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Fugiu de Milão e ficou doente em Portimão. Como o líder da máfia italiana se escondeu em Portugal até ficar em coma com Covid-19

PJ localizou-o em S. José, depois de ser transferido de Portimão. Está em coma e ligado à ECMO na UCI, por isso não pode ser detido e levado a um juiz. Notícia obriga a reforçar segurança.

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Na imagem colocada numa campa do cemitério de San Luca, uma pequena localidade da Calábria, a sul de Itália, Maria Strangio, de 33 anos, tem pele morena, cabelo comprido escuro e brincos que acompanham o pescoço. Junto à sua fotografia, lê-se a frase deixada pela família como última homenagem: “A tua bela juventude foi despedaçada quando todos olhavam para ti. A morte levou-te para longe. Separou-te dos teus amados que agora passam o tempo a repetir o teu nome na casa vazia e silenciosa onde todos te recordam”. Atrás da sua imagem está a do pai, Antonio, como descreveu em 2007 o The Guardian, que esteve na pequena localidade que se tornou o epicentro da máfia ‘Nadrangheta (expressão derivada de uma palavra grega que significa “sociedade de homens de honra”).

Maria e o pai foram assassinados naquilo que as autoridades italianas acreditam ter sido uma guerra entre clãs mafiosos calabreses pela liderança de San Luca. Maria foi baleada à porta da igreja, no natal de 2006, por altura da missa. A bala não era para ela, mas para o marido Giovanni Nirta — que meses antes, com um bala pelas costas, teria deixado Francisco Pelle numa cadeira de rodas. Maria acabou por ser a vítima de uma guerra que começara anos antes, escalou e não parou ali. As autoridades italianas acreditam que morreu numa ação de vingança planeada precisamente por Pelle, depois de ter sido deixado incapacitado. O italiano de 44 anos, condenado em Itália a prisão perpétua, foi localizado esta terça-feira no Hospital de São José, em Lisboa, internado em estado grave com Covid-19. Estava em fuga há dois anos, depois de ter saído do radar das autoridades de Milão.

A informação de que Francesco Pelle, mais conhecido por “Ciccio Paquistão”, estaria internado num hospital de Lisboa partiu do procuradoria Antimáfia de Reggio Calabria, chefiada por Giovanni Bombadieri, segundo o jornal italiano La Repubblica. Pelle era investigado desde o dia 19 de julho de 2019, quando o Supremo Tribunal de Roma confirmou a pena de prisão perpétua que lhe fora aplicada pela morte de Maria à porta da igreja de San Luca.

Hospital de São José recusa informar se reforçou segurança depois de receber o mafioso italiano

MARIO CRUZ/LUSA

Nesse dia, a polícia italiana foi então procurá-lo no seu apartamento em Milão, uma casa perto do hospital onde fazia fisioterapia — uma vez que se encontra paralisado desde que foi baleado na coluna. Mas quando lá chegou apenas encontrou a sua mulher, Annunziatina Morabito, de malas feitas e pronta para partir. Sem sinal dele, a polícia apostou logo para a tese de que tinha tido a ajuda de outros elementos do clã para fugir.

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Francesco Pelle foi baleado em 2006 e ficou numa cadeira de rodas. Cerca de meio ano depois, segundo a polícia, vingou-se no dia do natal. Mas quem perdeu a vida foi Maria, mulher do seu rival.

A indicação de que Pelle estaria em Portugal foi rapidamente confirmada pela Polícia Judiciária esta semana no âmbito do projeto “I Can” da Interpol, que identifica a ‘Ndrangheta como uma das organizações criminosas “mais extensas e poderosas do mundo”. Originária da região italiana da Calábria, lê-se no site desta polícia internacional, expandiu-se pelo mundo “e continua a crescer em um ritmo constante”. “Hoje, a ‘Ndrangheta é considerada a única organização mafiosa italiana presente em todos os continentes do mundo”.

Em 2010, Francesco Forgione, ex-presidente da Comissão Antimáfia do Parlamento italiano, revelava ao Expresso que a ‘Ndrangheta tinha bases em Portugal, mais concretamente em Faro e Setúbal, enquanto a Camorra, a máfia de Nápoles, contava com um clã em Cascais e outro no Porto. Nesse mesmo ano, Giovanni Lore, um capo da máfia siciliana, a Cosa Nostra, que estava em fuga há vários meses, era detido no Bombarral. Em 2016, um investigador da PJ assumia mesmo àquele semanário que havia ainda quem pretendesse “apenas refugiar-se em Portugal para fugir à Justiça italiana, tentando levar uma vida discreta, sem levantar ondas”.  “Muita da droga importada da América Latina chega à costa portuguesa por via da ‘Ndrangheta”, que se aproveita da localização geográfica do país, de algumas fragilidades das fronteiras marítimas e até da proximidade económica com o Brasil, país de onde vem grande parte da cocaína”, acrescentava.

Suspeito está em coma. Como pode ser detido?

Ao que o Observador apurou junto do fonte hospitalar, Francesco Pelle chegou ao Hospital de S. José transferido de Portimão. Infetado com Covid-19, está agora internado na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) em coma e “em estado muito grave, com lesões pulmonares”, ligado a uma técnica de suporte vital. Em concreto, está sujeito a um procedimento conhecido como ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal) — em que o sangue é bombeado fora do corpo — dadas as dificuldades respiratórias. Procurado internacionalmente e figurando entre os 30 criminosos mais perigosos procurados em Itália, a PJ viu-se contundo com um problema para resolver: como detê-lo estando ele inconsciente?

Segundo uma fonte do Ministério Público, o mais certo é que o mandado de detenção europeu em nome de Pelle só seja cumprido quando ele acordar do coma, até porque a detenção serve para que ele seja apresentado a um juiz e este decida, primeiro, a medida de coação e, depois, a defesa e o Ministério Público debatam a sua possível extradição para Itália. Contactada pelo Observador a PJ não quis responder se, de facto, a detenção anunciada pelas autoridade italianas se concretizou ou não. Portanto, por agora, pode dizer-se que está apenas à guarda da polícia.

Também o hospital não quis adiantar se a segurança foi ou não reforçada naquele local, uma vez que foi tornado público que ali se encontra um doente que é procurado internacionalmente — e não apenas pelas autoridades policiais. Os seus rivais dentro da máfia também o podem querer ‘surpreender’, agora que se sabe onde está e como está fragilizado. A fonte hospitalar contactada pelo Observador diz mesmo estar “apreensiva” pela presença deste suspeito no hospital e a falta de um verdadeiro perímetro policial em S. José.

A PSP, apurou o Observador, está disponível para apoiar na segurança, mas recusa responder se já foi chamada a reforçar ao local.

Uma guerra de anos. E a morte de Maria Strangio

A luta pela liderança de San Luca começou muitos anos antes da morte de Maria e atravessou gerações. De um lado o clã Pelle-Vottari-Romeo, do outro os Strangio-Nirta. A guerra mais recente entre as duas famílias reacendeu há 30 anos, no Carnaval de 1991, com uma mera troca de ovos que acabou mal e fez renascer guerras antigas.

A violência escalou de tal forma que no dia em que Maria perdeu a vida, já se contavam outras 15 vítimas mortais desta guerra de clãs no epicentro da ‘Ndrangheta. A organização criminosa sediada em San Luca começou por dedicar-se ao rapto de pessoas ricas em troca do dinheiro de resgates, que depois usava para investir em droga comprada aos colombianos. Hoje são considerados os líderes do tráfico de droga no mundo, e dedicam-se a trazer droga da Colômbia para a Europa, tendo a Península Ibérica como uma das portas de entrada. Estima-se que, em 2007, o tráfico de drogas e armas, a prostituição e extorsão por parte deste grupo lhes tenha rendido cerca de 44 mil milhões de euros.

Vários elementos deste grupo criminoso têm caído nas malhas da justiça. No final de janeiro começou em Itália o maior julgamento em três décadas contra a máfia local da Calábria, com 325 arguidos e 900 testemunhas. Entre os acusados — a leitura dos nomes durou três horas —, 58 concordaram em quebrar o código de silêncio, uma tradição que é norma no crime organizado italiano e impede denúncias. Os crimes são da década de 90 e incluem assassínios, sequestros, extorsão, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e corrupção. A investigação quer ainda provar relações com autoridades, de polícias a juízes, e também políticos regionais e nacionais, como o já condenado deputado Giancarlo Pittelli, do Força Itália.

Ndrangheta. Começou o mega julgamento do grupo mafioso italiano da Calábria

Entre os réus do julgamento está Luigi Mancuso, de 66 anos, o chefe da ‘Ndrangheta neste caso de Vibo Valentia, também uma cidade na ponta da bota de Itália. Na ‘Ndran­ghe­ta o que vale são as relações familiares, e não as de eficiência, o que dificulta ainda mais encontrar provas ou denunciantes. O grupo tem cerca de 150 famílias ou clãs, que por sua vez têm seis mil membros e afiliados, além de parceiros e aliados no exterior. As casas dos líderes têm habitualmente túneis de escape sofisticados e esconderijos. E há rituais secretos para entrar nesta máfia, com referências esotéricas, espadas e cavalos brancos.

Este julgamento em massa na Calábria é o maior desde o “maxiprocesso” da Cosa Nostra de 1986 em Palermo, que durou seis anos e levou à condenação de mais de 300 acusados, com a aplicação de várias penas perpétuas. Ao longo do processo, feito numa prisão transformada num verdadeiro bunker, vários juízes ligados ao caso foram assassinados, incluindo os dois principais, Giovane Falcone e Paolo Borsellino. Terá sido o enfraquecimento da máfia siciliana que fez crescer a calabresa dando-lhe o poder que tem hoje.

Francesco Pelle foi baleado pelas costas quando procurava ser o líder

Seis meses antes da morte de Maria, em junho de 2006, Francesco Pelle, que lutava pela liderança da organização criminosa, foi baleado pelas costas no terraço da sua casa. Foi hospitalizado, sobreviveu, mas ficou paraplégico e nunca mais conseguiu andar. Por isso as autoridades italianas acreditaram que o crime cometido naquele dia de natal, à porta da igreja, foi encomendado por ele como vingança contra o marido de Maria, Giovanni Luca Nirta, que era o seu principal rival.

Para vingar a morte de Maria, do clã Strangio-Nirta, seis elementos do clã de Pelle foram mortos na Alemanha, à porta de um restaurante italiano. Um deles tinha consigo uma imagem sagrada queimada, que integra o ritual de iniciação da máfia 'Nadrangheta.

Maria foi assassinada em dezembro de 2006, mas o seu homicídio só viria a ter consequências maiores em agosto do ano seguinte, quando se percebeu a dimensão da rivalidade e da violência entre estes dois clãs e a sua ligação a um crime ocorrido fora de Itália, na Alemanha, que ficou conhecido como o massacre de Duisburh.

Já passavam das 2h00 nesta cidade alemã, onde vivia discretamente uma comunidade nascida em San Luca e ligada à ‘Ndrangheta, quando se ouviram dezenas de disparos de armas de fogo. As autópsias viriam, mais tarde, a revelar que foram disparadas 54 balas. Quando a polícia chegou ao local encontrou dentro de dois carros seis homens, entre os 16 e os 39 anos anos, cinco deles já mortos. A sexta vítima acabaria por morrer no hospital. Um deles tinha na carteira a imagem queimada de um santo — o que faz parte do ritual de iniciação da ‘Ndrangheta. Três das vítimas eram de San Luca, e foi lá que foram enterradas. Todos eles morreram à porta do restaurante italiano Da Bruno, onde trabalhavam. As autoridades italianas depressa começaram a trabalhar com a polícia alemã e perceberam que esta morte teria sido também uma vingança: desta vez pelo homicídio de Maria.

Flowers and candles are laid down 16 Aug

Seis funcionários do restaurante italiano Da Bruno foram mortos dentro dos carros à porta do estabelecimento

DDP/AFP via Getty Images

Dois anos depois acabariam por ser acusados mais de 30 suspeitos dos homicídios e de uma série de crimes de extorsão ligados ao grupo. Dois dos suspeitos do crime foram detidos na Holanda. Um era cunhado de Maria e era dono de dois restaurantes italianos — que a polícia acredita serem apenas uma fachada da organização criminosa. O julgamento decorreu depois em Itália e terminou com a aplicação de oito prisões perpétuas.

Pelle foi detido numa clínica com um nome falso

A investigação à morte de Maria teve o nome de operação Fehida e foi liderada pelo coronel Valério Giadina. Nela foram também detidos dezenas de membros do clã de Pelle, mas Francesco escapou. Acabaria por se encontrado em 2008, internado numa clínica em Pavía, no norte de Itália, com uma identidade falsa e a fazer tratamentos de fisioterapia comparticipados pelo Estado. Ali era tratado como sendo “Pasqualino”, vítima de um infeliz acidente de viação, como descreveu o La Repubblica. No quarto da clínica, concluiu a investigação, nunca deixou de dar ordens aos seus homens via Skype.

Pelle foi detido em 2008 numa clínica onde estava internado com um nome falso. Foi libertado em 2017 depois de esgotados os prazos legais para permanecer detido. Em 2019 fugiu de Milão quando soube que o Supremo confirmara a sua prisão perpétua.

Pelle foi julgado e condenado, mas acabaria libertado em 2017, depois de esgotados os prazos antes da pena transitar julgado — como aliás aconteceu com outros membros do clã. Também como outros familiares seus que tiveram fugas (e detenções) incríveis, Francesco Pelle acabou por ter ajuda e escapar em 2019, exatamente na altura em que o Supremo Tribunal confirmaria a pena de prisão perpétua, como já tinha acontecido nas instâncias anteriores.

3 fotos

Esta semana Francesco foi localizado no Hospital de São José, em Lisboa, onde está internado com Covid-19 e sabe-se que o seu estado é grave. Sabe-se que veio tranferido do hospital de Portimão. Por agora não se sabe qual será o seu destino, mas há uma investigação para prosseguir: onde vivia Francesco Pelle em Portugal, o que fazia cá e quem o ajudou?

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