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O julgamento de Adolf Eichmann, em abril de 1961, foi transmitido a partir de Jerusalém para todo o mundo
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O julgamento de Adolf Eichmann, em abril de 1961, foi transmitido a partir de Jerusalém para todo o mundo

O julgamento de Adolf Eichmann, em abril de 1961, foi transmitido a partir de Jerusalém para todo o mundo

"Filmem a cara de Eichmann": a entrevista, o julgamento e o pesadelo do arquiteto do Holocausto em três episódios

A partir de gravações de uma entrevista ao arquiteto do Holocausto, a série documental "A Confissão do Mal: As Gravações Perdidas de Eichmann" estreia-se esta sexta-feira. Falámos com o realizador.

Era o seu semblante, não quando falava, mas quando escutava, que o denunciavam. Sentado na cadeira do réu, encapsulada por uma redoma de vidro, Adolf Eichmann deixava transparecer uma cara umas vezes de condescendência, outras de arrogância, sempre na condição de quem não reconhecia autoridade aos seus julgadores, até porque foram o grupo étnico e religioso que ele próprio arquitetou extinguir através do Holocausto, um esquema que matou cerca de seis milhões de judeus sob o jugo da liderança nazi de Hitler. E é nestes pequenos pormenores de imagem no julgamento mais mediático à época, transmitido à escala mundial, que podemos ver o idealista, ao contrário do mero burocrata que, quando abria a boca para falar em tribunal, em abril de 1961 em Jerusalém, depois de ter sido capturado pelos serviços secretos israelitas (a Mossad) na Argentina, dizia que se limitava a obedecer a ordens. O recém-criado estado de Israel nem televisão tinha, na altura. Mas mandou vir equipas de Inglaterra para filmarem todas as sessões do julgamento. Aos operadores de câmara foi-lhes dito: “filmem a cara de Eichmann”.

A nova série documental de três episódios sobre este julgamento, intitulada “A Confissão do Mal: As Gravações Perdidas de Eichmann” e que se estreia esta sexta-feira dia 27 no canal por cabo TVCine Edition, refuta a teoria de Hannah Arendt, que diz que o verdadeiro perigo do mal reside na banalização, na burocratização de atos hediondos perpetrados por indivíduos que não compreendem a gravidade – nem a responsabilidade – do que estão a fazer. Arendt, ela própria judia, que foi discípula e amante do fenomenólogo alemão Martin Heidegger e teve de fugir para os Estados Unidos, cobriu o julgamento de Eichmann para a revista New Yorker e aplicou-lhe a sua teoria. Viu um homem cândido, irrefletido, com um ar um pouco desleixado, naquela sala de audiência. Ao contrário do homem austero, muito poderoso, aperaltado por uma farda militar. Quem era afinal Adolf Eichmann?

Esta série documental advoga não haver margem para dúvidas. Adolf Eichmann foi um ideólogo e não um mero seguidor de ordens. Foi um ator – foi-o na Argentina, enquanto disfarce, foi-o no julgamento em Jerusalém, enquanto tentativa de sobrevivência. A perceção de Hannah Arendt foi então muito criticada pela comunidade judia. “A teoria de Hannah Arendt é muito inteligente e pode explicar em boa parte o que aconteceu no Holocausto: muita gente serviu-o em termos burocráticos, muita gente não queria saber das consequências do que fazia, estava a seguir ordens”, explica-nos o realizador da série, o israelita Yariv Mozer, via videochamada. “Isto é muito importante de compreender: ela escreveu a sua teoria anos antes de assistir ao julgamento de Eichmann. Tinha a sua teoria, veio ao julgamento e só depois é que publicou o livro aplicando a teoria a Adolf Eichmann.”

[o trailer de “A Confissão do Mal: As Gravações Perdidas de Eichmann”:]

Em 2019, Yariv Mozer começou a pesquisar o julgamento de Eichmann, ele próprio neto de avós maternos sobreviventes do Holocausto. O tema era tabu em casa, tanto da mãe para com os pais como da própria mãe para com os filhos. Veio o confinamento por causa da pandemia e Mozer visionou horas e horas das gravações televisivas do julgamento, onde encontrava muitas referências a umas gravações em áudio de uma longa entrevista, dada durante um período de meio ano por Eichmann a um jornalista nazi holandês, Willem Sassen, na Argentina. Estas gravações são a linha condutora dos três episódios da série e contrariam a linha de defesa de Eichmann que dizia que estava apenas a seguir ordens.

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“Descobri que o jornalista que gravou Adolf Eichmann na Argentina o traiu e vendeu um artigo para a revista norte-americana Life”, conta Yariv Mozer. E mostra o exemplar da revista para a câmara da videochamada. Demorou algum tempo a encontrá-la, diz, mas conseguiu comprá-la no eBay. “Quando mostraram o artigo a Eichmann em tribunal, ele limitou-se a dizer que era uma adaptação jornalística das suas palavras”, explica o realizador israelita. “E assumiu: ‘claro que fui entrevistado, mas estas não são as minhas palavras’. Estava sempre a dizer: ‘mostrem-me as gravações’.” O artigo da Life tem como título “Eichmann Tells His Own Damning Story” (“Eichmann Conta a sua Própria História Condenatória”) e data de 28 de novembro de 1960. Este proeminente nazi tinha sido capturado pela Mossad em maio de 1960, iria a tribunal em abril do ano seguinte.

“A Mossad poderia ter posto as mãos naquelas gravações”, conta Mozer. “Sabemos hoje que Willem Sassen, ao mesmo tempo que o julgamento decorria, estava a colaborar com a Mossad. A Mossad teria conseguido deitar a mão às gravações. Só posso assumir que não quis, havia interesses de força maior.”

Os três episódios desta série documental são construídos através dos olhos do protagonista, o procurador-geral de Israel Gideon Hausner, que presidiu à acusação em tribunal. Por causa do artigo na Life, Hausner estava determinado a usar os conteúdos daquelas gravações como prova. “Tenho a certeza de que Gideon Hausner andou obsessivamente à procura destas gravações. Nelas, Eichmann vangloria-se completamente do que fez”, defende Mozer.

Às mãos de Hausner chegaram entretanto as transcrições integrais das gravações das entrevistas feitas por Willem Sassen. Como não tinha dinheiro para tantas bobines, Sassen mandava transcrever os áudios e voltava a regravar as bobines por cima. As transcrições eram cerca de 800 páginas. Se o fim do primeiro episódio tinha sido sobre o surgimento do artigo da Life, o fim do segundo apresenta estas transcrições em tribunal, com notas de correção escritas à mão pelo próprio Eichmann. O terceiro episódio debruça-se sobre a negação de Eichmann de que, mesmo com a sua caligrafia nas transcrições, aquelas seriam as suas palavras.

“A narrativa que atravessa os três episódios é: porque é que aquelas gravações não chegaram a tribunal? Foi quando descobri a relação secreta de Israel com a República Federal da Alemanha”, explica Yariv Mozer. “A República Federal da Alemanha estava no meio da Guerra Fria, a Rússia encontrava-se a enfrentar os Estados Unidos. Este é todo um novo foco. E Israel teve todo o interesse em conseguir dinheiro da República Federal da Alemanha.” E acrescenta: “Por detrás do julgamento de Eichmann, David Ben-Gurion, o primeiro ministro de Israel da altura, estava a construir a primeira central de armas nucleares secreta no sul do país. É um segredo até hoje. Israel nega a sua existência, como sabem.”

De pé, durante a rodagem do documentário, Yariv Mozer, realizador, produtor e argumentista, nascido em Tel Aviv em 1978

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O governo de Israel estava a jogar em duas frentes: por um lado a mediatização do julgamento de Eichmann e, por outro, a missiva de construir uma central de armamento nuclear. Em plena Guerra Fria, a jovem República Federal da Alemanha (RFA) era um dos potenciais financiadores da central. “Nos bastidores do julgamento, a RFA estava a avançar com o dinheiro para a construção da central de armamento nuclear israelita e houve, podemos assim dizer, uma ameaça: ‘estão agora a julgar Adolf Eichmann, mas não levem o caso mais além. Não tragam outros nomes a este julgamento. Não queremos que isto continue’”, advoga Mozer. “Muitos dos nazis continuavam no poder na RFA, incluindo o braço direito do chanceler Konrad Adenauer, Hans Globke.” Ou seja, tanto a RFA como Israel estavam com medo daquelas gravações.

Por seu lado, também a família de Eichmann estava a fazer todos os esforços para que aquelas gravações não chegassem a tribunal. “A Mossad poderia ter posto as mãos naquelas gravações”, conta Mozer. “Sabemos hoje que Willem Sassen, ao mesmo tempo que o julgamento decorria, estava a colaborar com a Mossad. A Mossad teria conseguido deitar a mão às gravações. Só posso assumir que não quis, havia interesses de força maior.”

O que esta série documental faz é acrescentar camadas de entendimento ao papel deste julgamento. “Ben-Gurion tinha algo mais em mente. E eu compreendo-o totalmente”, diz Yariv Mozer relativamente às escolhas feitas pelo primeiro ministro israelita da altura. “Compreendo-o porque Israel era um país jovem, estava a enfrentar inimigos árabes, estava com medo da sua própria existência. Tinha um fluxo de imigrantes de todo o mundo a entrar, entre eles sobreviventes do Holocausto.”

"Não foi uma decisão artística filmar o julgamento a preto e branco, a tecnologia era preto e branco. Pensei: por que não usar a tecnologia de hoje e colorir o julgamento? Faríamos com que este julgamento acontecesse de novo, fazendo com que as pessoas percebessem melhor de que isto fez parte da realidade”, explica o realizador.

Segundo Mozer, tanto o julgamento como a construção da central de armamento nuclear serviram um mesmo propósito: o governo israelita garantia assim que nunca viesse a acontecer um segundo Holocausto. “Pode dizer-se que esta foi a mensagem do julgamento de Eichmann. Eles podiam ter terminado o julgamento em duas ou três audiências. Bastava apresentar um documento a mostrar que Adolf Eichmann sabia exatamente para onde estava a enviar todos aqueles judeus. Ele fingiu que não sabia, mas claro que sabia que estava a enviá-los para campos de morte. Mas Ben-Gurion queria mostrar ao mundo: ‘olhem, nós não vamos permitir outro Holocausto’.”

Outra das provas apresentadas nesta série documental de que Eichmann era mais do que um mero burocrata foi o caso da Hungria e da sua participação no Holocausto. Eichmann conseguiu, em cerca de sete semanas, organizar o envio de meio milhão de judeus para campos de concentração. Foi tão eficaz que ultrapassou as expectativas do poder central em Berlim.

A importância de garantir memória a atos atrozes como este está na origem da opção do realizador em retocar com cor todas as imagens de arquivo usadas na série. “O julgamento de Eichmann foi o primeiro julgamento do mundo a ser transmitido por televisão, tratava-se da primeira geração do vídeo. Não foi, portanto, uma decisão artística filmar o julgamento a preto e branco, a tecnologia era preto e branco. Pensei: por que não usar a tecnologia de hoje e colorir o julgamento? Faríamos com que este julgamento acontecesse de novo, fazendo com que as pessoas percebessem melhor de que isto fez parte da realidade”, entusiasma-se Mozer. “E fui mais longe: já é tempo de pôr cor no Holocausto, porque o Holocausto aconteceu a cores.”

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