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Cinco dias antes da derradeira jornada, a Liga divulgou os horários dos jogos a contar para a decisão das decisões. Os jogos do Estádio da Luz e do Estádio do Dragão estavam agendados para um sábado, ao final da tarde, com tempo para ficar noite dentro na rua. Os adeptos agradecem e, mais do que eles, a festa. O campeão foi decidido na última jornada, mas a celebração já estava anunciada. Dependente apenas de si, ao Benfica bastava um empate frente a um Santa Clara que não tinha muito por que jogar. Assim, na lista de afazeres para os preparativos da festa encarnada, estava tudo (quase) pronto. O cachecol é entrelaçado no pescoço uma última vez, o bilhete está no bolso. Chegou o dia da última excursão para o futebol.

O dia em que Cosme Damião foi Marquês de Pombal

Nos arredores do Estádio da Luz há alguns pontos de passagem obrigatórios, como a estátua de Eusébio, onde os benfiquistas vão parando para guardar uma recordação do Pantera Negra. Porém, desde há algum tempo que o local de culto é outro: a rotunda Cosme Damião. Todos os caminhos vão dar a esse espaço por onde o autocarro que transporta o plantel passa, uma última vez, antes de se embrenhar no interior do estádio. Pouco mais de três horas antes do jogo, já havia vermelho na relva que a circunda. No centro, letras garrafais com o mote desta temporada, “Reconquista”. Por lá, um jovem adepto encarnado mantinha-se mais alheio à comoção que estava para acontecer. “Só começou a chegar mais gente por volta das 15 horas”, soltou. O jogo que daria o título ao Benfica estava marcado para as 18h30, mas a rotunda alojava largas centenas de adeptos desde que os encarnados recuperaram terreno para o FC Porto, que chegou a ter sete pontos de vantagem. Outro adepto junta-se à conversa. “Tem sido sempre assim desde que começámos a ganhar mais jogos consecutivos, mas hoje vêm mais malucos, de certeza”, previu.

As camisolas encarnadas não paravam de chegar. À medida que a hora do jogo se aproximava, mais adeptos chegavam à rotunda de homenagem a um dos fundadores do Benfica. Com eles, também os cânticos se fazem ouvir, mais alto e mais coordenados. A rotunda Cosme Damião ainda estava transitável e todos os “buzinões” encontravam resposta dos adeptos que se iam acomodando e tentando arranjar o melhor lugar para esperar pelos atletas. No reportório dos adeptos, havia alguns favoritos: “1904”, o ano da fundação, e o apelo à conquista do 37.º título. Entre cânticos e brindes – proporcionados pelas roulottes nas imediações – havia ainda tempo para festejos paralelos. A cerca de dez quilómetros de distância, no Estádio Nacional, a equipa feminina jogava a final da Taça de Portugal e os quatro golos das encarnadas foram também festejados na rotunda Cosme Damião.

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O relógio continuava a correr e a duas horas do começo do jogo, já com a equipa do Benfica a abandonar o centro de estágios do Seixal, já não se via relva na rotunda e o alcatrão também começava a escassear. O vermelho sobrepunha-se a qualquer outra cor. Apesar de parecer pequena para tantos adeptos, à rotunda continuava a chegar gente. O ambiente era de festa, cada vez mais gargantas entoavam cânticos de apoio aos encarnados, ansiosos pela chegada do “Vermelhão”. No meio da alegria, um momento de tensão. Da garagem saía, membros do staff encarnado, munidos de uma tarja gigante com a palavra de sempre – “Reconquista”. Aquilo que parecia fazer parte de uma coreografia preparada não caiu no goto daqueles que ocupavam as primeiras filas da encosta junto à rotunda. Por melhor intencionada que fosse, a tarja tapava a visão a alguns benfiquistas que, descontentes, apropriaram-se da mesma. Tudo sanado, siga a festa. Às 16h50 chegava o autocarro do Santa Clara, que foi aplaudido – se bem que timidamente – pelos adeptos benfiquistas. Era o aquecimento para o que estava prestes a acontecer.

Poucos minutos passavam das 17h e o nível de ruído aumentou drasticamente. Era o tão aguardado autocarro, que transportava aqueles que haveriam de se sagrar campeões nacionais. O azul do céu desapareceu por instantes, fruto do fumo das tochas vermelhas e brancas. Entre gritos de ordem e cânticos, petardos rebentavam. O momento alto da tarde.  A rotunda Cosme Damião quase virava Marquês de Pombal. O autocarro passou – a custo – e recolheu ao túnel. Era tempo de virar atenções para o jogo. Os que tinham bilhete tinham tempo para mais um brinde e aproveitaram a proximidade das roulottes para matar a sede, acalmar os estômagos e reagrupar cordas vocais. Mais apressados estavam os que não iam sentar-se na Luz. “Vai ligando a TV”, exclamava uma benfiquista a alguém que a esperava do outro lado da linha. A primeira parte da festa já estava. Faltava o jogo.

Um estádio “Félix” pintado com o 37

Seguimos para a Luz. Assim que entramos no Estádio, como se à nossa espera estivessem, entraram no relvado os jogadores do Benfica para aquecer, sob palmas da uma já boa casa. Faltavam 30 minutos para o início mas passaram num estalar de dedos. De repente, casa cheia. Apenas algumas clareiras na zona das claques mas apenas por não estarem propriamente sentados e nos seus lugares. De resto, Luz completamente a abarrotar. A pisar as 18h30, e depois do habitual voo da águia Vitória, a equipa encarnada entrou em campo, recebida por um mar de bandeiras vermelhas e brancas. Um mar que mostrava o caminho: numa das bancadas centrais era desenhado um gigantesco 37. Afinal era hora de mostrar que “Ao Benfica o que é do Benfica” – como dizia uma tarja de uma das claques. E não haveria melhor forma de o mostrar do que com uma coreografia destas, que terminou com um escudo gigante de campeão nacional com o número da noite: 37. Tudo pronto. Tudo? Não.

Para além do compasso de espera para igualar o clássico do Dragão (algo que por acaso acabou por não ser cumprido, com o jogo dos encarnados a começar mais cedo), faltava um pormenor que até tem sido um “pormaior”: reunia-se toda a equipa do Benfica em abraços no seu meio-campo, quando um jogador abandona o relvado. É que por mais que os companheiros sejam família, nada substitui a verdadeira. Lá foi João Félix ter com o seu irmão, mais uma vez apanha-bolas na baliza sul. Um “mais 10” e um abraço chegaram para dar motivação suficiente para mais um golo do miúdo. Mas isso foi mais à frente. Por enquanto apertam os corações enquanto se espera por um ok da Invicta. A (im)paciência valeu a pena. O 37 estaria resolvido em 45 minutos.

Despachar a reconquista para dar tempo para o 38

Apesar da rapidez da vitória, o jogo não começou assim tão quente. Nos primeiros 15 minutos de jogo, não era só o vento frio que arrefecia a Luz. O Santa Clara ia trocando a bola a seu bel-prazer e tinha até mais posse do que o Benfica, que entrou algo ansioso. Era preciso algo que ligasse o estádio à corrente e Seferovic quase fez curto-circuito. Golo do Benfica e explosão de alegria. Dois petardos e fumos vermelhos e pretos pintavam o início de uma tela de (re)conquista, com “O Benfica é o maior de Portugal” como banda sonora. De repente até parecia ter ficado menos frio. O golo deu uma tranquilidade que nem o Santa Clara perturbou com dois cantos perigosos ao primeiro poste. Nada poderia alterar o que estava escrito, com mais uma página de João Félix. Fintou. Atirou um adversário ao chão e levantou os adeptos. Depois foi atirar para o segundo e pintar novamente a luz com fumos e mais três petardos. Mas desta vez havia uma cor nova: branco. Há fumo branco. Há campeão. Mas com precaução. Só após o terceiro golo, de Rafa, aos 40’, é que se começaram a ouvir pela primeira vez os cânticos de campeão.

O momento dos festejos do golo de Rafa Silva, que abriu os cânticos de campeão

Ao intervalo houve pausa na festa, para… festejar mais. As jogadoras que venceram a Taça de Portugal de futebol feminino menos de duas horas antes no Jamor correram para o relvado com o troféu para habituar as bancadas, naquele que foi o primeiro título de sempre da equipa. Com tanta festa, os adeptos pareceram cansados no início da segunda parte. A Luz só acordou mesmo ao minuto 56, quando Seferovic marcou novamente. Os benfiquistas foram chamados a intervir em noutros golos… mas não do Benfica. Quando César marcou para o Santa Clara e não festejou – pedindo desculpa –, ouviram-se algumas palmas. Palmas mais fortes ouviram-se à passagem da uma hora de jogo: golo no Dragão do Sporting e tarde perfeita para os encarnados. O FC Porto até acabaria por ganhar, mas pouco importava. O Benfica seria campeão e os adeptos já sabiam o que queriam: “Rumo ao 38”.

A vida (e a tarja) ia torta, mas lá se endireitou

Assim que Jorge Sousa apitou para o final do jogo, vários jovens desataram a correr para o relvado. Invasão de campo? Não. Eram distribuidores de garrafas de cerveja de um dos principais patrocinadores do clube para a festa. Quase todos tiveram direito a uma e cedo ficaram vazias. A Luz ficava novamente pintada com fumos vermelhos, brancos e pretos abertos em várias partes do estádio, enquanto se cantava a uma só voz “Campeões”. Entretanto, enquanto caiam dois very lights na zona da baliza sul, houve problemas no paraíso. Problemas, diga-se, daqueles que qualquer equipa quer ter. A tarja gigante com o escudo de campeão e o número 37 que foi aberta no início era agora aberta de novo… mas de forma errada. Estava ao contrário, mas depois de várias manobras, tal como o Campeonato do Benfica, lá se endireitou. Para ajudar à festa, surgiu um pano gigantesco com todos os jogadores campeões e o seu treinador, acompanhados de foguetes como banda sonora. O 37 estava aí e a festa estava só no início.

A tarja começou torta, mas lá se mostrou, no fim do jogo, com o número do campeonato encarnado

Só faltava agora o troféu. Com um palco da Liga NOS montado a rigor para a entrega, anunciou-se o primeiro a pisá-lo: Pedro Proença, o presidente da Liga de Clubes, que foi a única personagem a ser assobiada durante a tarde/noite. Uma assobiadela monumental, diga-se, mas que foi esquecida quando os heróis começaram a ser chamados. Os mais acarinhados foram previsíveis: Jonas mereceu a primeira grande ovação. Antes, quando foi colocado em campo a meio do jogo, chorou. Ali sorriu e com ele os benfiquistas. João Félix, Pizzi, Samaris, Seferovic e Bruno Lage completaram o lote de personagens que rebentaram os decibéis. Com todos no palco, chegou a hora da reconquista. Proença passou o troféu para as mãos de Vieira. Vieira para as de Luisão. Luisão para as de Shéu. Shéu para as de Jardel. Jardel para as mãos do Benfica, que tem mais um troféu na sua história.

Uma história que não foi apagada nos festejos, com muitos regressos ao passado. Eliseu voltou para mais uma volta olímpica… na sua mota, desta vez com companhia. Paulo Lopes não voltou fisicamente, mas em espírito: foi Zlobin, terceiro guarda-redes encarnado, que desta vez subiu à barra da baliza norte do Benfica, erguendo um troféu tantas vezes levantado pelo antigo guardião português do Benfica. Era como se o troféu nunca tivesse saído da Luz. Agora, pelo menos, ficará por lá mais um ano.