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“A Polícia da Moralidade não tem nada a ver com o judiciário e foi abolida a partir do lugar em que foi criada.” A frase de Mohammad Montazeri, procurador-geral iraniano, provocou ondas de choque. Depois de quase três meses de fortes protestos pela morte de Mahsa Amini, o regime de Teerão parece estar a recuar e a fazer uma cedência perante os manifestantes, abrindo a porta ao fim do organismo que monitoriza o uso correto do hijab (véu islâmico, que no Irão tem de ser acompanhado por outras regras no vestuário).
O efeito Mahsa Amini: as histórias de três jovens mortas durante os protestos no Irão
Mas será assim tão simples?
Comecemos pelo princípio. É preciso recuar a meados de setembro, quando a morte de Mahsa Amini, de 22 anos, deu início a uma das maiores ondas de protesto das últimas décadas no Irão. Detida pela Polícia da Moralidade por alegadamente não estar a usar corretamente o véu, a jovem entrou em coma e morreu quando se encontrava sob custódia policial. As autoridades dizem que teve uma paragem cardíaca, ligada a um problema de saúde prévio; a família nega e fala em brutalidade policial.
A morte de Amini reabriu o debate sobre o uso obrigatório do véu no Islão e trouxe às ruas milhares, sob o lema “Mulheres, Vida, Liberdade”. A repressão tem sido violenta — Teerão confirma mais de 200 mortes, as ONG falam em mais de 400. Mas, ao longo destes meses, deixou de se ver nas ruas da capital as carrinhas brancas de faixa verde que transportam habitualmente os agentes da Polícia da Moralidade. Com esse policiamento oficiosamente em suspenso, muitas mulheres têm saído à rua sem véu, pela primeira vez em anos.
Chador ou manteau, certo é que as iranianas têm de estar cobertas
Nem sempre foi assim. Durante o reinado do Xá, era precisamente o uso do véu islâmico que era perseguido pelas autoridades. Mas a Revolução Islâmica de 1979 viria alterar tudo. “As mulheres podem trabalhar, mas não devem ir nuas, devem ir com o hijab”, afirmou o ayatollah Khomeini num discurso publicado nos jornais pouco depois da Revolução. As declarações provocaram de imediato vários protestos nas ruas de Teerão.
Quatro anos depois, essa preferência do Líder Supremo foi traduzida em lei. A mulher que não usasse o véu estava sujeita a 74 chicotadas. Atualmente, o Código Penal iraniano prevê que “as mulheres que estejam em locais e estradas públicos sem estar a usar o hijab islâmico devem ser condenadas a uma pena de prisão de dez dias a dois meses ou a uma multa de 50 mil a 500 riais” — o correspondente, no valor máximo previsto para a coima, a cerca de 1,15 euros.
O uso correto do “hijab islâmico” inclui cobrir a cabeça com um véu e o corpo ou com um chador (o tradicional manto negro) ou com um manteau (uma espécie de casaco comprido e largo). Não se podem ver partes do corpo como os tornozelos e até a quantidade de cabelo que pode estar à vista está sujeita a escrutínio.
Essa indefinição sobre o que constitui “bad hijab” — a expressão iraniana para definir o uso incorreto do hijab — é explorada por muitas iranianas, sobretudo nas zonas mais urbanas do país. Mas há uma linha que não pode ser ultrapassada e que é definida por Elizabeth Bucar da seguinte forma: “Em geral, o ‘bad hijab’ aplica-se a qualquer forma de vestuário que chama a atenção para o indivíduo, como cores garridas, manteaus justos, adereços vistosos ou maquilhagem carregada. Mas estas coisas só são consideradas ‘bad hijab’ se chamarem a atenção de forma pouco apropriada, seja violando o bom gosto por ser demasiado garrido, seja violando as normas morais por ser sexualmente provocante”, escreveu a especialista em Ética Religiosa na sua obra Pious Fashion: How Muslim Women Dress (sem edição em português).
Na prática, isso significa que nunca são as próprias mulheres a defini-lo. E é aqui que entra em ação a Polícia da Moralidade.
A “Patrulha de Guarda” que controla a moralidade
Oficialmente chamada de Gashte Ershad (Patrulha de Guarda), a Polícia da Moralidade é um órgão que teve os seus antecedentes na antiga Gashte Sar-Allah (Patrulha da Vingança de Deus) surgida no início do período revolucionário. “Aterrorizava as mulheres nas cidades principais, detalhando uma ladainha de transgressões morais, que incluíam o comprimento e cor das unhas, as roupas que revelavam os contornos femininos e o uso de cosméticos como ofensas ao Estado e ao Islão”, resume a académica Natasha Parnian.
A nova versão da Gashte foi ressuscitada pelo Presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2006. Os seus agentes — homens vestidos com farda verde e mulheres de chador negro — patrulham as ruas e detêm as mulheres que considerem não estar a usar corretamente o hijab, bem como quaisquer violações da moral. Após a detenção, pode ocorrer uma de duas coisas: a mulher recebe apenas um aviso ou é levada para uma esquadra ou centro de “reeducação”. Ali, é forçada a assistir a uma aula sobre a importância do hijab, tem de assinar um documento de compromisso com as regras de vestuário e esperar que alguém lhe venha trazer roupas “adequadas”, antes de poder ser libertada.
Os relatos de maus tratos às detidas por parte desta polícia são frequentes. Pardis Mahdavi, norte-americana descendente de iranianos e atual reitora da Arizona State University que deu aulas em Teerão, descreveu assim a sua ação: “Disfarçados à paisana, entram em festas, raves e armazéns para reunir dezenas — por vezes centenas — de iranianos ‘imorais’. Às vezes, os detidos são levados para centros; as mulheres são interrogadas pela sua virgindade. Outras vezes, enfrentam açoitamentos públicos. Os jovens, independentemente dos laços familiares e origem socioeconómica, enfrentam o mesmo castigo e muitas vezes passam uma ou duas noites na prisão.”
A maioria dos agentes da Gashte são recrutados a partir da Basij, uma força paramilitar criada no início dos anos de 1980, durante a guerra Irão-Iraque, e que é ferozmente fiel ao regime. A Basij — cujo nome oficial significa Organização pela Mobilização dos Oprimidos — tem uma forte presença nas universidades, onde monitoriza o comportamento dos jovens. O seu papel na repressão de protestos é histórico: foi assim nos protestos estudantis de 1999, no movimento após a eleição de Ahmadinejad em 2009 e agora na repressão das atuais manifestações.
De tal forma que há menos de dez dias foram pessoalmente elogiados pelo próprio Líder Supremo: “Vimos nos eventos mais recentes os nossos inocentes e oprimidos Basijis a tornarem-se em alvos de opressão, por não permitirem que a nação se torne refém de rebeldes e bandidos e daqueles que estão na lista de pagamentos dos inimigos”, disse o ayatollah Khamenei.
Acabar com a Gashte: resultado da divisão dentro da elite ou balão de ensaio?
Com maior presença nas grandes cidades, onde a maioria das mulheres desafia mais as regras de vestuário, a Gashte é muito pouco popular entre os iranianos. Não só os estudos mostram que a maioria considera as regras de vestuário demasiado restritas — 70% gostariam de ver um aliviar das imposições, segundo um estudo do próprio Parlamento iraniano, citado pelo The Telegraph —, como a app Gershad, que permite perceber onde há agentes desta polícia, é mais popular do que nunca.
E nem sempre o controlo social desta polícia foi tão apertado. Durante a presidência de Hassan Rouhani (2013-2021), tido como mais moderado, a Gashte relaxou. Mas, com a chegada à presidência do conservador Ebrahim Raisi, o garrote voltou a apertar. Raisi pediu mesmo a mobilização “de todas as instituições do Estado para que apliquem a lei do véu”.
Agora, a braços com os maiores protestos das últimas décadas, o futuro da Gashte é incerto. Mas as declarações do procurador Montazeri não significam necessariamente a abolição imediata desta polícia. Por um lado, mais nenhum responsável reforçou as suas declarações. Por outro, a Gashte não depende da Procuradoria-Geral, mas sim da própria Polícia. Não por acaso, o canal televisivo estatal Al Alam apressou-se a explicar que os comentários do procurador foram “retirados de contexto”.
Estas afirmações dúbias surgem numa altura em que dentro da elite política e religiosa do país parecem coexistir diferentes correntes sobre este tema. Poucos dias depois do início dos protestos pela morte de Mahsa Amini, dois ayatollahs iranianos fizeram comunicados a repudiar a existência da Gashte. “Não só é um órgão ilegal e anti-islâmico, como não é lógico”, afirmou o religioso Bayat Zanjani. Mohaqeq Damad reforçou a ideia: “O estabelecimento de uma força de promoção das virtudes e prevenção do vício deve servir para monitorizar as ações dos governantes, não para reprimir as liberdades dos cidadãos. Isto é um desvio dos ensinamentos islâmicos.”
Já o histórico Ali Larijani, político experiente que foi presidente do Parlamento, disse abertamente que acha não fazer sentido existir esta Polícia: “Agradeço os serviços da Polícia e da Basij, mas este fardo de encorajar o uso do hijab não deve ser levado a cabo por eles.”
Do lado do governo e do Líder Supremo, porém, não se ouvem de todo afirmações semelhantes. Razão pela qual alguns especialistas dizem que esta ideia pode ser apenas um balão de ensaio por parte da liderança iraniana: “A República Islâmica tem por hábito testar ideias atirando-as para a discussão”, afirmou ao Washington Post Sanam Vakil, investigador da Chatham House.
Resta também saber como reagirão os milhares de iranianos que têm saído à rua perante esta possibilidade. Os ativistas que já se pronunciaram publicamente foram claros: embora a medida seja bem-vinda, não chega, já que o uso do hijab continua a ser obrigatório. “Eles vão continuar de alguma forma a lidar com aquelas que não o usem”, previu Atena Daemi, em declarações ao Wall Street Journal. E como? Já existem algumas alternativas, como os sistemas de videovigilância que analisam se uma mulher dentro de um carro vai ou não coberta.
Mesmo que a Gashte seja extinta, o controlo não desaparecerá. Isso mesmo deixou claro o procurador, quando disse que continua a caber ao sistema judiciário “monitorizar as ações de comportamento ao nível da comunidade”.