que tem um piano e de repente não pode tocar. Não imagina a carga simbólica que tem para mim aquele momento de tensão absoluta em que o pianista coloca as mãos em cima do piano e imagina o som. Que angústia profunda seria, a dor que deve ser… é como ter um braço e obrigarem-nos a ter esse braço paralisado com uma placa, ou simplesmente não o podermos usar. Para mim seria isso, [o piano] é uma voz, não tocar é não poder falar. Acho que morreria.

Muito obrigado.
Acaba assim de forma trágica [risos].

Dois Filipes, dois pianos e (algum) improviso

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