Há quatro anos Gabriel Fernando de Jesus tinha 17 anos, vivia em Jardim Peri e no currículo futebolístico tinha apenas o futebol de terra batida e cinco clubes locais: o Pequeninos do Meio Ambiente, o União do Peri, o Cantareira, o Vitória do Peri e a Associação Atlética Anhanguera. Nessa altura, estávamos nós em 2014, Gabriel Jesus pintava as ruas de Jardim Peri com tinta verde e amarela para receber o Mundial no Brasil. Agora, quatro anos mais tarde, estreia-se no Campeonato do Mundo ao serviço da seleção brasileira, da qual é o membro mais novo da turma. A fotografia do “caçula” brasileiro de 21 anos tornou-se viral nas redes sociais.

A vida de Gabriel, da água para o vinho

A fotografia de Gabriel Jesus foi tirada quando o paulista já jogava pela Associação Atlética Anhanguera e se destacava dos outros miúdos: com apenas 15 anos, Gabriel era um dos melhores atacantes da Copa São Paulo Sub-15 com 29 golos marcados. O jogador recordou esses tempos numa entrevista à página Lateral Esquerdo em 2017: “Existe uma expressão no Brasil, e é a única forma de descrever o que aconteceu comigo. A minha vida mudou da água para o vinho. Cinco anos atrás, eu estava a jogar na várzea, apenas a tentar sobreviver, apenas a tentar chegar a um clube grande no Brasil. A várzea deu-me uma boa perspetiva”.

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Mas Gabriel Jesus admite que só saiu do Brasil em direção a clubes como o Manchester City por causa da mãe: “Eu cresci num bairro chamado Jardim Peri, na Zona Norte de São Paulo, e para algumas pessoas que moram lá a vida é uma luta. Mas eu tive a minha mãe. Que trabalhava muito duro e garantia sempre à nossa família comida na mesa. Para muitos garotos com os quais eu cresci era mais difícil. Às vezes, eles só tinham uma única refeição no dia e era a que recebiam dentro do clube. Para ser sincero, muitos deles nem mesmo apareciam para jogar. Eles só vinham para se encontrar e comer de graça um sanduíche de mortadela com refrigerante. Era sempre pão com mortadela e uma lata de refrigerante. Às vezes, era só refrigerante. E isso tinha que durar até o fim do dia”.

Gabriel é filho de um pai ausente: “Em casa, não tinha muita coisa para fazer. O meu pai deixou a família logo depois de eu nascer, por isso a minha mãe trabalhava todo o santo dia para me sustentar a mim e a meus irmãos. Ela era faxineira na cidade, e quando ela voltava para casa no fim do dia, ela tinha que dividir a cama comigo e com um dos meus irmãos”. Ainda hoje Gabriel Jesus homenageia os esforços de Vera Lúcia Diniz de Jesus: “Sempre que marco um golo pelo Manchester City, a minha mãe liga para mim. Assim que a bola balança no fundo da rede, o telefone toca. Não importa se ela está em casa, no Brasil ou no estádio a ver-me jogar. Ela liga-me sempre. Então, eu corro até à bandeirinha do canto, coloco a mão no meu ouvido e digo: “Alô, Mãe”. Quando cheguei ao City, as pessoas acharam isso muito engraçado, e viviam a perguntar-me o que aquilo significava. Tem uma resposta rápida: amo minha mãe e ela está sempre me ligando. E tem uma resposta longa, que começa quando eu ainda era um menino com um sonho”.

A carreira de Gabriel começou nas vizinhanças de uma prisão militar

Para Gabriel, esse sonho começa no Pequeninos do Meio Ambiente, conta ele na primeira pessoa ao Lateral Esquerdo: “Quando eu tinha nove anos de idade, apareci lá com meu amigo Fabinho para ver se nós podíamos jogar na equipa. Nós andámos pela mata com as nossas chuteiras de futebol debaixo do braço. E foi então que nós conhecemos o homem que mudou as nossas vidas: José Francisco Mamede, técnico da equipa dos mais novos. E ele disse:  ‘Com certeza, podem jogar na próxima partida'”.

Gabriel Jesus diz que o Pequeninos “é mais do que um clube de futebol”: “Para mim, todos os meus sonhos, todas as coisas que eu tenho agora – tudo isso começa com o Pequeninos. Na verdade, é mais do que um clube de futebol. Não pense nas praias e todo esse tipo de coisa. O nosso campo era do lado de fora de uma prisão militar. No lugar onde era para ter o gramado, só havia sujeira e estava cercado por grandes pinheiros. As únicas pessoas que jogavam lá além das crianças eram os policiais dessa prisão”.

Para chegar até ao campo, o treinador José Francisco Mamede punha todos os futebolistas dentro de um carocha branco dos anos 70 e levava-os à boleia para o relvado do Pequeninos. Dentro do carro iam dez miúdos, as chuteiras de cada um deles, as bolas, os cestos para levar a roupa, as bolas e todo o material que Mamede achasse necessários para o treino: “O que esse clube faz por aqueles meninos é incrível. No Brasil, nós temos um nome para pessoas como Mamede: heróis desconhecidos. E foi isso que ele representou para muitos garotos. Ele e outros técnicos deram-nos uma oportunidade na vida”.

Nem todos os colegas de Gabriel Jesus chegaram tão longe, mas o atacante do Manchester City acredita que apenas teve sorte: “Joguei com grandes jogadores que hoje são motoristas de autocarro ou trabalham no supermercado ou são pedreiros. E não foi porque eles não eram bons jogadores ou porque não se esforçavam. O que conta nessas horas é a sorte e a oportunidade. Algumas pessoas têm que ir atrás do seu sustento e não podem ficar correndo atrás dos seus sonhos”.

“Alguns garotos têm jogos de computador. Eu tinha a bola e a minha imaginação”

Gabriel Jesus ficava a jogar à bola na rua e a falar das raparigas até para lá da meia-noite, às vezes até às duas da manhã. A equipa do Pequeninos apenas treinava duas vezes por semana, por isso Gabriel preferia andar ao ar livre quando tinha tempo: “Alguns garotos têm jogos de computador. Eu tinha a bola e a minha imaginação. E foi fixe porque eu tive uma infância de verdade. Havia esses grandes torneios de futebol em que cada rua tinha uma equipa e o troféu era uma garrafa de refrigerante. Meu, era uma guerra por aquele refrigerante. É tudo o que se tem, sabe? O troféu de refrigerante é dez vezes melhor do que a champanhe. Dez vezes melhor”.

Com 13 anos, o Pequeninos onde jogava Gabriel Jesus entrou num campeonato importante em São Paulo onde clubes amadores e clubes profissionais se defrontavam numa forma de esses clubes maiores poderem estar atentos a possíveis talentos nas equipas mais modestas. O Pequeninos tinha conseguido derrubar grandes clubes paulistas com 13 golos, mas a final prometia ser difícil: além do Pequeninos, quem estava na final era um clube profissional, o Portuguesa de Desportos. “É como nos filmes. Nós éramos o clube pequeno que jogava do lado de fora da prisão, e eles eram do clube profissional com equipamento e tudo o resto”, recorda Gabriel Jesus.

Na noite anterior ao jogo, uma grande tempestade assolou São Paulo e transformou o campo onde ia ser jogada a final em lama. Os jogadores do Pequeninos não conseguiam sequer correr pelo relvado porque acabavam por cair com as chuteiras enterradas na terra encharcada, mas os adversários pareciam aguentar-se melhor: “Eles tinham chuteiras de trava de metal, aquelas que se pode usar na chuva. As nossas chuteiras eram aquelas das mais baratas, com travas de borracha. E estavam todas gastas. Não tínhamos dinheiro para comprar as chuteiras mais caras. Lembro-me de pensar algo tipo “não é justo… mas a vida continua”. O Pequeninos perdeu por 4-2, mas Gabriel Jesus ainda guarda a lição que tirou dali: “Eu nunca vou me esquecer de ver a Portuguesa a comemorar com o troféu. Foi uma lição muito boa para mim. O futebol é como tudo na vida. Não é justo. Então, tem-se de dar um jeito, mesmo não parecendo justo”.

 “Vou quebrar as tuas pernas se tentares fintar-me outra vez”

A vida de Gabriel Jesus avançava, mas devagar, conta ele ao Lateral Esquerdo. O avançado até chegou a fazer um teste no São Paulo Futebol Clube, mas não ficou porque a equipa não teria um quarto na Academia onde ele pudesse ficar. Era tão longe de casa que Gabriel Jesus tinha de apanhar autocarros e fazer viagens demasiado longas para lá chegar. E isso estava totalmente fora de opção: “Teria que largar a escola e minha mãe certamente não aceitaria isso. Ela era totalmente a favor da escola”, explica o futebolista. E prossegue: “Muitos garotos no Brasil, quando são de origem mais humilde, têm de começar a trabalhar quando fazem 14 anos de idade para ajudar a família. Eles não podem jogar futebol, ir para a escola e trabalhar ao mesmo tempo. Então, o sonho deles morre nesse momento”.

A mãe de Gabriel não quis que o sonho do filho morresse. Quando Gabriel Jesus lhe contou o que aconteceu no teste no São Paulo Futebol Clube, Vera Lúcia deixou que o filho largasse a escola e passasse a dedicar-se ao futebol. Era uma porta de entrada de Gabriel num clube maior e mais profissional, embora o campo fosse esburacado e aquele futebol fosse tão duro como o basquetebol de rua nos Estados Unidos ou como a Liga semiprofissional de futebol na Europa. Os brasileiros chamam a esse tipo de futebol “várzea”. E a várzea “é conhecida por ser de extremo contacto físico. Tinha muita coisa pesada acontecendo no campo”, conta Gabriel.

Com apenas 13 anos, Gabriel Jesus ia sentir esse peso em cima dos ombros. Tudo aconteceu num jogo frente a uma equipa grande que, embora fosse dos melhores na várzea, tinham sido expulsos da Liga durante alguns anos “por causa de algo que fizeram depois de um jogo”. Aquele era o ano de regresso deles e a vitória dessa equipa dar-lhes-ia acesso direto a um campeonato superior, mas todos os jogadores olharam para Gabriel e acharam que a tarefa era fácil. Não era: “Aos quatro minutos de jogo, eu fintei o melhor defesa da equipa deles e marquei um golo. Lembro-me de todos eles olharem para mim, tipo ‘Ok, moleque, nós vamos fazer da sua vida um inferno'”.

A partir daí, de cada vez que Gabriel Jesus tocava na bola pelo menos um adversário corria até ele para lhe bater: “Eles ficaram muito loucos, como se eles tivessem vindo atrás de mim para me magoar. Tinha um baixinho no meio de campo deles que era conhecido por ser um valentão e ele dizia-me coisas como: ‘Vou quebrar as tuas pernas se tentares fintar-me outra vez’. Gabriel não se deixou intimidar: fintou esse mesmo jogador, que ficou deitado no chão, e inflamou ainda mais a raiva dos adversários. “O que eu posso dizer? Quando eu tenho a bola aos meus pés, entro um mundo diferente. Então peguei a bola novamente e, sem olhar, dei um passe para um companheiro de equipa marcar um golo”.

O jogo acabou empatado a duas bolas, mas “o valentão” não deixou Gabriel Jesus em paz. No final da partida, abordou-o e disse: “Eu disse que ia quebrar as tuas pernas, moleque. Espero-te no estacionamento”. Gabriel admite que ficou assustado, mas os colegas protegeram-no: “Todos eles ficaram à minha volta e levaram-me até o estacionamento. Só assim consegui chegar em casa em segurança”. Mas a história não acabou aí: “No Natal do ano passado, eu fui para casa para ver a minha família e tive de ir ao banco para resolver alguns problemas burocráticos. Peguei o meu carro no estacionamento e o gajo que cuida dos tickets deu-me aquela olhada, como se ele me conhecesse”. E conhecia mesmo: era o valentão que o tinha ameaçado. E que admitiu agora ser fã de Gabriel Jesus: “Eu ia mesmo quebrar as suas pernas. E agora jogas pela minha equipa, cara! Eu amo-te, mano! Eu não posso acreditar nisso. Você consegue imaginar se eu tivesse quebrado as tuas pernas?”.

Do primeiro contrato à chamada para a seleção brasileira

Gabriel Jesus passou a jogar pelo Palmeiras quando tinha 15 anos: “Tudo descolou a partir dali. Acho que não consigo nem explicar. Foi como destino, de certa forma. Deus escreveu tudo perfeitamente”, disse ele ao Lateral Esquerdo. A partir daí, a carreira de Gabriel entrou numa ascensão muito rápida. Mas o mais emocionante passo que deu, considera ele, foi a entrada a seleção do Brasil: “Apenas dois anos antes, estava nas ruas do Jardim Peri a pintar as calçadas de verde e amarelo para a Copa do Mundo de 2014. Os gajos da vizinhança que desenhavam muito bem fizeram grandes murais – com os rostos dos jogadores brasileiros, como David Luiz e Neymar, e nós estávamos ajudando a deixar tudo aquilo colorido”. Dois anos mais tarde, Gabriel Jesus passou a ser um daqueles rostos.

Depois de o Brasil ter ganho a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 2016, prova para a qual Gabriel Jesus foi chamado à seleção, o paulista fez uma tatuagem de uma criança pequena de pé numa favela com uma bola de futebol debaixo dos braços. Era uma tatuagem parecida à que Neymar tinha feito e na qual Gabriel se tinha inspirado: “Antes do campeonato, eu era apenas mais um fã do Neymar, como tantas outras pessoas. Ele é um jogador de futebol incrível. Mas ter a oportunidade de saber quem ele é de verdade durante esse período foi especial, por causa da personalidade dele. A forma que ele trata as pessoas surpreendeu-me bastante. Porque mesmo no curto período de tempo que eu vivi no futebol, vi tantos gajos que nem são grandes jogadores, que não ganharam nada, serem dissimulados. Mas o Neymar trata toda a gente como se fosse irmão dele. Ele foi a grande razão pela qual fomos capaz de nos unirmos e ignorar a pressão”.

Gabriel foi para o Manchester City a pensar no Mundial 2018

Pelo menos foi isso que Gabriel Jesus confessou na entrevista ao Lateral Esquerdo: “Eu quero fazer tudo o que estiver ao meu alcance para fazer parte da equipa do Campeonto do Mundo de 2018. E eu sei que há muita disputa para ver quem será convocado. Essa foi a grande razão pela qual eu decidi ir para o Manchester City: sei que eu preciso continuar a desenvolver-me como jogador”, afirmou o paulista. E conseguiu: agora é o mais novo membro da equipa brasileira, que joga esta sexta-feira frente à Costa Rica.

Sobre a vida que leva no Manchester City, para onde foi a  3 de agosto de 2016 por 31 milhões de euros, Gabriel Jesus diz que pode ser “fria” e “solitária”: “Esta é minha primeira vez num país que é realmente muito frio e onde eu não falo a língua. É um desafio ser compreendido, e pode ser solitário nesse sentido. No entanto, quando Guardiola me ligou enquanto eu decidia para qual clube eu ia jogar, ele disse que estava a contar comigo. Posso dizer que o Guardiola estava a ser verdadeiro e no futebol isso significa muito”.

O futebolista admitiu que se sentia perdido em Manchester quando chegou a Inglaterra: ” A minha mãe ia e vinha entre Inglaterra e o Brasil e era extremamente difícil ficar longe dela porque ela é tudo para mim. Ela foi ao mesmo tempo pai e mãe para mim quando eu estava a crescer. Lembro-me que, quando jogava pelo Pequeninos, via algumas crianças depois dos jogos com os pais e eu estava sozinho. Aquilo foi pesado para mim. Marcou-me. Mas agora, quando alguém pergunta pelo meu pai, eu digo que minha mãe é o meu pai. Ela fez tudo por mim e pelos meus irmãos”.

Antes de ir, no entanto, Gabriel Jesus teve de se despedir do futebol de rua no Brasil: “Tinha de encerrar um capítulo da minha vida. Então eu voltei para o campo onde os Pequeninos jogam, com as chuteiras debaixo do braço, como quando eu tinha nove anos de idade. Mas desta vez um pouquinho diferente. Eu tinha 250 pares de chuteiras realmente boas para os garotos”.