Motown: The Sound of Young America conta a história de uma das editoras mais influentes e transformadores na história da música popular. Berry Gordy fundou-a em 1959 em Detroit, com 29 anos e 800 dólares, seguindo o mesmo princípio das linhas de montagem automóvel que tomavam conta da cidade: produção em série, com as mesmas equipas de compositores e a mesma banda, os Funk Brothers (pelo menos até 1972, quando a editora se mudou para Los Angeles). A forma ideal para canções perfeitas, como nunca mais ouvimos e que ainda hoje são referência. Four Tops, Temptations, The Supremes, Stevie Wonder, Marvin Gaye, Martha Reeves ou os Jackson Five. Uma curta amostra dos nomes que editaram discos com este carimbo e com esta produção. Adam White, antigo jornalista e um dos ingleses a quem a Motown não pediu licença para mudar a vida, assina o livro com Barney Ales, o braço direito de Berry Gordy, encarregue de convencer as rádios brancas americanas que aquela música negra ia mudar o mundo. “The Sound of Young America” explica como isso aconteceu e como a Motown acabou por ter um fim (não enquanto marca mas como força criativa), ao mesmo tempo que revela imagens inéditas. White faz uma visita guiada a esta história num pergunta-resposta em número redondo.

motown livro

“Motown: The Sound of Young America” (Thames & Hudson); 400 páginas; 34€ em amazon.co.uk

Ainda há histórias da Motown por contar?

Claro que há. E escrevi o livro com o Barney para poder contar histórias novas em vez de voltar ao que já todos sabemos. Como fã da Motown e antigo jornalista musical, sabia da existência de gente nos bastidores de toda a história da editora que contribuíram muito para a história que a Motown construiu. O trabalho do Barney era o de fazer com que os discos fossem tocados nas rádios, para manter o negócio a andar. Achei que essas pessoas mereciam ser reconhecidas. O que também há aqui de novo é a história visual que contamos. Nenhum outro livro o fez desta maneira, muito menos com tantas fotos inéditas como este.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Porquê Andrew Loog Oldham para escrever o prefácio?

O Andrew teve uma relação direta com a Motown através dos artistas ligados ao rock’n’roll que ele produziu para a subsidiária Rare Earth, no final dos anos 60. Mas não esqueçamos que este foi o homem que descobriu e geriu os primeiros anos da carreira dos Rolling Stones, ele sempre foi atento a todos os fenómenos da pop e a sua relação com a Motown começou muito cedo.

British music executive Andrew Loog Oldham, previously manager and promoter of The Rolling Stones. Original Publication: People Disc - HJ0422 (Photo by Richard Chowen/Getty Images)

Andrew Loog Oldham nos anos 60

Quais as principais razões para o sucesso da Motown?

O fascínio sobre a Motown tem várias origens. Primeiro, tinham canções excelentes, cultivaram a arte do refrão e, como no caso de Smokey Robinson, jogos de palavras invulgares. A produção dos discos e as atuações dos artistas eram feitas para pôr as pessoas a dançar e isso torna tudo viciante. Em terceiro lugar, a Motown representa um modelo de integração racial na música popular. Estes sucessos foram comprados por negros e brancos a uma escala que nunca tinha sido concretizada por nenhuma editora, nunca nenhuma outra igualou. Por último, o número de artistas que influenciaram sucessivas gerações é notável, particularmente Marvin Gaye, Stevie Wonder ou Michael Jackson.

https://www.youtube.com/watch?v=Bf4vUQ8FnFU

Porque é que nenhuma outra editora lhe seguiu o exemplo, usando o mesmo modelo e atingindo o mesmo — ou mais — sucesso?

Muitas outras editoras tentaram repetir o formato da Motown. Um exemplo muito específico é o da Solar Records, nos anos 80 — e Solar significa “Sound of Los Angeles Records”. Mas sim, é verdade, mais ninguém conseguiu chegar perto da categoria e do sucesso da Motown. A filosofia da linha de montagem que a Motown seguiu, com os mesmos parâmetros, o mesmo estúdio, os mesmos compositores e intérpretes, tudo isso me parece muito difícil porque os artistas de hoje têm muito mais controlo sobre o que fazem. E não estão dispostos a ceder tanto perante uma editora.

Além dos EUA, foi no Reino Unido que a Motown conseguiu alcançar mais sucesso. Porquê?

Muitos dos artistas passaram muito tempo no Reino Unido, em digressão, em ações de promoção com os media. Eram muito bem recebidos e sentiam muito menos discriminação racial do que nos EUA. Na verdade, alguns artistas da Motown tiveram mais sucessos no Reino Unido do que nos EUA — os Isley Brothers, por exemplo, ou o Jimmy Ruffin. Além disso, o público britânico parece ser mais fiel aos músicos, à medida que o tempo passa. A Martha Reeves continua a dar concertos em Inglaterra e sempre com casa cheia. Há ainda a questão da distância, do que é diferente. Detroit pode não ser uma cidade de sonho mas era de lá que vinha uma música fascinante, diferente de tudo. Eu sou inglês e lembro-me bem desse efeito.

Da história da Motown, que artistas fizeram a diferença?

Acima de todos os outros, os Four Tops. A força e, ao mesmo tempo, a melancolia do vocalista principal Levi Stubbs, a energia da música. Canções como “Reach Out I’ll Be There” ou “Ask the Lonely” são obras geniais. Os quatro músicos originais estiveram juntos durante 43 anos! Essa coesão e esse sentido de grupo são históricos.

O facto de tudo ter acontecido em Detroit teve alguma influência?

Foi mesmo decisivo. Detroit estava completamente fora do circuito que a indústria musical seguia. Os músicos daquela cidade, jovens e sem referências, sem grande possibilidade de chegar a algum lado, nunca encontrariam maneira de vingar noutro sítio. Além disso, a Motown garantia tudo para concretizar as carreiras destas pessoas: gravação num estúdio que estava aberto 24 horas por dia, management, formação artística, publishing, tudo. Porque a Motown era auto-suficiente, criou artistas completos. As editoras de hoje não estão equipadas para isso.

Marvin Gaye disse em tempos que a Motown era “money-hungry” [tinha fome de dinheiro]. Berry Gordy foi um visionário ou alguém que inteligentemente se aproveitou do talento de outras pessoas?

Foi um visionário e um excelente empresário. Também era muito bom a escolher as pessoas certas para tratar das tarefas que não podia ou não queria fazer. Deu responsabilidades ao Barney Ales porque percebeu que precisava de alguém que conseguisse negociar no meio da indústria musical e das rádios americanas, universos controlados por brancos. Precisava conquistar esses meios, eram essenciais para chegar ao público que podia comprar os discos. Berry controlava os artistas e lucrava com isso mas deu carreiras a muitos deles — isto é, sucesso, longevidade na indústria do entretenimento, bem para lá das carreiras que artistas contemporâneos de outras editoras conseguiram alcançar. Stevie Wonder, Diana Ross e Smokey Robinson, por exemplo, continuam a levar dezenas de milhares a cada novo concerto.

6 fotos

Qual a importância que a Motown teve no movimento pelos direitos civis?

Desempenhou um papel vital, mas não de forma direta, não esteve realmente envolvida na questão. Berry Gordy era um homem de negócios, era essa a sua preocupação principal. Ele queria que música que editava fosse apelativa, que chegasse a toda a gente, daí não querer de facto associar-se a um movimento específico – ainda que percebesse muito bem que os seus artistas estavam a lutar pela integração e pela igualdade através da música. Basta pensarmos, por exemplo, no número de artistas da Motown que iam à televisão, que passaram pelo “Ed Sullivan Show”, isso foi muito importante. Além disso, é sabido que Martin Luther King Jr. disse uma vez a Berry Gordy que a Motown era responsável, acima de tudo, pela “integração emocional”, antes até de uma eventual “integração intelectual”.

Apesar do sucesso que a Motown alcançou, o negócio não acabou bem. Porquê?

A Motown tornou-se uma vítima do seu próprio sucesso, porque fez com que grupos muito maiores — a CBS, agora Sony, a Warner, a Capitol ou a MCA — tomassem consciência da popularidade e da rentabilidade que a música negra podia ter. Estas companhias começaram a concorrer com a Motown no anos 70, com muito mais recursos. Berry Gordy tinha, entretanto, mudado a sede da editora para Los Angeles, para estar mais perto do centro do negócio. Mas a escala do negócio discográfico acabou por precisar de bolsos muito mais fundos que os de Gordy, sobretudo nas áreas de promoção e distribuição. E apesar disso, já nos anos 80, a Motown conseguiu lançar as carreiras de gente como Lionel Richie ou Rick James. Mas talvez o maior erro da Motown tenha sido não dar liberdade criativa total a Michael Jackson e aos seus irmãos, fazendo com que deixassem a editora na década de 70. Não quero com isto dizer que o Michael teria feito um “Off The Wall” ou um “Thriller” se tivesse continuado na Motown mas eles estiveram muito mal em deixar fugir talento magnífico como aquele.