Foi uma consequência direta da resposta à pandemia. Com a entrada em vigor do estado de emergência, as forças de segurança viram os seus poderes de intervenção reforçados. “Dever de recolhimento”, “ajuntamentos ilegais”, “proibição de circulação”, “passeios higiénicos” — o léxico que passámos a usar no novo quotidiano, ao abrigo das novas regras, significou também uma responsabilidade nova e direta para a PSP e a GNR, chamadas a garantir que a restrição de direitos e liberdades não se limitava a ser letra-morta de cada novo decreto presidencial.

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Há um ano, ficava gravada na memória coletiva a forma como um agente da PSP de Guimarães recordava a uma idosa, em tom audível, a sua obrigação de voltar para casa e de não permanecer na rua — no mesmo dia, aliás, em que o Governo anunciava as medidas que passavam a dar corpo ao estado de exceção. O caso ficou registado em vídeo e gerou indignação. Depois, vieram outros “casos”. Nos últimos meses, multiplicaram-se as denúncias e relatos (e polémicas) envolvendo elementos das forças de segurança nessa tarefa de fiscalizar o cumprimento das regras. As redes sociais foram, quase sempre a caixa de ressonância da denúncia de uns e da indignação de outros.

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Mas será que todos esses casos estão bem contados? Ou, aqui e ali, ficaram de fora alguns dados que poderiam ajudar a enquadrar — e a compreender — com maior rigor cada um dos episódios? Confrontado com as várias publicações de Facebook e partilhas de WhatsApp, o Observador tem vindo a verificar que relatos correspondem à verdade, que denúncias omitem parte da história e que “denúncias” escapam, por completo, ao que de facto se passou.

Resumimos aqui alguns dos Fact Checks à atuação da PSP e da GNR durante o último ano pandémico.

Fact Check. Idoso foi autuado por estar sentado num banco de jardim?

É o “modelo-tipo” de publicações em que a atuação das forças de segurança neste(s) estado(s) de emergência está a ser alvo de escrutínio: uma fotografia mostra elementos das forças de segurança a interagir com um cidadão, geralmente na rua, e a legenda do post descreve, depois, a situação. A questão é que nem sempre essa descrição corresponde à realidade. É o caso de um suposto auto levantado a um idoso no Porto.

“Aqui está uma pessoa idosa que vai buscar comida a uma cantina social, não se consegue mover sem descansar um bocado (…) foi autuado em 200€ pela polícia (…). Este senhor vive num quarto e recebe uma reforma de 200€. Chama-se Sr Mendes é conhecido no marquês no Porto”, lê-se numa publicação partilhada no início de março e que rapidamente somou muitos milhares de partilhas e ainda mais visualizações.

Fact Check. PSP autuou idoso em 200 euros por estar sentado num banco de jardim?

Na imagem, surge um idoso sentado num banco de jardim, com a bengala ao seu lado e, nas mãos, um saco de papel com o que aparenta ser algum alimento no interior. De pé, junto ao homem, um elemento da PSP parece tomar notas no bloco que traz consigo. Ambos estão de máscara.

O agente estaria a levantar um auto por desrespeito pelas regras sanitárias em vigor? É o que garante a publicação — mas não era verdade.

Contactada pelo Observador, aquela força de segurança confirma que se trata, de facto, de alguém com parcos recursos económicos e com uma condição de saúde precária. Esse foi, aliás, um dos motivos para que o idoso — que se encontrava com outras duas pessoas naquele local, quando foi abordado pela PSP — não tivesse sido alvo de qualquer coima.

“O cidadão mais idoso, após a advertência, de imediato colocou a máscara de forma correta e justificou o uso do banco pelo estado de cansaço em que se encontrava, pelo que necessitava um momento de pausa”, explicou a PSP em nota pública.

Os outros dois homens que ali se encontravam (mas que não surgem na imagem) acabaram mesmo por ser autuados.

Conclusão

Não é verdade que o homem visível da fotografia viral tenha sido autuado. Foi alertado para o cumprimento das regras sanitárias e recebeu assistência por parte da PSP.

As duas outras pessoas que estavam na sua companhia, porém, acabaram por ver ser-lhes levantado um auto.

ERRADO

Fact Check. Comer gomas na rua dá origem a coima?

Lousã, primeiros dias de fevereiro. A imagem de um auto da GNR começa a ser partilhada no Facebook, com a seguinte descrição: “No decorrer do serviço de patrulha, ao passar junto da máquina de vending” de uma rua da cidade, “verificamos que o suspeito se encontrava a consumir produtos (gomas) à porta do estabelecimento de vending.”

Foi apenas “um dos autos de contraordenação que foi levantado” pela GNR no decurso daquela patrulha. É que, na companhia de João Loureiro, de 25 anos, estava um amigo que também foi alvo da fiscalização. O facto de, alegadamente, estarem “há três minutos” naquele local não evitou o desfecho.

“No dia 4 de fevereiro de 2021, os militares do Posto Territorial da Lousã detetaram dois cidadãos a consumirem produtos à porta de um estabelecimento comercial, o que consubstanciou infração ao disposto no Decreto n.º 3-B/2021, de 19 de janeiro, da Presidência do Conselho de Ministros, à data em vigor”, resumiu a GNR ao Observador, depois do pedido de esclarecimentos suscitados pela notícia do JN.

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Conclusão

Comer gomas e beber café na rua. Foi esse o motivo que levou a GNR a autuar os dois homens com que uma patrulha se cruzou, na Lousã, no início de fevereiro.

CERTO

Fact Check. GNR penaliza “pausa” para comer sandes no carro?

A notícia de que Rúben Marques teria sido autuado pela PSP de Torres Novas foi avançada pelo jornal Correio da Manhã no dia 27 de março. O diário contava que o homem tinha sido interpelado por elementos daquela força de segurança, durante uma ação de fiscalização do cumprimento do recolher obrigatório em vigor, e teria sido autuado por não ter justificação para estar naquele local da freguesia das Lapas. “Trabalho para uma empresa de limpezas e para duas associações de animais, uma delas nas Lapas. Quando vinha do trabalho, parei o carro num local deserto para descansar e comer uma sandes. Apareceu a polícia e multaram-me em 200 euros”, começou por contar o próprio àquele jornal.

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Dias mais tarde, um artigo do jornal Medio Tejo acrescentava novos detalhes sobre o episódio. A PSP explicava que o local onde Rúben Marques, de 27 anos, foi abordado, junto ao hospital de Torres Novas é ponto de encontro habitual para jovens e um local onde têm sido detetados ajuntamentos informais. No caso concreto, o comandante distrital da PSP de Santarém confirmou a abordagem, no dia 25 de março. Mas a versão não coincidia com os dados inicialmente apresentados por Rúben Marques.

“O cidadão não apresentou qualquer justificação com enquadramento legal para se encontrar fora do domicílio, referindo ter saído do serviço e encontrar-se ‘a apanhar ar e espairecer'” num momento em que ainda “permanece em vigor o dever geral de recolhimento domiciliário”, disse a PSP ao Media Tejo. De acordo com esta força de segurança, Rúben Marques “não se encontrava a tomar qualquer refeição ou apresentou qualquer declaração decorrente das obrigações profissionais ou outras” e, também numa versão diferentes dos factos, “não reside nem trabalha nas imediações daquele local”.

Contactado pelo jornal, Rúben Marques — que começou por expor o seu caso nas redes sociais — reiterou a ideia de que o agente que o interpelou não “quis ver” as declarações profissionais que trazia consigo, e que justificariam as deslocações entre concelhos. Mas apresentou uma explicação ligeiramente diferente dos motivos pelos quais se encontrava naquele local. “O que disse ao polícia é que ia comer qualquer coisa – a comunicação social é que entendeu que eu estava a comer”, explicou.

Conclusão

As primeiras notícias apontavam para uma situação em que Rúben Marques tinha sido autuado por estar a comer “uma sandes” dentro do carro, numa pausa entre uma atividade profissional e outra. Essas notícias não indicavam que o homem estaria numa zona onde habitualmente se realizam encontros informais à revelia das regras em vigor durante o estado de emergência. E indicavam que Rúben Marques estaria a “comer uma sandes” — algo que o próprio corrige, dizendo que a informação que prestou à PSP foi a de que “ia comer qualquer coisa”.

ENGANADOR

Fact Check. Lojas dos chineses escapam à malha das autoridades?

As publicações foram surgindo uma atrás da outra, tendo uma ideia em comum: apesar das regras em vigor, que em certos momentos mantiveram o comércio fechado quase de forma integral, as chamadas lojas dos chineses mantinham-se em pleno funcionamento e a “vender tudo”. Complacência das forças de segurança?

Como o Observador explicou no início de março, chamadas as lojas chinesas podiam manter parte da sua atividade. Mas teriam de impedir o acesso, por exemplo, aos corredores de roupa, decoração e outros produtos cuja comercialização não era permitida naquele momento.

Fact Check. Lojas chinesas continuam abertas e a “vender tudo” apesar da pandemia?

Isso não significava que todos estes estabelecimentos cumprissem as regras em vigor. Da mesma forma que não se poderia concluir que apenas estas lojas estivessem a contornar a lei. Segundo os dados que a GNR disponibilizou nessa altura, as nove fiscalizações realizadas a este tipo de estabelecimentos, entre o dia 15 de janeiro e meados de março, tinham resultado na elaboração de três autos de contraordenação. Nesse mesmo período, a GNR levantou 963 autos de contraordenação a todo o tipo de estabelecimento (e encerrou 179 espaços que estavam em incumprimento).

Conclusão

Não havia qualquer exceção na lei que permitisse que as chamadas “lojas dos chineses” se mantivessem em pleno funcionamento, em situação de privilégio face a outras lojas do mesmo género que estavam fechadas e a cumprir as regras em vigor.

Os dados disponibilizados pela GNR mostram que, sim, tinham sido detetadas situações de incumprimento — nestes estabelecimentos como noutros. Aliás, o número de autos levantados por contraordenações mostram que apenas uma percentagem reduzida dos incumprimentos foi registada nestas lojas.

ENGANADOR

Fact Check. Idosa autuada por comer “à porta do café”?

A imagem tornou-se rapidamente viral: uma idosa, com um agente da PSP ao lado, a carteira na mão e o café pousado numa caixa de eletricidade. Em poucas horas, a publicação que partilhou a imagem somou milhares visualizações nas redes sociais e, ao fim de três dias, tinha chegado a cerca de um milhão de utilizadores, de acordo com os dados do Facebook. A legenda de uma das várias publicações que difundiram o mesmo conteúdo dizia o seguinte: “Senhora de 80 anos, vai ao pão, pede um café, tira um pão do saco e começa a comer, rua VAZIA.”

Resultado: um auto de 200 euros. Verdade? Sim, ainda que haja um ou outro detalhe a juntar à história.

A própria PSP confirmou ao Observador que foi passado um auto a uma mulher que estava a “consumir bens alimentares” à porta do estabelecimento onde tinha acabado de comprar uma bebida e um pão. “A Polícia de Segurança Pública confirma ter autuado ontem [dia 28 de março] uma cidadã, em Paço de Arcos, que se encontrava à porta de um café a consumir bens alimentares”, começam por referir os esclarecimentos.

O detalhe surge de seguida. “Sendo esta conduta proibida no contexto do estado de emergência, os polícias que se encontravam a patrulhar a zona alertaram a cidadã para a necessidade de se dirigir ao domicílio.” Mas, de acordo com esta força de segurança, tendo a idosa “mantido o comportamento, foi autuada, seguindo estritamente a legislação em vigor.”

Idosa autuada por comer à porta do café

Conclusão

Sim, é verdade. A própria PSP confirma que, no final do março, instaurou um auto de contra-ordenação a uma idosa que se encontrava a “consumir bens alimentares” à porta do estabelecimento onde tinha acabado de adquirir um café. O único “detalhe” que falta à história é a sugestão dada pela PSP para que a idosa regressasse a casa. A sugestão não terá sido acatada e o auto foi levantado.

PRATICAMENTE CERTO